terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os pinheiros e a vida


Ainda o sol não tinha aparecido sobre o cabeço do moinho, já o Ti Zé Lourinho trazia aberta a água do açude da Ribeira e regava as belgas de batatas, no chão do meio, da Cabeça Gorda. 

Água de partilhas é para abrir logo ao sol-nado, dizia o meu avô.

Se só se tiver meio-dia, também pode calhar ao sol-posto.

Sentiu uma restolhada, ali perto, e assomou-se, do meio da horta, para ver o que se passava. 

Era o Ti’Jorge, encarregado da Firma de madeiras Carvalhos & Aparício, de Alferrarede, que acabava de parar a bicicleta motorizada e se dirigia na direcção do meu avô.

Atravessou o chãozito de cima e deu a salvação, da ponta da parede: Bons dias, Ti’Zé Lourinho! Deus o guarde!

Depois de ouvir a salvação de resposta, o Ti Jorge foi dizendo que já tinha mandado recado e também já o procurara lá na taberna, mas ainda não tinha calhado encontrarem-se. 

Sabe, Ti’Zé Lourinho, é que vamos hoje começar a cortar o pinhal, ali na Travelinha, na do Zé Pardal e, ao lado, na do Augusto Marques. 

É pouca madeira para o que precisamos e pensei que seria boa altura para vender os seus, aqui destas cinco que me parece que estão todas ligadas e pegam com a área que vou cortar. 

Podemos juntar o Lavadouro, cabeço do Vale das Lousinhas, Lomba, Brejinhos e Brejos. O seu pinhal está em bom corte e talvez seja boa altura para vendê-lo.

Era sobre este assunto que queria dar-lhe umas palavritas. Se estiver vendedor e achar que é altura de falarmos. 

Ah! Quando dei parte ao "patrão velho - Sr. Aparício" que vinha procurá-lo, ele desfez-se em cumprimentos para o senhor e mandou dizer que um dia destes vem por cá ver se os seus chouriços ainda são dos melhor apaladados e na sua adega ainda há do bom, daquele que na última vez o deixou de gatas.

Obrigado, Ti’Jorge, por tudo: Dos pinheiros falaremos todos juntos, pois quero que o meu genro esteja presente; sabe, estas coisas já são mais com ele e até o meu neto mais velho, que agora está cá de férias do colégio, gosta de ouvir.

E não quer lá ver que o diabo do moço se péla por uma boa negociata.

É verdade que o Aparício é um velho amigo: amizades feitas e vindas das ceifas de Santa Eulália, onde andámos os dois.

Ele safou-se, tem uma bela firma, é um senhor! Mas merece tudo o que de bom possa ter e vir a alcançar!

Eu, para aqui fiquei, a regar estas batatas, arranjando para comer, para mim e para os meus. Um homem, aqui, nunca sai da cepa torta.

Sabe, é disto que quero desviar os meus netos; desta vida, mais ou menos desafogada, com um cento a mais, ou a menos, de contos de réis, e, no fim de contas, vendo só até onde os olhos alcançam. 

Os meus netos hão-de ir mais além; hão-de subir até onde os outros são capazes de ir e não hão-de gastar os dias, os meses e os anos, a regar batatas, a comprar mais uma, ou outra courela, e a vender por mais dez ou quinze tostões as bicas do pinhal, ou as árvores, para corte.

Da última vez que estive com o seu patrão, dei-lhe, num particular, conhecimento destas minhas ideias, que, cá na Terra, não são muito bem aceites pela maioria dos meus compadres, sobretudo os que com algum esforço, podiam até arranjar meios para mandarem estudar os filhos e os netos. 

Fiquei encantado com o que me disse e nunca mais poderei esquecer que até se prontificou a ajudar-me, se de ajuda vier a precisar.

Não esperava menos do velho amigo Aparício.

Veja se o traz cá um dia destes; é que têm andado para aí uns diabos, algures aí de cima, a falar com o meu Amorim, sobre o pinhal e, que fique bem claro: pelo mesmo dinheiro, quem os irá pagar é a firma Carvalhos & Aparício, mas, negócios são negócios e quem mais nos der, mais amigo é, como se costuma dizer, sem que isso venha alterar a nossa velha amizade.

Gosto muito de ouvi-lo; até dá gosto ouvir gente da sua idade falar como o senhor fala. Subiu muito na minha consideração, embora já o tivesse como homem honrado, inteligente e bom zelador, coisa que não fica mal a ninguém. 

Mas, o que aqui me traz, mesmo, são os seus pinheiros, que me parece rondarão o milheiro, nestas cinco courelas; as daqui e as outras, para lá da ponte.

Podíamos juntar-nos, hoje ao pôr-do-sol, lá em sua casa, ou na adega, como quiser e falávamos do assunto.

E quem sabe se não teremos uma surpresa?

A mim parece-me bem. Lá os esperaremos, cheios de coragem, porque os do Chão de Lopes não querem perder estes pinheiros e, segundo um zunzum que me chegou aos ouvidos, estão alguma coisa em riba dos que disse que vai começar a cortar hoje.

