quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O negócio do Vale


A par dos casamentos, das matanças e das malhas, os negócios eram pontos altos na vida calma e rotineira das famílias rurais, nos meados do séc. XX.

Os casamentos, normalmente realizados aos sábados, pelo fim da tarde, antecediam as bodas, que constavam de três dias de comida e bebida, para dezenas de convidados, entre familiares e amigos.

As bodas eram feitas, em separado, na casa dos pais de cada um dos noivos. Em cada um dos lados abancavam os respectivos convidados e os noivos iam, alternadamente, a um e outro lado.

Geralmente jantavam em casa dos pais do noivo no dia do casamento e iam almoçar, no dia seguinte, a casa dos pais da noiva.

Depois do jantar a totalidade dos convidados, o resto do povo, sobretudo os solteiros e os mais jovens, bem como a rapaziada de aldeias vizinhas, confluíam para o local do descante, onde um acordeonista, escolhido a preceito, abrilhantaria o baile, que só acabaria alta madrugada de domingo.

Mas, pela tarde adiante, recomeçaria, até alta madrugada e, igualmente, na noite de segunda-feira.

Em cada descante começaram a desenhar-se muitas outras bodas.

A matança dos porcos - quase todas as casas matavam mais de um animal – que foram sendo alimentados com os restos das viandas da panela e com a farinha do milho cultivado nas hortas, era uma festa mais restrita.

Convidavam-se os filhos já casados, os irmãos e família e os compadres, para ajudarem aos preparativos e nos serviços da matança, que tinha lugar, normalmente, numa segunda-feira, e na desmancha que acontecia no dia seguinte.

Antes do acto em si, já estava preparado o banco de castanho ou azinho, formado por uma grande prancha, com quatro pés, também de madeira, o alguidar para recolher o sangue, os molhos de carquejas para queimar sobre a pele, o chambaril para enfiar nos tendões das patas de trás e suportar o porco, pendurado de um barrote da despensa, para escorrer e secar, até ao dia seguinte.

Antes, após a passagem com carquejas a arder e raspagem e limpeza da pele, abria-se o porco e retiravam-se as vísceras, separando-se, de seguida, as tripas para os tabuleiros de madeira, que, à cabeça das mulheres, eram conduzidos para a ribeira, onde, com água corrente e sumo de laranja, eram lavadas e preparadas para nelas serem cheias as morcelas, os chouriços, as mouras, os paios, as paiolas e os buchos.

A primeira coisa a encher eram as morcelas de assar, apontadas de sal, bem apuradinhas de cominhos, eram assadas, na lareira, ao serão do dia da matança.
Pelas duas da tarde, na hora oficial, como se dizia, jantava-se. Um farto cozido à portuguesa, já com umas abas de toucinho novo, couves e batatas da horta, e enchidos ainda do ano anterior.

Vinho da casa e pão de trigo cozido no forno de lenha. A cozedura do pão tinha lugar na quinta, ou sexta-feira, sendo os pães guardados na arca do cereal, embrulhados em pano de linho.

Como é gratificante recordar todos estes rituais e iguarias e saborear todos aqueles aromas e sabores que mais de meio século não foi capaz de apagar na nossa memória! Com mais de meio mundo percorrido, é formidável a força das pequenas grandes coisas que nos aconteceram, naturalmente, e acabaram por deixar marcas tão indeléveis que hão-de resistir a tudo e todas as sensações posteriores, por mais fortes que tenham sido.

A malha tinha, também, o seu quê de peculiar, pela envolvência de preparos e pelo que implicava de esforço humano, ou até, em boa verdade, sobre-humano.

Desde a sementeira, monda, ceifa, transporte para a eira, marcação de vez para fazer a malha, combinação com os malhadores e demais gente auxiliar, tudo o que tinha de conjugar-se constituía um ritual, sempre repetido e novo a cada ano, que transformava o dia da malha numa festa, marcante da vida rural.

Os negócios eram outro dos acontecimentos de maior relevância na vida das famílias, nos longínquos anos cinquenta. Quer se tratasse de vender, quer fosse uma aquisição para o património da casa, era ponto de honra dos homens daqueles tempos.

