A calma e quietude do Monte dos Ciprestes foram agitadas por um burburinho e estranho corrupio das três, ou quatro, mulheres que, nessa meia tarde, por ali estavam.
Quando viram o ganhão, que cuidava dos porcos, sair do celeiro, com qualquer coisa embrulhada numa saca, chamando pelo Ti’Chico, em altos gritos, e entrando na casa do capataz Manel Canhoto, gerou-se uma autêntica roda-viva.
As mulheres não pararam mais e, cada uma por seu lado, haviam de dar fé de tudo o que se passasse.
E foi assim que todos presenciaram o estranho achado do porqueiro.
A chorar, a bons pulmões, estava ali, nuzinho como nascera pouco tempo antes, um menino, abrindo a boquita e movendo a cabeça, procurando teta para mamar.
Olharam uns para os outros e foi a Zefa que saíu em passo apertado, na direcção da casa do maioral, chamando pela Amélia que tinha uma criança de leite e podia, por isso, valer ao anjinho que dava sinais de fome e frio.
Veio também a Ti’Rita Ramalheta, comadre de serviço nos partos lá do Monte.
Tratou da criança, lavando-a, verificando o aperto do baraço que apertava o cordão do umbigo e vestindo-lhe o casaquito que a Amélia acabava de trazer. Embrulhou o anjinho no xaile, que trazia nos ombros e deu-o à Amélia para que lhe desse o peito.
Veio, finalmente, o sossego; logo interrompido pelas perguntas do Ti’Manel Canhoto que, olhando em redor, encarou o ganhão dos porcos e quis saber as circunstâncias de tão estranho achado.
Muito simples, Ti’Manel; ouvi chorar lá para os fundos do celeiro e quando cheguei ao pé do monte das sacas de fava, vi esta encomendinha e trouxe-a.
Ainda olhei à volta, espreitei para todos os lados, escutei, perguntei se estava alguém e, nada.
E, algum dos presentes conhece o dono, ou dona, destes trapos que embrulham a criança? Perguntou, ainda, o Ti’Manel.
Porém, ninguém se acusou e, já na presença da mulher, Ti’Florinda, foram todos mandados para o que estavam a fazer, ficando a criança aos cuidados do capataz e da Amélia, que lhe daria mama.
Pelo fim da tarde, veio o senhor feitor, que se deslocara à vila, tratar de negócios.
Ao ser posto ao corrente do sucedido, chamou a sua casa o capataz e o ganhão e perguntou se sabiam quem poderia ser o pai, ou mãe da criança, ou se faziam alguma ideia por onde haviam de tentar descobrir.
Os dois disseram não saber de nada.
O feitor mandou-os em paz e recomendou ao ganhão que dissesse à sua Florinda que tratasse bem do achado. Quanto à criança, depois de consultar as autoridades, havia de se lhe dar um destino. Queria tudo bem legal e havia, primeiro, que descobrir quem abandonava assim um inocentezinho.
O Feitor deu voltas à cabeça e não chegou a qualquer conclusão.
Fez perguntas a todos e, inclusivamente, ofereceu e mandou oferecer, uma choruda recompensa a quem fosse capaz de indicar pai, ou mãe, que tivessem abandonado o infeliz.
Deu garantias de perdão a quem se acusasse e confessasse o seu acto, mas, nada.
Por sua conta, o feitor seguiu várias pistas: Os ciganos que por ali acamparam, uns pares de semanas, desapareceram naquela manhã. Porém nenhuma cigana foi vista de barriga e as feições do menino não apontavam nesse sentido.
A notícia da recompensa prometida pelo feitor, foi espalhada pelos ciganos e nunca ninguém foi reclamar nada.
Uma mulher, desconhecida nas redondezas, com uma barriga suspeita, mas não aparentando gravidez, foi vista perto do Monte e desapareceu, dois dias antes.
Veio notícia de outro Monte próximo que essa mulher, procurou trabalho e foi aceite lá.
Uma pastora, de meia-idade, que andou metida com o Chico das cabras, parecia mais gorda nos últimos tempos que por ali andou. Despediu-se e desapareceu.
Havia uns quinze dias que ninguém dera fé dela e o próprio Chico, apertado pelo feitor, não se desmanchou e jurou que ela tinha ido com um ambulante da feira.