O meu Amorim ainda só ouviu, não pediu nada!

Eu já lhe tinha dito para ir procurá-lo, mas ele nem tem tempo para se coçar.

E, segundo me parece, o Jorge não tem andado por estas bandas.

Então, o mais tardar até mais logo, por volta do sol-posto. Vou ter que ir lá à Serra, à do Manel, falar para o escritório e, se por lá estiver o patrão, aproveito para falar com ele e chamá-lo, pois nestes negócios maiores gosto de tê-lo ao pé de mim.

E, tratando-se de velhos amigos, ainda mais razão para dar cá um salto, acompanhado pelo filho, patrão Zé, se não estiver fora.

Depois passo palavra, logo que saiba alguma coisa. Fique com Deus, Ti’Zé Lourinho!

Vá com Deus, Ti’Jorge! Até mais ver!

Logo que acabou de regar as batatas, foi, ribeira acima, ao encontro do genro, dar-lhe notícias da conversa e combinando a estratégia para a noite.

Estou convencido que o Aparício aparece mais o filho e talvez seja bom que venha.

Vê se sabes, ao certo, quanto é que eles deram ao Zé Pardal, ou ao compadre Marques e depois logo vemos que posição devemos tomar. 

Ah! Gostava que o Zé estivesse a presenciar o negócio; ele gosta e só lhe faz bem assistir a estas coisas.

Não é todos os dias, nem sequer todos os anos, que se vendem uns bons centos de pinheiros; acho que eles querem os das cinco lá da ribeira, ali das do Lavadouro, destas da Lomba e Brejinhos e da dos Brejos. 

Mas não metem o machado nos pinheiros do lado de baixo do caminho da Cabeça Gorda; aqueles hão-de estar ali para qualquer coisa de especial.

E, se não estão sangrados, não fazem parte. O negócio é pelos sangrados todos.

Está bem, parece-me boa ideia ir saber quanto deram pelos que andam já a cortar; já se houve para lá o barulho.

Depois talvez fosse bom dar um toque aos do Chão de Lopes, pedindo-lhes a última palavra, se quiserem dá-la; sempre é bom ficar a bem com todos.

Nunca se sabe quando precisaremos deles e até podem ajudar a meter-nos umas coroas bem boas no bolso.

O que vamos vender é todos os sangrados a varrer, alto e mau. Nem precisamos falar naqueles que disse, pois nunca nenhum lhe meteu ferro para resiná-los.

O meu pai, despachou-se e foi para casa, para procurar as informações.

Não precisou de ir muito longe, pois no caminho encontrou o compadre Marques que, sem grande dificuldade, lhe disse que pelos dele deram noventa mil réis cada um, mas que não fizesse uso, pois pensava que ao Zé Pardal não deram à conta certa.

Confirmavam-se, assim, as palavras que o Zé Pardal já dera ao tio João: acho que deram, ao meu sobrinho, oitenta e sete e meio por cada um, disse o vizinho João Pardal, tio e tutor do Zé.

Ao jantar o meu pai deu as notícias ao meu avô e sugeriu que tinham de começar na nota certa., para poder discutir até aos noventa e cinco, ou noventa e seis.

Os nossos têm mais madeira, no geral, é claro, pois também há lá fracotes, estão muito bem situados e sem arrancar do mesmo sítio têm ali, à mão, mil, cento e cinquenta e quatro pinheiros. 

Já estive a ver, mais o Zé, e foi esse o número de sangrias que pagou o Manel Padre, na campanha da resina.

Pela nota certa, seriam cento e quinze contos e quatrocentos mil réis, mas podemos pedir, os cento e vinte contos.

Dá, por cada pinheiro, cento e nove escudos e nove tostões.

Depois podemos baixar à nota certa, mas vamos a ver o que dizem aqueles diabos lá do Chão de Lopes. 

O Zé vai ter no bolso um papelito com as contas já feitas e também papel e lápis, para fazer outras se for preciso. O que lhe parece?

Está tudo bem pensado; dá um jeito ali na casa da adega, para estar tudo preparado, se eles por aí aparecerem.

E não te esqueças de avisar o Zé, para estar por aí, preparado para o que der e vier.

O Ti Jorge, foi lá a casa, informar que falariam no dia seguinte, pois o patrão fazia questão de vir negociar com o velho amigo e, afinal, era o maior negócio na Serra, desde que se lembrava.

Mas hoje não podem vir; estarão cá, amanhã, antes do pôr-do-sol, se não virem inconveniente.

Antes de partir, molhou a garganta e despediu-se.

Meu pai chegou às falas com os homens do Chão de Lopes que disseram que estavam interessados em cinco ou seis centos de pinheiros e podiam mesmo comprar todos, mas neste caso cerca da metade só será cortada dentro de meio ano. 

A última oferta é de noventa e seis escudos cada, ou noventa e sete e meio, no caso de comprarem todos com o corte dentro de meio ano e pagamentos na altura dos cortes.

Foi, com base nestas ideias, que o meu avô, à ceia., disse para o meu pai: Ouve lá, Amorim, quanto é que se pode arranjar de juros? Na banca e aí aos habituais?

