domingo, 13 de novembro de 2011

O moinho da estrema

Quem passava do lameiro dos Salgueirinhos para a Ribeira, atravessava, na portela da Chã, depois dos eucaliptos, o caminho que, vinha dos lados da estrada da Lameira e circundava a aldeia, dando a volta lá por baixo, pela Figueira Regal.

Era por este atalho que, mais adiante, pouco antes do Machoso, se chegava à descida da lajoeira até à ponte, onde, pouco depois, ou se seguia em frente, pelas Taliscas, para o Vale das Onegas, ou se metia pelo vale do Sinhal, para o Monte Cimeiro, ambas já terras de Alcaravela e, como tal, de Sardoal.

Estes caminhos ainda por lá estão; porém a estrada moderna e alcatroada, relegou-os para o desuso e aqueles trilhos que gente e bestas foram abrindo, desgastando saibros e lousinhas que depois as chuvas se encarregavam de drenar até às hortas, são agora, muitas vezes, quase irreconhecíveis. 

Na portelita, entre os eucaliptos do Ti'Manel da Chã e os pinheiros do Ti'Manel Rosa, num altinho quase imperceptível, as águas das chuvas tomavam dois rumos diferentes: as do lado norte, corriam na direcção da aldeia e as do lado sul iam para a ribeira.

Depois, pela chapada de seara, até ao moinho, a linha era mal demarcada, mas via-se a inclinação para os dois lados. 

Junto do carreirinho havia um marco grande, diferente das pedras que separam as hortas e courelas umas das outras, indicando as estremas do que a cada um pertence.

No moinho, lá no cimo do outeirito, estava outra daquelas pedras; bastante grandes, com o cimo muito quadradinho e os quatro lados muito lisinhos.

Eram blocos de cantaria, vindos de Penhascoso onde havia aquela rocha - granito - e tinham letras escritas, com tinta preta, normalmente em dois lados. 

Li, muitas vezes, aqueles dizeres para o meu avô, que depois me fazia as explicações do que aquilo queria dizer. E, analfabeto como era, explicava-me, rigorosamente, o que eram os concelhos, as freguesias e a importância que tinha a delimitação das terras.

No lado das casas, estavam dois números - 34, com algarismos maiores, por cima e 12, com algarismos mais pequenos, numa linha abaixo -; em seguida MAÇÃO e, por baixo, com letras menores, Penhascoso.

E lá vinham as explicações que, sempre com a máxima atenção, eu ouvi diversas vezes:

Estes marcos foram aqui metidos por uns homens das senhoras Câmaras do Mação e do Sardoal. Do outro lado, os números são diferentes e os dizeres das terras são SARDOAL e Alcaravela, não é verdade? O número com as "letras" maiores, é o que nos diz quantos marcos destes há, desde o começo do concelho até aqui. O outro, é o número de marcos desde o começo da freguesia até aqui. 

A palavra de cima, MAÇÃO é o nome do nosso concelho e a de baixo, Penhascoso é o nome da nossa freguesia.

Do lado de lá as coisas querem dizer o mesmo. Em todas as senhoras Câmaras há mapas com os lugares destes marcos e os dizeres deles que indicam, se for preciso, um lugar no terreno.

Mas para que se gastou tanto dinheiro a meter estes marcos todos e depois a escrever estas letras?

É muito importante que cada uma senhora Câmara saiba a terra que tem, para poder cobrar a décima, passar licenças para as obras, cuidar dos caminhos, entregar o correio e muitas outras coisas. 

Não te recordas de um homem de Alcaravela que vinha até aqui ao pé deste marco e esperava que o Ti'Zé Matias, que era sócio dele, viesse falar-lhe e combinar os negócios?

Oh! Avô, e porque diabo não ia o homem a casa dele, lá no Casal, ou à taberna e falavam mais à vontade?

Porque não podia; estava castigado, pelo doutor juiz do tribunal!

Não me diga, avô, que há alguém que castigue outro, obrigando-o a juntar-se debaixo duns pinheiros com quem quer falar!

