(À guisa de introdução da II série de Histórias de gente simples)
As relações de trabalho nos anos 60 e 70 – antes do 25 de Abril -, passavam por profundas transformações, a que não eram alheias as estruturas sindicais da Farmacêutica, dos Bancários e dos Motoristas.
Destes movimentos acabara por emergir a Intersindical e sucederam-se as convenções colectivas de trabalho a um ritmo alucinante.
Era a alvorada de novos tempos.
Um professor, regressado da guerra na Guiné – são e salvo, na aparência -, acabado de casar e pai de uma menina e em vias de segundo filho, desempenhava as funções numa escola do centro de Lisboa, onde era Director, Secretário de Zona e leccionava o Ciclo Complementar – 5ª e 6ª classes.
A esposa, igualmente professora, tinha sido colocada, por nomeação ministerial, no recém inaugurado bairro social dos Olivais-Sul, onde o casal habitava uma casa atribuída num concurso de habitações, em regime de propriedade resolúvel, pela Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional.
Uns tempos depois de estabelecido este enquadramento familiar e social, chegou uma carta da Legião Portuguesa a convidar o tenente-miliciano, na disponibilidade, para instrutor – aos domingos, de manhã, com uma remuneração mensal de 600 -.
Nem sequer respondeu, não porque fosse a Legião, não porque não desse muito jeito a remuneração que, ao tempo não era nada desprezível; apenas porque na sua cabeça estava implantada uma forte aversão por tudo que fossem fardas e militares. Que, aliás, se manteve pela vida fora e era de tal forma marcante que sempre se lhe afigurou como uma das marcas mais evidentes que a guerra lhe deixou.
Convém, no entanto, esclarecer, que durante os quase dois anos de guerra, por diversas circunstâncias - nos impedimentos do capitão - teve funções que exorbitavam as de um simples alferes-miliciano, assumindo o comando interino da Companhia a que pertencia.
Também, em operações, com ausência de um capitão, assumiu o comando de vários outros alferes e respectivos pelotões.
Passados quarenta anos, arrisquemos uma análise daqueles tempos, não para falar de sindromas pós traumáticos, não para lamentar a falta de apoio dado pelos sucessivos governos aos ex-combatentes que foram obrigados a ir fazer a guerra. Apenas, e tão só, para enquadrar a disposição daqueles que foram mandados fazer a guerra e tiveram, pelo menos, um privilégio: voltar.
Sempre à luz da determinação, espalhada dentro e fora da Companhia, esperando que tal disposição chegasse, mesmo, ao conhecimento do inimigo:
Era provável, seguro mesmo, que não ganharíamos a guerra… o que estava longe de significar que pensávamos que iríamos perdê-la. As populações sofreriam muito, os militares fariam enormes sacrifícios e, ao fim e ao cabo, acabaria por nascer mais um país, onde tudo iria faltar, pois eram fracos os recursos daquela parte de África e das terras com dimensão de pouco mais da terça parte de Portugal Continental, albergando mais de uma dúzia de etnias, desde politeístas a crentes em Deus, de monogâmicos a possuidores de tantas mulheres quantas o dinheiro e as vacas lhe permitissem comprar.
Nós nada tínhamos que nos meter com usos e costumes, tudo faríamos para ter as populações ao nosso lado e uma vez que não solicitáramos a nossa presença nessa guerra, não a desejáramos, nem acreditáramos nela, seguiríamos um único objectivo:
Cumpriríamos e faríamos cumprir as ordens do poder militar instituído, salvaguardando, até às últimas consequências, a integridade física dos que comandávamos e das populações que connosco colaborariam e seríamos inflexíveis no uso da força, usando todos os meios ao nosso alcance, sempre que fossemos provocados, atacados, ou molestados no desempenho das missões que nos fossem atribuídas. Seria, pois, nossa prioridade a defesa da saúde e integridade física de militares e civis que tínhamos sob o nosso comando.
E, felizmente, tudo acabou, no dia em que, já no princípio da madrugada, terminou o espólio dos militares que regressaram sob o comando do Alferes-miliciano, ao quartel da Amadora, tendo o capitão ficado em Bissau, a resolver os últimos assuntos relativos à Companhia regressada no Uige.
Em vez de pernoitarem numa caserna reservada para o efeito, foi dada a possibilidade de fazer a quitação durante a noite e nem um só dos mais de cem militares quis ficar mais uma noite na tropa.