E não eram necessários contratos nem escrituras para substituir a palavra.
Nunca mais esqueci a máxima do meu avô: os homens inventaram o papel selado quando aprenderam a mentir; aqui para nós ainda não é preciso e mesmo as testemunhas são também dispensadas quando há honra que chegue. Pode beber-se um copo, para selar, ou comemorar, ou o que se queira; mas homem que é homem não volta com a palavra atrás. 

É por isso que eu, às vezes, na horta, penso que gostava que fosses advogado, mas, por mim, não te governavas; talvez professor me calhasse melhor: deve ser bonito ensinar uma criatura a ser alguém; mostrar-lhe aquilo que deve perseguir na vida e, o que é mais importante e nós nunca tivemos, dar-lhe ferramentas para fazer a obra: livros, lápis e canetas, em vez de enxadões, picaretas e marrões.

Um negócio era um ritual fantástico: ou porque se tivesse alguma coisa para vender e se esperasse, com isso, um lucro e beneficio, ou, sendo comprador, se tinha oportunidade de bem valorizar o que tanto trabalho tinha dado a juntar – o dinheiro -.

A relação com o dinheiro era completamente diferente da actual; por diversas razões: dinheiro era sinal de poder, sossego e desafogo de vida e, até sensação de respeito e subserviência pelos que o não tinham. 

Havia muito pouco dinheiro a circular: interessava um certo controlo sobre o hermetismo social, o peso das superstições, o desconhecimento do mundo e da civilização.

O conceito de quanto mais estúpidos e ignorantes melhor os dominamos, atribuído a quem encarnava o atraso e o obscurantismo, estava arreigado na sociedade.

Muitas famílias tinham as arcas cheias de milho e feijão, os sobrados e as lojas cobertas de batatas e não lhes faltava mel, azeite e vinho nos tonéis, mas não havia quem comprasse, nem quem vendesse e acabavam por se nivelar com aqueles que viviam do pouco que podiam ganhar, implorando as jornas que ninguém pagava e muito menos a preço compensador. 

O que resultava deste estado de coisas? Os mais abastados iam acumulando pecúlio, paulatinamente, mas em constância, pois não gastavam.

Todos os anos, ou porque tivessem alguma coisa no meio das suas courelas, ou porque o preço fosse muito tentador, ou porque dinheiro parado, apesar de pouco, era perigo de roubo, de fogo, de desvalorização, iam comprando mais uma leira, uma vinha, uma courela.

Terra, sempre terra, que deixava de pertencer aqueles que menos tinham. Isto apegava os filhos à terra, enterrava os que dela viviam, diminuía os horizontes.

Foi, num dia em que meu avô foi visitado por um homenzito da Aboboreira, oferecendo uma hortita, com abundância de água, boa de mimos da casa e com uma courelita de pinheiros, que o ouvi dizer-me: estás a ver, o teu pai nem cá está e eu não costumo fazer nada sem o consultar, mas pelo que o homem conta, aquilo é dado. E, se não for para nós, será para outro. Só os pinheiros que tem em riba valem metade daquilo que o homem pede ...

Cinco contos de réis é o que lhe posso oferecer, se tudo for como me disse. Amanhã, ao nascer do sol, o meu genro, estará lá no local, com um conto de réis de sinal e se for como você disse, compramos a hortita. Não precisamos dela, não temos nada para aqueles lados, mas não quero deixar de agradecer-lhe as passadas até nossa casa. A escritura poderá ser quando quiser e na altura receberá o resto. Pense bem, mas os sete contos que pede, não lhe vamos dar! 

Fale depois com o meu Amorim, sabe quem é, não sabe?

Sei, perfeitamente e vomecês também me conhecem; lá a vizinha de baixo, a sua comadre Joaquina Estrega, deu-me as melhores referências a vosso respeito. E o seu nome, Ti Zé Lourinho, chega para honrar o que me acaba de dizer.

Se resolver qualquer coisa, em contrário, passo palavra antes do pôr-do-sol; se nada disser, até à noite, lá me encontrarei com o seu genro, amanhã, de manhã. E espero que ele vá mais animado que o que me disseram as suas palavras.

Lá na Aboboreira não temos palavra de rei; espero que cá na Serra seja da mesma maneira. Então até amanhã, Ti’Zé; isto fica entre nós, entendidos! Até mais ver e obrigado por tudo.

Na manhã seguinte lá estava o meu pai, antes de nascer o sol.