E se metêssemos em condições, ao Aparício, um prazo de pagamento, em três vezes?

Por exemplo: metade, agora, um quarto, em Setembro e o resto no Natal? Dá os cento e vinte contos e fazemos essas condições de pagamento.

Que te parece? Então e tu, Zé, não dizes nada?

Parece-me uma boa ideia. Se o dinheiro não é preciso já, pode-se valorizar no negócio.

Fazendo contas a juros de dez por cento, pagos aí por particulares, trinta contos em quatro meses e outros trinta em oito meses, dão três contos de juros. 

Ora, se em vez dos cento e quinze contos e quatrocentos, se fizer negócio por cento e vinte contos, há lucro de quatro contos e seiscentos.

É muito boa a ideia do avô, mas deve ser um trunfo que só se joga se for preciso e mesmo assim tem de se começar a pedir cento e vinte e cinco contos para poder vir a baixar alguma coisa, como vocês aqui dizem, quanto às palavras de rei e às rachadelas das diferenças.

Meu pai e meu avô olharam-se, sorriram e parece que muito mais importante que isso foi o bichinho que nunca mais me deixou e que, apesar de ter avançado para Professor, nunca mais perdi o interesse pelos negócios:

Ainda na Escola do Magistério, criei, organizei e dirigi a cantina e o serviço de folhas e fotocópias das lições.

Na escola da Costa do Castelo, fui Director e Secretário de Zona e impulsionador da cantina. Todos os anos se fazia o passeio da escola e outras actividades circum-escolares.

No serviço militar, na Guiné, como alferes miliciano mais antigo e comandante interino da Companhia, era o responsável pela cantina e gestão do rancho.

Depois de voltar ao meu lugar na escola, em Lisboa, comecei imediatamente a programar a aquisição da casa dos Olivais, a procurar alternativas a um curso académico, que apenas me faria passar ao ensino liceal e logo que apareceu uma boa hipótese, segui-a: 

Frequentei um curso, organizado pelo Grémio dos Industriais de Especialidades Farmacêuticas e fiquei muito bem classificado, sendo convidado, por diversos Laboratórios, como Delegado de Propaganda Médica. 

Escolhi um Laboratório com uma organização social exemplar e uma forte vertente comercial. Ao fim de dois anos fui convidado para organizar e supervisionar uma equipa de vendas, em farmácias, de especialidades farmacêuticas e produtos de venda no balcão.

Durante os sete anos seguintes, frequentei dez cursos de aperfeiçoamento e, já responsável de topo, fui para a área da Grande Distribuição, que ensaiava os primeiros passos em Portugal.

Estive, como director comercial numa pequena empresa, que, em sete anos, cresceu vários centos por cento, vindo a acabar por ingressar, de novo, na Indústria Farmacêutica, num dos maiores Grupos Farmacêuticos, onde assumi as funções de director comercial. 

Durante mais de vinte anos, trabalhei em íntima ligação com a Administração até que, aos sessenta e cinco anos de idade, me aposentei.

Visitei muitos clientes e fiz muitas vendas, acompanhei muitos profissionais, desde a selecção, preparação e reciclagem, à promoção. 

Nunca senti grande apetência para trabalhar por conta própria e nunca invejei os lucros que terei acumulado e ajudado a conseguir nas empresas onde trabalhei. 

Nunca senti a minha consciência violentada nos negócios em que participei e dirigi.

Da centena e meia de profissionais que comigo se iniciaram e sob meu comando e orientação actuaram, guardo muito mais recordações positivas que negativas.

Considero muito gratificante a ajuda que pude dar a quem começou nas lides, comigo, e acabou nos altos quadros de multinacionais de topo.

Nunca me senti diminuído pelos que, profissionalmente, subiram mais alto que eu.

Considero-os meus embaixadores e vejo-os com orgulho.

Anos mais tarde; muitos anos mesmo, já o meu avô e o senhor Aparício, nos tinham deixado, estivemos um dia, na adega lá da Serra, juntos com o senhor Zé Aparício e recordámos aquele negócio dos pinheiros da ribeira e a forma como o garoto, que andaria pelos doze anos, arquitectou aquele esquema e explicou aqueles juros de três meses, seis meses, etc., com uma desenvoltura que maravilhou os homens dos negócios.

Eu senti muita honra nos elogios que ouvi, porém, o prazer e sensação de vitória via-se, na cara de meu pai, já então com a visão diminuída e em silêncio. 

Estava ali personificada a vitória da sua vida, partilhada sempre com seu sogro e que ganhou forma e força desde o dia em que decidiram trocar as vidas dos três garotos, transformando gente condenada às condições que os campos podiam proporcionar, em homens cultos e senhores dos seus destinos.

E fazer nascer a esperança, sentir o valor da realização quando se sobem os degraus que a vida vai colocando à nossa frente, dar a mão aos que nos acompanham, sem reservas nem receios que eles venham a passar-nos à frente, é, não só gratificante, como a maneira mais segura de não ter insónias e olhar para trás, com satisfação, alegria e tranquilidade.