Lá em casa não havia livros; também não eram precisos, pois, se os houvesse, ninguém saberia lê-los.
Meus avós nunca aprenderam a ler e meus pais, cada um por seu lado, seguiram-lhes o exemplo. Não havia escolas nas aldeias daqueles princípios do século passado e poucos tinham acesso ao ensino.
As raparigas mais prendadas aprendiam costura, nas mestras, e os rapazes aprendiam um ofício, ou partiam; para a cidade grande - Lisboa - e para o Brasil, ou África - por norma o Congo Belga -.
Os outros, que eram a quase totalidade, ficavam-se pela agricultura - ao tempo já definida como “a arte de empobrecer alegremente” - e à espreita de um bom casamento, com algum bom partido, ou de alguma herança familiar.
Os mais pobres esmolavam, dia a dia, uma jorna, em casa de alguém mais abastado, para ganharem para a bucha e para mulher e filhos, normalmente em número avantajado.
Na casa de meus avós havia umas folhas - poucas, ao que recordo – ainda cozidas, mas muito ratadas nas pontas, com umas figuras todas pretas e outras meio acinzentadas.
Penso que seria o que restava de uma Cartilha Maternal que a minha tia trouxera de Lisboa, onde estivera internada no Hospital de Dª Estefânia, até pouco antes de morrer, ainda jovem.
Havia trabalho todos os dias e quase sempre andavam trabalhadores de fora a ajudar meu avô e meu pai, que nunca precisaram de dar dias fora de casa.
O destino das crianças, meu e de meus irmãos, seria o trabalho no campo, com o objectivo de manter e aumentar o património herdado, fazer bons casamentos e ter filhos para continuarem o ciclo daquele tipo de vida que se mantinha e renovava desde os tempos mais remotos.
Tudo muito semelhante ao quadro rural que mais tarde vim a aprender com os estudos da História da Idade Média - os servos da gleba, mantiveram-se, afinal, durante séculos.
Porém, num dia, que o meu avô dizia que não mais esqueceria, quando roçava mato na encosta da serra do Corvo, acompanhado pelo meu pai e pelo Ti' Amorim Maia, apareceu o compadre Armindo Pereira, da Queixoperra - aldeia de onde era natural meu pai -, que por ali passou na renova do pinhal e, encostando-se a um pinheiro, nos convidou - a mim e a teu pai - para uma conversa que havia tempos preparava, mas ainda não calhara vir a propósito.
Pois eu queria ver se os compadres pensam em mandar estudar os garotos; o Ti'Zé não tem outros netos e parece-me homem para querer dar aos seus o melhor. Ora aqui, eles não irão muito além disto que temos nas mãos: do ferro da resina, do enxadão, da picareta, ou da roçadoira.
Abriu o colégio, no Mação, e o meu já lá anda há dois ou três anos e estou muito satisfeito.
Porque não manda o compadre o seu Amorim lá a minha casa que eu lhe explico tudo, desde custos a outras coisas que vale a pena ouvir de quem já passou por elas?
O meu avô acrescentava, então:
Eu cheguei-me mais ao compadre Armindo e, com ares de quem ainda deseja manter segredo, disse-lhe que, depois de falar com o Amorim, o mandaria a casa dele. Para já ficava a conversa por ali e ficávamos muito agradecidos, pois foram das melhores palavras que se lembrava de ter ouvido, alguma vez na vida.
Já antes falara com o compadre Jesuvino, teu padrinho, sobre o assunto e quase me arrependi de o ter feito: o homem parecia o diabo, em figura de gente; parecia que eu estava a dizer a maior barbaridade que um homem pode imaginar.
Então o compadre quer mandar estudar quem tem tanto de seu para se entreter e vir a ser dos maiores proprietários cá da terra! E morgadas bem remediadas ainda juntarão muita coisa para fazer umas casonas, onde nada faltará! Deixe-se disso, compadre! Porque hão-de os seus netos vir a ser mais que seus pais e avós? Não lhes tem comprado muitas coisas, além das que herdou? Ensine-os mas é a trabalhar!.. Olhe o meu afilhado, tem sempre a minha porta aberta e parece que não iria ficar mal: aprenderia um bom ofício e sabe-se lá o que o destino tem reservado para ele!...
