terça-feira, 29 de setembro de 2009

Os pinheiros do Vale da Cal

Mal acabava de transpor a porta da igreja, no fim da missa do primeiro domingo da Quaresma, quando ouviu a voz do Abílio do Vale Perto a chamar padrinho.

Voltou-se, de imediato, o Ti’ João Pisco e, ao pedido da bênção, pelo afilhado, respondeu, como de costume: Deus te abençoe.

E dali seguiram, lado a lado, até à taberna de baixo, onde se acomodaram, na mesa do desvão da escada, a fim de terem uma prosa, como adiantou o Abílio.

O padrinho sabe que andam a cortar na minha do Vale da Cal; é o primeiro corte depois da morte do meu falecido pai e penso que os pinheiritos não foram mal vendidos.

São uns senhores do Vale de Mação que, além de sérios e cumpridores, têm cuidado com os estragos que fazem nas courela e, além do mais, nenhum outro se chegou ao que eles me deram.

Gostei dos homens e fechámos o negócio.

Ora o que lhe quero falar diz respeito aos três queimados que temos lá, na nossa estrema. O padrinho dirá, de sua justiça: ou se cortam e recebe a sua parte, ou se deixam ficar e continuam queimados.

Com certeza que fizeste as coisas pelo melhor, respondeu o Ti’João. Já agora, pode saber-se quanto recebeste por cada pinheiro?

Claro! Considero o meu padrinho como parte interessada no negócio: duas notas por cada pinheiro sangrado, salvo os três queimados, que ainda não foram entregues.

Queriam dar-me os cento e oitenta, mas a boa localização, praticamente dentro da estrada, e a certeza de que não os deixaria ir por menos um centavo, levou os homens a chegar-se à conta certa.

O Ti’João coçou a cabeça, por baixo da boina, revolveu o pauzito que apertava entre os dentes, fixou-se no afilhado e perguntou: então e a rama?

É claro que a pergunta não esperava resposta. Mas teve-a:

A rama de um pinheiro será para mim, a de outro, que cairá para dentro da sua, lá ficará. A do terceiro, que será derrubado sobre a estrema, será para os dois.

Gosto de ouvir-te, afilhado. És mesmo filho do teu pai, que Deus haja: sempre cuidadoso e cauteloso, prevendo tudo, preparando todas as coisas com cuidado!...Ah, como me lembro do compadre, embora nem sempre nos déssemos como Deus e os anjos; mas, verdade seja dita, mal, nunca nos demos.

Mas, além dos queimados, o padrinho pode querer vender todos os sangrados da sua courela. Isto é modo de falar, que nem ninguém me encomendou o sermão, nem eu o preguei.

E os homens lá do Mação estarão dispostos a dar-me as duas notas por cada um?

A isso não posso responder-lhe, padrinho. Eles, amanhã, estarão a cortar na minha; é questão do padrinho ir lá falar com eles. Pelo menos vai a saber com o que conta.

E tu, não queres estar presente? É que não me parece nada má essa tua ideia, além de que, até hoje, os meus pinheiros não ouviram mais de cento e oitenta e cinco mil réis, cada um.

Parabéns, afilhado, o meu compadre, e teu pai que Deus haja, há-de estar vaidoso de ti, pois estás a mostrar-te um verdadeiro filho de quem és.

Bondade sua, padrinho. Faz-se o que se pode; e se um homem não zelar pelo que é seu, levam-lhe coiro e cabelo e ainda ficam a rir-se nas suas costas.

Amanhã, ao sol-nado, encontramo-nos lá no Vale da Cal. Está bem, padrinho?

É melhor passares lá por minha casa; fica-te em caminho e, depois de matarmos o bicho, dividimos o caminho a meias, como costuma dizer-se; de prosa, até custa menos a chegar lá. Isto se não te importares e a companhia te agradar.

Ora essa, padrinho. Lá estarei e até amanhã. Recomendações à madrinha.

Igualmente para a tua mulher e vossos filhos, que estão a acabar a escola, não é?...

O Abílio deu voltas, na cama, para descobrir o que movia o padrinho na sua direcção; sempre fora arredio e sobranceiro e agora descia do pedestal?... Mas por que cargas de água?... E aquela dos miúdos a acabar a escola?...

O Ti’João andava, havia tempos, para se dirigir ao afilhado. Sabia que ele já fora ao Mação saber quanto custava o ensino no colégio que acabava de abrir, que já estivera na Queixoperra, em casa de um parente que trazia lá um filho havia um ano, e que até já apalavrara uma casa, na vila, para hospedar os filhos.

Aquela viagem caía como sopa no mel, para saber coisas e substituir-se ao genro, que não preparara nada: estava decidido que os seus netos também haviam de vir a ser muito mais do que ele e o dinheiro dos pinheiros do Vale da Cal iria ser reservado para esse fim.

Na viagem de ida e regresso o Ti’João confessou todo o seu interesse em saber coisas sobre o colégio e as possibilidades de mandar estudar os seus netos.

Agradeceu muito ao afilhado e pediu-lhe que fosse reservado sobre aquela prosa, pois queria saber até onde chegaria o seu genro. E, na altura própria, os netos do Ti’João foram para o colégio e, ainda em vida do avô, foram os dois primeiros a alcançarem uma formatura.

Desejamos que os muitos que se revêem nesta breve história, nunca tenham esquecido, ou renegado, os “Abílios” das nossas terras.