Na companhia de familiares, amigos ou, simplesmente, em grupos, cada um foi ao seu destino, devidamente documentado e quite com as autoridades militares.
Quanto mais depressa terminasse o pesadelo, melhor. Muitas vidas esperavam e muitas esperanças geradas longe de tudo e de todos os que deixaram dois anos atrás, aguardavam aqueles homens que se iriam espalhar pelo País e seguir os seus caminhos.
E, relembrando as palavras do alferes-miliciano: quem resistiu a tudo o que nós passámos, está preparado para atacar a vida e será isso que vamos fazer!... O meu conselho é que comecemos todos por esquecer!…
Passados os vinte e poucos dias, de licença de desmobilização, o professor apresentou-se ao serviço, retomando o seu lugar na escola que deixara, para se apresentar, em Mafra, no curso de oficiais milicianos, quase três anos antes.
Havia que seguir a lista das prioridades, entre os diversos caminhos, maduramente seleccionados, nas longas noites de vigília, sob o peso do silêncio das matas africanas e o aperto das incertezas e vicissitudes da guerra, que se avolumavam na razão inversa dos dias que faltavam para deixar tudo aquilo para trás das costas.
Todos sabíamos que aquela guerra não era nossa e o primeiro objectivo de todos era ver-lhe o fim. Era preciso saber voltar para as terras e as vidas que não viviam havia perto de dois anos, período em que muitos não saíram das matas, nunca viram uma pessoa branca, a não ser militar, e nem sempre receberam as melhores notícias da família e amigos. Era preciso ter força para encarar e seguir o melhor caminho.
De certeza que todos aqueles cérebros estavam cheios de planos de vida a curto prazo, mas localizados bem longe do que todos desejavam esquecer como pesadelo. Cada dia aumentava a ansiedade e havia que gerir, da melhor forma possível, o comportamento de grupo.
Três ou quatro ideias submergiam todas as outras: definir qual a vida que iria substituir a de mestre-escola; definir o rumo e investimento a fazer em estudos; arranjar casa e condições para casar e poder ter filhos; preparar a escola para a esposa; aumentar os proventos enquanto tivesse que continuar a leccionar.
Continuar no ensino, ainda que liceal, não foi opção; havia outras maneiras de ganhar a vida e criar rendimentos mais compatíveis com a vida de família que ambicionava e que pensava ao seu alcance.
Investir cinco ou mais anos num curso de acesso a advocacia, economia ou gestão, passando pelo então emergente curso de Psicologia Aplicada, foi também posto de lado; queria trabalhar, progredir numa carreira e ganhar dinheiro.
Bancário, oficial da GNR ou GF, nunca. Pelo menos com as marcas da guerra ainda tão verdes. Havia uma coisa que era bem remunerada e com possibilidades de progressão: Propaganda Médica e Vendedor Especializado, nas farmácias.
A aquisição de casa começou a ser tratada quando, pouco depois de retomar o lugar na Escola nº10, na Costa do Castelo, em Lisboa, soube de um concurso para 100 fogos, em casas de renda resolúvel, que a Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional tinha aberto, no Bairro de Olivais-Sul.
Foi imediatamente fazer a inscrição e as probabilidades analisadas até à exaustão. A condição de solteiro era, efectivamente, um dos maiores óbices; porém se a situação se alterasse antes de resolvido o concurso, as novas condições seriam tomadas em conta. Havia, pois, em primeiro lugar que casar.
A colocação, em Lisboa, de uma professora com a idade e tempo de serviço da noiva, era difícil, mesmo atendendo à lei de cônjuges. Todavia, pelo menos o lugar de professora agregada, ao abrigo da referida lei, era viável. Mais uma razão para casar.
E foi assim que, três meses depois do regresso da guerra, se realizou o casamento, na igreja do Rochoso, de um casal de professores, que à falta de casa própria foi residir numa parte de casa, em Moscavide.
No início do novo ano lectivo, arrendaram casa em Benfica e a esposa colocada numa escola de Campolide. Esperava já, nessa altura, uma filha.
Esse facto levou à primeira diligência junto da Caixa de Previdência no sentido de alterar a composição do agregado familiar do concorrente que passou ao estado de casado e esperando o nascimento de um filho.
