Ao tempo, o ti’Artur era homem de trinta e poucos anos e vivia no Carvoeiro, onde sempre viveu, até que, prematuramente, traído pelo fígado, se foi embora.
Casou com a ti'Conceição, que namorou e conseguiu trazer dos lados de Proença, duma aldeia chamada Galisteu.
A regente escolar, deixou tudo para se dedicar ao marido e filhos, que começaram a surgir logo após o casamento.
Primeiro uma menina, a seguir o Manelito, que ainda estou a ver, muito ranhoso e choroso, atrás da mãe, que se desdobrava a tratar dele e a aviar os fregueses da loja, nos baixos da casa.
Homem de sete ofícios e amigo de toda a gente, podia amedrontar quem o não conhecesse.
Estava farto de perseguições de polícias e fiscais, que seguiam de perto o contrabando, em que se ocupava o ti’Artur.
Por trás de um imponente bigode, escondia-se um coração de enorme grandeza. No primeiro o ti’Artur tinha muito orgulho, no segundo, como aliás no resto do corpo, nem pensava.
Com o seu ar de “ciganão”, negociava em tudo. Não escondia de ninguém a sua atracção por tudo que cheirasse a risco e a aventura. Tinha enorme prazer em vender “à socapa” cortes de bombazina, garrafas de Domecq, perfumes Tabu e cartas espanholas. Também nunca faltavam caramelos de “nuestros hermanos”.
Era o taxista da terra e nunca recusava um serviço, salvo se estivesse ausente, ou tivesse abusado da bebida e já se encontrasse no seu “estado normal”. Tinha respeito pelos clientes – bêbedo, não conduzia o táxi -, mas nunca se coibia de andar de mota.
A “Triumph” era um dos seus encantos. Era uma das coisas que mais estimava. Fazia gala de percorrer a estrada, desde o Vale de Santiago até à Sanguinheira, quase todos os fins de tarde, com escape quase livre, camisa aberta e satisfação estampada no rosto.
Toda a gente abria caminho, à mota do Artur.
Nas várias férias que passei no Carvoeiro, tive o privilégio de ser mais um dos amigos do ti’Artur, como eu carinhosamente lhe chamava; ao que ele retribuía, apresentando-me como o “sobrinho Zeca”.
Demos muitos passeios, na mota, e nunca tivemos percalços, de maior. Com companhia, era cauteloso; para além de ser um excelente condutor.
A casa do velho Cavaco, onde eu ficava aboletado, era próxima da loja e um pouco ao lado da estação dos correios, onde a Zita – hóspede da casa do ti’Artur - era encarregada. O meu tempo dividia-se, entre a loja e os correios.
A respeito dos dois pólos de atracção dos meus dias, o velho Cavaco, que ganhara a vida de terra em terra, como capador, tinha as suas prosas e dava as suas recomendações:
Vais para casa do Artur namorar a filha do “Zaranza da Feteira”; é das coisas mais bonitas que por aí se encontram, mas tanto quanto sei, é dois ou três anos mais velha e sabe muito mais que tu - todo o cuidado é pouco!...
O Artur é um homem bom, muito habilidoso nos negócios, mas com a pinga, perde-se!...Isso é mau, além de que perde o respeito por si próprio e até pelos que lhe são mais chegados: mulher e filhos.
Vai com ele para onde quiseres; és bem formado e estou seguro que nada de mal te poderá acontecer. Porém, não andes com ele bêbedo em cima daquela mota e evita pegar em qualquer coisa de menos legal, que tenha em casa.
Sempre fez gala de brincar com os guardas e os fiscais, mas há-de queimar-se um dia – e nessa altura arrastará alguém -.
Na altura pareceram-me duros e até injustos, os conselhos do Ti’Cavaco; todavia, à distância dos anos e dos factos, é com o maior carinho e gratidão que relembro cada palavra, de sabedoria, dum velho amigo.
Nunca me arrependi de ser amigo do Ti’Artur e das muitas horas de prosa que tive com a Maria Luísa, dos correios – a Zita -, mas nada posso criticar nas recomendações do meu velho hospedeiro.
Nos meses de Agosto, o Carvoeiro era um autêntico entreposto das mais variadas gentes, vindas de todos os pontos do mundo: do Brasil, Venezuela, América, África do Sul, Congo Belga, colónias e países da Europa.
Com enorme gosto e imensa curiosidade, escutava as histórias de cada um – aventuras e desventuras, sucessos e azares, verdades e mentiras-.
O ti’Artur reparou no interesse e sofreguidão com que eu escutava e perguntava tudo o que dissesse respeito ao longínquo, as considerações que fazia, baseado nos estudos da Geografia e a maneira como aguentava conversas com quem eu nunca vira, sobre ambientes onde nunca estivera.
Um dia convidou-me para uma pescaria, nuns pegos da ribeira do Aziral, no termo de Envendos, no limite do concelho de Proença.
Iríamos de mota até à Venda Nova e dali em diante, seguiríamos, a corta mato, até à ribeira. Saíamos ao romper da manhã e íamos encontrar o resto do grupo, ao nascer do sol.
Conhecia apenas o ti’Artur; fiquei a conhecer umas trinta e tantas pessoas, que faziam a sua vida em doze países diferentes.
Devo ter feito milhares de perguntas, posso ter sido muito maçador, não cheguei a lançar o anzol à água, mas comi muito peixe frito, grelhado e em caldeirada.
Ao anoitecer, voltámos até junto da mota e, quando chegámos ao Carvoeiro, o ti’Artur pôs-se na minha frente, e disse-me: Zeca, vê que hoje, ao contrário do habitual, não estou bêbedo.
Queria, melhor, fazia todo o empenho em arranjar uma coisa que lhe causasse o maior prazer. Sei que gosta de convívios, como o de hoje, e fiquei encantado com a maneira como se comportou no meio de tanta gente, de tão diferentes meios e com tantas coisas difíceis de aturar.
Agora quero ir consigo, junto do velho Cavaco, dar-lhe nota da maneira como o Zeca se tornou na atracção do convívio, o que muito me honrou; para além de poder mostrar-lhe que não estou sempre bêbedo.
Depois dessas férias, abracei o ti’Artur três ou quatro vezes; normalmente fazíamo-lo em silêncio e com grande cumplicidade.
Tive um choque enorme, quando soube que foi traído pelo fígado, embora não fosse, para mim, grande surpresa.
Depois da morte do ti’Artur, nunca mais senti interesse em voltar ao Carvoeiro.
Até sempre, velho amigo.