O Alfredo era o mais novo de sete irmãos, todos rapazes.
Para guardar o gado, ir à missa e outras coisas que não agradavam à rapaziada, o mais pequeno alinhava à frente; para ir a qualquer lado, estrear uma camisita, ou receber fosse o que fosse, lá estava o pequenito no fim da fila.
O “Fredito” tinha os olhos mais claros que os irmãos, a cabeça, anormalmente grande e fazia quase tudo, com a mão esquerda. Dali vieram as variadíssimas alcunhas que, antes, durante e depois da escola, acabaram por não o incomodar: cabeçudo, olho-de-gato, canhoto, lince, miau, carolas, mancanha – de mão canha, canhota, esquerda –. A que havia de melhor lhe assentar e todos lhe aplicavam.
Guardava o gado com muita habilidade e pedra atirada por aquela mão esquerda, fazia estragos no alvo a que fosse destinada. As ovelhas e as chibas conheciam as pedradas do “Fredito” e as mordidelas do “farrusco” que respondia, solicitamente, ao assobio e à voz do dono.
Na escola, não foi além da segunda classe; apesar de não se revelar um barra, não lhe foi dado tempo para se mostrar – os mais velhos já trabalhavam fora e o “Fredito” tinha de ajudar na casa, levar o almoço e o jantar, guardar o gado e ir fazer os recados, não sobrando tempo para ir à escola –. Mais tarde aprenderia um ofício, dizia o pai.
Nos “balhos”e nos descantes, andava de grupo em grupo, sem se integrar, e, por norma, junto dos homens mais velhos. Nunca aprendeu a balhar.
Na taberna, eram-lhe reconhecidas aptidões especiais para o jogo do “burro” e para a “bêlha”; já nos jogos de cartas não passava de bom perdedor.
Tanto o “burro” como a “bêlha” eram jogos de arremesso de vinténs e malhas, respectivamente, pelo que a sua mão esquerda se revelava, assustadoramente, certeira. Todos queriam ser seus parceiros.
A armar aos pássaros, a descobrir ninhos, a localizar a melhor novidade de fruta e a achar uma estrema, não havia quem lhe passasse a perna.
Conhecia todo o gado do povo e quando voltava com o pequeno rebanho que abria todos os dias, encortelhava todas as reses sem se enganar.
Nas sortes ficou livre: disse, directa e desabridamente, ao sargento que os pais precisavam dele, que ainda tinha dois irmãos a servir – um em Elvas e outro em Abrantes - e já outros quatro tinham sido soldados. Ele, que não sabia ler nem escrever, não devia ser preciso, lá na tropa.
Ainda aprendeu o ofício de sapateiro e daí derivou para albardeiro; porém, as suas exigências não eram grandes e ganhando a vida sem se esforçar muito, nunca foi longe na arte.
No ano que foi à ceifa, não passou de moço aguadeiro e não ficou muito entusiasmado para voltar – era trabalho violento de mais, dizia ele.
Ainda estou a ver o Alfredo, que nunca casou, já na casa dos cinquenta, quando eu era garoto, a narrar e representar os quadros da batalha campal, travada à saída de Santa Clara, noite fora, à margem do arraial das festas de Alcaravela:
“O meu Manel, tem a mania que é teso! E é. O meu João, não se lhe fica atrás. O Chico e o Pedro, são do melhor, no jogo do pau.
Vai daí, o Manel, com a cabeça grande e a barriga cheia de vinho, prega uma cacheirada no Tonho das Lercas, que foi logo a terra. Os galhibanos da Presa, sacaram dos paus e foram para o Manel, que já fazia costas com os outros três irmãos.
A primeira cacetada do Chico pôs logo o “fanfas” do “artista”, tido como o melhor jogador de pau das redondezas, fora de combate; acertou-lhe uma mocada na tola e além da cabeça, partiu-lhe o cacete.