No início do segundo ano de actividade a esposa foi colocada por nomeação ministerial numa escola do Bairro dos Olivais e foi atribuída a casa de renda resolúvel no mesmo bairro.
Pouco tempo depois, a candidatura e selecção para um curso de preparação para Delegado de Propaganda Médica, foram passadas com êxito e, diariamente, durante vários meses, das seis às onze horas da noite, foi frequentado e concluído, com óptima classificação, o referido curso.
O promotor era o Grémio dos Industriais de Especialidades Farmacêuticas e a lista de candidatos foi distribuída a todos os Laboratórios que trabalhavam em Portugal, desde que fossem sócios do Grémio.
Um parêntese para lamentar que não se tenham repetido iniciativas desta natureza: curso de elevado grau de exigência e alto nível técnico, inteiramente custeado por uma associação industrial e que apenas visava oferecer aos associados candidatos escolhidos, preparados e capazes de desempenhar uma profissão útil aos sócios da corporação. Pelo menos, não temos conhecimento de outros casos semelhantes.
Nos meses seguintes surgiram os convites de cinco Laboratórios, três estrangeiros e dois nacionais. Opção por um dos estrangeiros, com ingresso e preparação, em Setembro de 71.
Na altura as filhas tinham dois anos e meio e um ano e meio. A esposa continuava na sua actividade de professora, no Bairro dos Olivais e o novo delegado de propaganda médica foi trabalhar nas Av. Novas, em Lisboa e no Algarve, onde se deslocava, por períodos de duas semanas, seis vezes por ano.
Porém, entre ordenado e comissões sobre vendas, no primeiro ano, os rendimentos foram mais de seis vezes os do último ano de professor.
Vários cursos de aperfeiçoamento profissional, iniciação às teorias de marketing, que na altura dava os primeiros passos, e ao terceiro ano é convidado para organizar e chefiar uma nova equipa comercial, visando a promoção e venda dos produtos comerciais do Laboratório e de outros a lançar no mercado nacional. É que o novo contrato colectivo de trabalho impedia os delegados de propaganda médica de fazerem vendas directas nas farmácias.
Nos sete anos seguintes, foi Supervisor, Chefe de Vendas e Chefe de Serviços Comerciais. Escolheu, treinou e chefiou, várias equipas de vendas, esteve ligado a lançamentos de produtos e acções de marketing e merchandising que ainda hoje, passados mais de trinta anos, se podem ver em exibição em muitas farmácias.
Viu progredir e atingir grande destaque no mercado, muitos técnicos de vendas que consigo deram os primeiros passos e orgulha-se de ter colaborado na expansão de marcas como Vick Vaporub, Clearasil, Nani, Graviteste, Nicoprive, Milton, Bledine, Nutribem, Saltratos Rodel, Myrbane e muitos outros que ajudaram a desenvolver o conceito de produtos OTC nas farmácias de Portugal.
Uma passagem pelo mercado da Grande Distribuição, durante oito anos e retorno ao mercado farmacêutico, onde acabou de fazer o resto de uma vida de 46 anos de trabalho.
Muito trabalho, muita gente ajudada a ganhar a vida e progredir nas carreiras, muitas acções de formação e reciclagem e muitos amigos espalhados por diversas áreas de actividades.
Também muitas compensações e a certeza de que não era preciso emigrar para conseguir fazer carreira e ganhar bem a vida, honesta e honradamente.
Sempre seleccionou aqueles que consigo trabalharam numa perspectiva de futuro. A todos pedia que lhe dissessem, claramente, o que desejavam da actividade que se propunham desenvolver.
Viu partir muitos para voos mais altos que os seus e sempre se sentiu honrado com isso. Despertou muitos do atavismo e imobilismo em que se tinham acomodado, ou para onde os tinham empurrado.
Tem orgulho naqueles que subiram mais alto do que ele e lamenta as injustiças que tenha cometido, quer promovendo uns, quer preterindo outros. Sempre se bateu pelos melhores e nunca gostou de gente acomodada e resignada.
Há dias, sentiu orgulho ao olhar para um relógio que um vendedor, que consigo trabalhou, ganhou, em 74, no lançamento de um produto.
Titular de uma zona difícil, com poucos recursos e menos receptiva a um produto inovador, parecia que o JB estaria condenado a apresentar-se na reunião de final de ciclo, resignado aos piores números da campanha, embora se tivesse multiplicado em esforços para inverter aquilo que parecia inevitável.