O castigo não era esse; o tal homem estava proibido de sair do seu concelho, porque tinha estado preso e depois da prisão, dentro de uns tempos não podia ir para fora do limite do concelho. Se não cumprisse essa ordem podia ser apanhado e iria à cadeia fazer o resto do tempo de prisão.

Está bem! Mas, avô, e aquele sítio além chama-se moinho, porquê?

Certamente porque, em tempos, houve lá algum moinho. Eu não me lembro de nada disso, mas contava-me o meu pai, que Deus haja, que ali era o moinho da estrema.

Talvez porque lá houvesse algum moinho e estivesse, precisamente sobre a estrema dos dois concelhos: do lado de cá o de Mação e do lado de lá o de Sardoal. 

E, sempre ouvi dizer que o moleiro não era flor que se cheirasse; era grande como não havia outro homem nas redondezas e pelo lado da velhacaria, também valia bem por meia dúzia. 

Parece que não pagava décima a nenhuma das senhoras Câmaras: aos do Mação dizia que era de outra terra, pois pertencia ao Sardoal e mostrava uns papéis antigos, que nunca ninguém soube o que diziam e onde apenas se lia, por fora, Sardoal.

Quando vinham os do Sardoal dizia que não tinham nada com ele, que pertencia ao concelho de Mação e mostrava uns papéis que não dava para as mãos de ninguém, ficando-se pelas letras grandes de fora: Mação. 

Diz-se que nunca casou, não cumpriu a tropa e, quando morreu, nem uns nem outros o queriam enterrar; mas também há os que dizem que acabou desaparecido.

Eu acho que isso são histórias que o povo vai contando e ainda hoje vão dando para alguns ditos.

Em tempos houve lá qualquer coisa; eu penso que terão sido casas de gente muito antiga, de há muitos anos atrás; há por lá pedras que parecem indicar que ali viveu alguém e até que por lá terá sido enterrada gente.

É um lugar pouco simpático e nunca se ouviu dizer que os pobres ali tenham feito malhada, ou que alguém pensasse aproveitar o lugar. 

Quem o quisesse fazer tinha de se desviar para o lado de cá, para não ficar a morar numa terra onde todos pertencem a um concelho menos uma casa que fizesse parte de outro. Estás a ver aqui um inconveniente dos tais marcos. 

Diz-se que uma vez um moleiro restaurou ali um moinho e na primeira noite em que encheu as velas, veio tamanho "pojino" que não só desfez completamente velas e cobertura, como espalhou as pedras das paredes por muitos metros à roda.

Diz a lenda que uma das mós foi encontrada no meio do mato, no fundo da Pedreguina e a outra - a de cima - nunca foi encontrada. 

À boca pequena, muitos dizem "moinho excomungado", mas assim em público pegou o nome de moinho da estrema e é como tal que sempre foi conhecido.

Mas isso são lendas, que depois se transformam em ditos, para mais tarde passarem a histórias e acabarem, por chegar ao lugar onde pertencem: esquecimento. 

Há uma outra coisa que gostaria de te dizer a respeito dos marcos: entre nós, depois de matar um homem, uma das maiores ofensas que se podem fazer é mudar um marco.

Aliás uma das causas mais vezes verificada em contendas e até mortes de homem é a muda de marcos entre as propriedades.

Cá nos nossos códigos de honra, aquelas pedras toscas, em forma de laje, enterradas, com duas, ou três mais pequenas ao lado, representam como que homens vivos, que só podem ser mexidos na presença de todas as partes interessadas. 

E só se muda um marco em casos muito especiais. Quando desaparecem devem ser repostos, mas nunca só por uma das partes e, de preferência, na presença de testemunhas.

Ora aqui os marcos que separam as freguesias, fazem-no também para os concelhos. Mas aqui limitam também duas províncias: para sul é o Ribatejo e aqui para norte a Beira Baixa. O nosso concelho de Mação é o único do distrito de Santarém que pertence à Beira Baixa. 

Depois, certamente, hás-de estudar essas coisas e ainda me hás-de ensiná-las quando fores professor, como eu gostava que fosses.

E, nos últimos sete anos de vida, teve esse gosto, o meu Avô:

Homem menos que meão, de estatura; mas enorme, de cabeça, coração e alma.