Estava gerada a confusão: os meus irmãos iam-se defendendo e distribuindo bordoada, por tudo o que aparecia a talhe de foice, e encaixando, também, as pauladas dos das Lercas, que já andavam juntos com os da Presa.
Bem, só se perderam as que caíram no chão – o meu Manel andou com um braço ao peito, o Chico com um lanho na cabeça um ror de meses, o Pedro a cambar de um joelho e o meu João ficou, para sempre, com uma orelha rachada.”
Então e tu, Alfredo?...
“Eu, sou homem pacífico. Estive de reserva e olhe que não fui preciso. Os meus quatro irmãos, chegaram para os vinte e tal que se lhes opuseram e daí que assim tive mais tempo para ver bem as coisas e ficar inteirinho, para contar as histórias e apaziguar a malta. A verdade é que acabaram todos a beber mais uns copos…
Mas, a sorte dos gajos foi que tudo acabou antes de chegar o meu Luís e o Agusto, que ouviram tarde de mais os assobios do Manel. Se não, aquilo, ainda acabava mal.
Assim, olhe: mais cacetada, menos cacetada, só se perderam as que caíram no chão!...”
terça-feira, 30 de setembro de 2008
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
A magana
O “Rasga”entrou espavorido pela taberna dentro, deu um murro sobre o balcão e gritou: “ti Manel”, uma metade!...
O taberneiro, na sua fleuma habitual, acentuada pela arrastar da perna esquerda, assomou-se na divisória da cozinha e salvou:”vem com Deus, homem!...
Esteja com Deus, “ti Manel”!... Acrescentou o “Rasga” em tom completamente diverso do da entrada.
Parece que viste o demo!... Vem para aí o mundo atrás de ti, ou quê?!... Ainda agora é manhã e já estás nesses preparos?!...
Deixe-me cá “ti Manel”!...
Quase nem preguei olho toda a noite, a pensar naquela magana.
Ao romper da manhã, antes do Sete-estrelo, já eu ia a caminho da ribeira, com o meu “farrusco” ainda com os olhos mal abertos. Chegado ali, no ponto onde a chapada bate com a ribeira, baixei-me atrás duns carriços e esperei…
Clareou o dia; pássaros, moscas, rãs e outra bicharada da ribeira apareceram aos primeiros raios da aurora, mas, da magana nem sinal. E olhe que naquelas duas horas não desviei, nem por um minuto, os olhos daquele carreiro que vai dar ao touril, onde a gaja tem, sem exagero nenhum, uma boa cesta de caganitas.
Ainda passaram dois laparotes, saltitando e negaceando, na sua inocência.
Nem lhes liguei e não deixei que o “farrusco” se agitasse; eu queria era a magana que se regala a tosar-me as couves do canteirito e os outros mimos da horta.
Mas garanto-lhe que há-de pagá-las todas juntas…
O “Tonho da azenha” jura que já a viu umas duas ou três vezes e garante que é animal soberbo, com um metro e meio, para mais, de comprimento e não pesará menos que uma boa chiba de vinte quilos.
Já gastei, com ela, para cima de quarenta noites e, logo hoje que alguma coisa me dizia que havia de ser o dia certo, apareceu o “ti Jaquim”com a água aberta ao romper da manhã.
A magana, muito senhora do seu nariz, ou tem o dianho por ela ou é finória. Mas há-de cair!...
Ou eu não me chame “Rasga”, em memória de meus avós, que Deus haja.
Também o “Mané das cabras” costuma passar por ali, antes do sol nado com o gado e os cães e já mais de uma vez me estragou o arranjinho.
Depois, com aqueles dois cães, que até de ratos fogem… Uns verdadeiros espanta caça!... Uns lorpas, é o que são! …
Mas não há-de ser mais teimosa que eu e não há-de comer-me as couves todas… Hão-de sobrar algumas, para a acompanhar na panela!...
Começou a ser assunto de conversas a obsessão do “Rasga”pela lebre da chapada da ribeira.