Pelas indicações conseguiu localizar, facilmente, a propriedade e ficou admirado com o que viu: uma boa nascente de água, na represa, umas duas dúzias de pinheiros sangrados, atravessada pelo caminho que liga Aboboreira à estrada nacional e uma hortita bem tratada. Podia avançar até aos seis contos, conforme combinado com meu avô, mas era preciso negociar. E, por isso, ali estava. 

Pouco depois chegou o vendedor e logo foram direitos ao assunto: meu pai lá foi dizendo que terras tinham até demais e gente para trabalhar seria, ao que parecia, cada vez menos. Os rapazes já estavam no colégio e a menina, se Deus quisesse havia de ir, também. Mas o sogro lá sabia e era ele quem dirigia; estava ali para resolverem o assunto. Já dera por ali uma voltita e se não estivesse enganado nas estremas, estava tudo como dissera ao seu sogro. 

Assim é, senhor Amorim; vendo porque tive aí uma necessidade inesperada, por causa duma enrascada em que me meteram e preciso, urgentemente de algum dinheiro.

Sei que talvez pudesse receber mais alguma coisa, mas preciso negociar com quem tenha poder para me pagar depressa o que me parece ser o caso, segundo me disse o Ti’Zé Lourinho, seu sogro.

Eu peço os sete contos de réis e parece-me que está aqui bem à vista o valor; espero que venha mais animado que as palavras que me disse o seu sogro.

Olhe, senhor António, por mim já não comprava mais nada: os investimentos, agora são outros. Olhe que três filhos a estudar, custam os olhos da cara e o que estamos a oferecer-lhes é bem mais valioso que todas estas courelas até ao cimo do vale.

Seja ou não, foi o caminho que escolhemos para os meus filhos e, quer eu, quer o meu sogro e avô deles, iremos até onde eles forem capazes. Por isso, meu amigo, já está a ver o meu interesse.

Deus ajude pais e avós que tão bem sabem e podem dirigir o futuro dos seus. Mas isto aqui é um bom investimento; daqui a meia dúzia de anos mesmo que corte agora os sangrados, dá corte que vale a meia dúzia de contos da compra. 

Bem, o que está dito, está dito! Pelos cinco contos é nossa!

Espere, Ti’Amorim, vomecês têm palavra de rei? Vá lá, pelos seis e meio!

Por mim ficava onde estamos mas, vá lá, damos mais quinhentos mil réis.

Ti’Amorim, acabemos com isto: racha-se ao meio e pronto. São os seis contos de réis e não se fala mais nisso. Ela já ouviu mais, mas o comprador só podia pagar-me daqui a um ano e, como eu tenho compromissos urgentes, fecho os olhos.

Vou marcar a escritura. Agora dá-me um conto de sinal, pois preciso desse dinheiro dentro de três dias, e o resto será no acto da escritura.

Meu pai, estendeu a mão e disse: fechado! Vamos a casa da comadre Joaquina, para lhe passar o sinal, na frente de testemunhas.

Não Ti’Amorim; trago um papel, assinado também pela minha mulher, Maria Rosa. Só falta pôr o valor da venda. O resto é o combinado, no acto da escritura.

O meu pai, não se desmanchou. Olhou o documento e sem que pudesse lê-lo, pois não sabia fazê-lo, aceitou a palavra do homem e, logo que chegou à Serra foi a casa do compadre Jesuvino, mandar ler o documento, que dizia: António Mendes Moleiro e mulher, Maria Rosa Palhota, casados, moradores em Aboboreira, declaram que vendem ao senhor José Lourinho, da Serra, a sua propriedade no cimo do vale, confrontando a poente e a nascente com Adriano Guilherme dos Reis, pelo valor de seis contos de réis.

Declaram que receberam, de sinal, um conto de réis e o resto será pago no acto da escritura. Aboboreira, 12 de Setembro 1957. Ass.: António Mendes Moleiro e por Joaquim Mendes Passarão, a rogo da Maria Rosa por esta não saber assinar. 

Este papel foi guardado pelo meu avô enquanto foi vivo e, mais tarde, pelo meu pai, como lembrança da última compra de propriedades.

Dali em diante todos os rendimentos da nossa casa foram canalizados para três estudantes que foram na vida até onde seus pais e avós nunca puderam subir, dando-lhes a satisfação de terem feito tudo o que puderam e esquecendo todas as censuras a que foram sujeitos pelos seus amigos daquela aldeia recôndita, onde nasceram e se criaram.