Efectivamente em números absolutos, não foi o melhor vendedor; porém, em distribuição, conseguiu colocar o produto em mais de oitenta por cento das farmácias da sua zona, do centro do País.
E, parece que estava a ver os olhos do JB ao ouvir anunciar que, independentemente dos prémio de quantidade fora criado um prémio de distribuição e que esse prémio lhe fora atribuído.
Mais um embaixador, como chamava aos que partiam para novos rumos quando deixavam as suas equipas em busca de novas oportunidades, umas vezes reais, outras, infelizmente, falaciosas.
Quem partia, continuava amigo; porém não havia retorno. Esta premissa nunca foi ocultada a ninguém.
Essas histórias de gente simples, que calcorreou as estradas deste país, desde Bragança à ilha do Corvo, não têm fim. Ao cabo de mais de 7500 dias de trabalho nessa actividade, resta a convicção de que muitos erros houve, mas por desconhecimento, incapacidade, ou impedimento de resolvê-los; nunca por prazer ou menos desejo de ajudar.
Serão mais de cento e cinquenta embaixadores, ensinados nas diversas equipas e apoiados e estimulados no desempenho das suas funções.
Podem ser também considerados a verdadeira semente e fermento, capazes de criar e alimentar inúmeras personagens que povoam as histórias de gente simples que vão nascendo e tomando forma.
É a homenagem de uma vida de trabalho aos companheiros de muitas lutas, muitas alegrias e algumas frustrações.
Uma vida cheia de compensações, não apenas materiais mas também pessoais e humanas: quando se faz o que se gosta e em proveito de quem se gosta, é-se, com certeza, feliz.
Sempre seleccionou aqueles que consigo trabalharam numa perspectiva de futuro. A todos pedia que lhe dissessem, claramente, o que desejavam da actividade que se propunham desenvolver.
Viu partir muitos para voos mais altos que os seus e sempre se sentiu honrado com isso. Despertou muitos do atavismo e imobilismo em que se tinham acomodado, ou para onde os tinham empurrado.
Tem orgulho naqueles que subiram mais alto do que ele e lamenta as injustiças que tenha cometido, quer promovendo uns, quer preterindo outros. Sempre se bateu pelos melhores e nunca gostou de gente acomodada e resignada.
Há dias, sentiu orgulho ao olhar para um relógio que um vendedor, que consigo trabalhou, ganhou, em 74, no lançamento de um produto.
Titular de uma zona difícil, com poucos recursos e menos receptiva a um produto inovador, parecia que o JB estaria condenado a apresentar-se na reunião de final de ciclo, resignado aos piores números da campanha, embora se tivesse multiplicado em esforços para inverter aquilo que parecia inevitável.
Efectivamente em números absolutos, não foi o melhor vendedor; porém, em distribuição, conseguiu colocar o produto em mais de oitenta por cento das farmácias da sua zona, do centro do País.
E, parece que estava a ver os olhos do JB ao ouvir anunciar que, independentemente dos prémio de quantidade fora criado um prémio de distribuição e que esse prémio lhe fora atribuído.
Mais um embaixador, como chamava aos que partiam para novos rumos quando deixavam as suas equipas em busca de novas oportunidades, umas vezes reais, outras, infelizmente, falaciosas.
Quem partia, continuava amigo; porém não havia retorno. Esta premissa nunca foi ocultada a ninguém.
Essas histórias de gente simples, que calcorreou as estradas deste país, desde Bragança à ilha do Corvo, não têm fim. Ao cabo de mais de 7500 dias de trabalho nessa actividade, resta a convicção de que muitos erros houve, mas por desconhecimento, incapacidade, ou impedimento de resolvê-los; nunca por prazer ou menos desejo de ajudar.
Serão mais de cento e cinquenta embaixadores, ensinados nas diversas equipas e apoiados e estimulados no desempenho das suas funções.
Podem ser também considerados a verdadeira semente e fermento, capazes de criar e alimentar inúmeras personagens que povoam as histórias de gente simples que vão nascendo e tomando forma.
É a homenagem de uma vida de trabalho aos companheiros de muitas lutas, muitas alegrias e algumas frustrações.
Uma vida cheia de compensações, não apenas materiais mas também pessoais e humanas: quando se faz o que se gosta e em proveito de quem se gosta, é-se, com certeza, feliz.