Mais tarde, ao estudar o episódio do “velho do Restelo”, quase o aprendi de cor e não conseguia abstrair-me da figura do meu padrinho, que, mentalmente, ficou na minha memória como ilustradora esta personagem fatídica dos Lusíadas.
Mas o coro dos que criticaram o meu avô e meu pai por andarem a dar aos seus o que eles nunca tiveram e a querer fazer deles o que eles nunca tinham sido, não acabava ali.
Até que o meu pai depois de ouvir o compadre da Queixoperra que trazia o único filho que tinha no colégio, depois de perguntar na Carregueira e até em Mação, um dia aconselhou-se com o padre.
Depois da missa, pediu-lhe uns minutos em particular e manifestou a sua incompreensão por tão grande número de pessoas, algumas delas até de posses, que se manifestavam, aberta e fortemente, contra a ida dos filhos para o colégio.
O senhor prior, confessava o meu avô, ouviu serenamente e disse: olhe senhor Amorim, vozes de burro não chegam ao céu e também não nos devem incomodar, porque somos mais inteligentes que os que as pronunciam.
Não é um conselho que lhes dou, a si e ao seu sogro: é uma ordem! Não mandar estudar os filhos e netos, podendo fazê-lo, é uma falta grave; é, digo mesmo, um pecado, que só tem desculpa para os ignorantes, que já vi que não é o vosso caso.
Se precisarem de mim para qualquer coisa, estou à vossa disposição e, se quer que lhe diga, ainda muitos lhes hão-de agradecer o exemplo que vocês serão, para esta e outras terras. Deus os ajude a conseguir dar aquilo que desejam aos pequenos e lhes mantenha a saúde e qualidades para subirem alto na vida.
O meu avô sempre aceitou as opiniões de quase todos e, disfarçadamente, sentia-se muito orgulhoso quando outros, com tantas ou mais posses que ele, torciam a orelha, como ele dizia, acrescentando:
Agora torcem a orelha, mas ainda lhes dói mais, porque não deita sangue.
Morreu feliz, porque viveu o suficiente para ouvir, um dia, um telefonema a dizer que o seu neto era professor - o primeiro, da aldeia, a completar o curso. E comentava:
Quase todos já me deram os parabéns. Mas há dois ou três que não o fizeram nem nunca o farão. Felizmente houve quem falasse mais alto que eles e espero que os beneficiados venham a ter orgulho de ter servido de exemplo para muitos outros, cujos pais se aconselharam connosco, sobre o colégio.
Quanto ao meu padrinho, nunca consegui compreender o que pensava, no fundo, este homem que sabia ouvir, raciocinava com facilidade e uma relativa elegância sobre diversos temas, mas ao tocar-lhe nos assuntos relativos a estudos, conhecimentos e evolução social, tornava-se reservado e agressivo.
Será que era um homem de complexos recalcados, uma mente inaproveitada e desajustada da vida que pôde ter? Teriam os reflexos dessas situações levado à rejeição de ir mais longe e aprovar que os outros fossem?
No próximo ano de 2012, completam-se os cem anos do meu padrinho e também o meu pai seria centenário se aos noventa e seis anos não tivesse partido. A minha homenagem, para ambos, e a minha confissão e penitência por nunca ter compreendido, nem sequer percebido, claramente, este "velho do Restelo", como muitos outros que poderíamos referenciar por essas aldeias fora.
Porque é que estes homens, com cultura mais que mediana para o seu meio, encapsularam e hostilizaram o progresso?
Atavismo? Imobilismo? Crença?
Ou, simplesmente, ignorância.
Fica o desafio aos sociólogos, para que possam esclarecer este fenómeno que, pelos vistos, é muito vulgar e afectou, transversalmente, muitos estratos da nossa sociedade, nos idos de meados do século passado.