E, que soubesse, não estava prenha, nem nunca estivera, depois que a conhecera.
Das mulheres do Monte, nenhuma apresentava barriga que justificasse parir, ou estar de esperanças, pelo que o Feitor, senhor Jerónimo, olhando a mulher, Emília do Ó, bem nos olhos, disse-lhe, ao serão:
Parece-me que não se vai desfazer o mistério; ninguém sabe nada, ou se sabe não quere dizer, porque se alguém soubesse e quisesse, já teria vindo reclamar os quinze contos de réis que prometi a quem desfaça a meada.
Mas o infeliz, não há-de crescer sem pai e mãe e temos aqui ocasião de aceitar do Destino o que a Natureza nunca nos quis dar. Se estiveres de acordo…
Oh! Homem, mas eu não penso noutra coisa desde que foi encontrada a criança. Até já fiz promessas se não se descobrir quem abandonou o menino. É claro que será “Jerolme”, como o pai e terá a mãe Emília do Ó.
Fala às autoridades e mete o dr. Angelino a mexer já os papéis para que tudo seja legal.
Terá de ser baptizado quanto antes, não vá o diabo tecê-las.
A conselho do dr. Angelino, foi feito o registo do menino a quem foi dado o nome de Jerónimo do Ó Ventinhas Pé-Curto.
Quanto ao local e data do nascimento, bem como filiação, o feitor deixou tudo aos cuidados do Advogado e Conservador, para que o menino passasse a ser, oficialmente, seu filho e da sua mulher Emília.
E assim foi feito, em meados de Maio de trinta e dois, no Registo de Portel.
O “Jerolme” do Ó, cresceu, fez-se uma criança forte e saudável, distinguiu-se na escola como um dos melhores alunos do prof. Américo, aprendeu a andar a cavalo ainda menino e, querido de todos no Monde dos Ciprestes, já rapazote e depois estudante de Veterinária, em Lisboa, nunca deixou de passar férias no Monte.
Conhecia todos os trabalhadores e nunca deixava de salvar, quando era saudado.
Acabou por casar com a herdeira do Monte dos Ciprestes e sempre ali teve casa, mesmo depois de ter de mandar os cinco filhos, com a mãe, para Lisboa, onde podiam continuar os estudos.
Durante toda a vida, o Chico das cabras nunca deixou faltar em casa do senhor feitor, os bons cabritos, os melhores queijos e o melhor leite das redondezas, como ele não se cansava de dizer.
Várias vezes acompanhou o sr. dr. Veterinário nas vacinações do gado e seguiu, sempre, com orgulho e comoção as cavalgadas e torneios em que participava o menino Jerolminho, depois sr. doutor.
Até que um dia…chegou a notícia de que nos fundos do figueiral, nos confins da herdade de baixo, o Chico das cabras se pendurara numa corda.
O senhor feitor, sentiu um baque no coração e, já de avançada idade, pediu que o levassem ao local, pois queria ver e analisar o ocorrido, antes de avisar o dr. Jerónimo, já médico veterinário, pai dos seus netos e dono das herdades do Monte dos Ciprestes.
Mandou parar a charrete e apeou-se, junto do enforcado.
Abriu-lhe uma das mãos e retirou um papel pardo, enrolado, que meteu no bolso do colete.
Reparou que a outra mão do morto apontava para o chão, onde pôde observar os contornos de uma campa.
Baixou a cabeça, respeitosamente, e mandou que depois de seguidos os preceitos legais, uma vez que o Chico não podia ser enterrado em terra benzida, do cemitério, por ter posto fim à vida, devia ser enterrado ali, debaixo daquela figueira.
Depois, já em casa, leu o papel que alguém escreveu ao Chico das cabras:
Agradeço ao senhor “Jerolme” e sua defunta mulher, tudo o que fizeram pelo nosso menino; meu, porque o fiz e vosso porque o criaram, estimaram como filho e fizeram homem.
Peço perdão pelas juras falsas que lhe fiz quando me perguntou se sabia alguma coisa sobre a pastora dos patos – a mãe do nosso menino - que morreu ao parir e está enterrada aqui debaixo desta figueira.
O último favor é que me mande enterrar aqui junto da pastora e nunca revele ao nosso menino quem foram os pais que o geraram.
Ele, um dia há-de encontrar-nos para nos perdoar.