Alguns já chacoteavam com ele e perguntavam-lhe quando poderiam ver o troféu.
De armadilhas, com laços, a ferros, tudo passou pela mente do “Rasga” que, no entanto, já tinha decidido que a magana havia de cair com o chumbo do seu fuzil.
E resistiu, heroicamente, a todas as provocações e gozos da rapaziada da terra.
Até que um dia, pouco depois dos Reis, o “Rasga”entrou na tasca, com um imponente lebrão de um metro de comprimento e quase quinze quilos de peso, ao ombro.
Não havia memória de um exemplar assim, nas redondezas. Veio gente de aldeias vizinhas e, em dois dias, o “Rasga” contou a história dúzias de vezes, para satisfazer os curiosos.
Dizia, orgulhosamente:
Na minha da ribeira, onde a chapada bate com o regato, meia hora antes do nascer do sol, descia a magana, lampeira, para me dar cabo das couves.
Estacou, onde a rodeira cruza a canada, levantou as orelhas que aqui vêm, e ergueu-se sobre as patas traseiras.
Nisto, acerto-me com ela e levo a arma à cara. Miro-a bem no centro dos quartos dianteiros e zás, catrapaz: puxo os dois gatilhos e lá vai chumbo, quente e grosso.
A magana, ferida de morte, deu um salto que parecia uma corça, berrou como um boi e foi cair, redonda, na minha veiguita, junto ao bueiro da entrada da levada. Levantei-a no ar e, com todo o meu respeito, descobri-me, mostrei-a ao “farrusco” e às couves que ela não voltaria a comer…
O resto é o que têm na vossa frente; e olhem que já ouviu que nunca lebre de tal tamanho terá sido caçada...
E foram caçadores afamados que o disseram...
O taberneiro, na sua fleuma habitual, acentuada pela arrastar da perna esquerda, assomou-se na divisória da cozinha e salvou:”vem com Deus, homem!...
Esteja com Deus, “ti Manel”!... Acrescentou o “Rasga” em tom completamente diverso do da entrada.
Parece que viste o demo!... Vem para aí o mundo atrás de ti, ou quê?!... Ainda agora é manhã e já estás nesses preparos?!...
Deixe-me cá “ti Manel”!...
Quase nem preguei olho toda a noite, a pensar naquela magana.
Ao romper da manhã, antes do Sete-estrelo, já eu ia a caminho da ribeira, com o meu “farrusco” ainda com os olhos mal abertos. Chegado ali, no ponto onde a chapada bate com a ribeira, baixei-me atrás duns carriços e esperei…
Clareou o dia; pássaros, moscas, rãs e outra bicharada da ribeira apareceram aos primeiros raios da aurora, mas, da magana nem sinal. E olhe que naquelas duas horas não desviei, nem por um minuto, os olhos daquele carreiro que vai dar ao touril, onde a gaja tem, sem exagero nenhum, uma boa cesta de caganitas.
Ainda passaram dois laparotes, saltitando e negaceando, na sua inocência.
Nem lhes liguei e não deixei que o “farrusco” se agitasse; eu queria era a magana que se regala a tosar-me as couves do canteirito e os outros mimos da horta.
Mas garanto-lhe que há-de pagá-las todas juntas…
O “Tonho da azenha” jura que já a viu umas duas ou três vezes e garante que é animal soberbo, com um metro e meio, para mais, de comprimento e não pesará menos que uma boa chiba de vinte quilos.
Já gastei, com ela, para cima de quarenta noites e, logo hoje que alguma coisa me dizia que havia de ser o dia certo, apareceu o “ti Jaquim”com a água aberta ao romper da manhã.
A magana, muito senhora do seu nariz, ou tem o dianho por ela ou é finória. Mas há-de cair!...
Ou eu não me chame “Rasga”, em memória de meus avós, que Deus haja.
Também o “Mané das cabras” costuma passar por ali, antes do sol nado com o gado e os cães e já mais de uma vez me estragou o arranjinho.
Depois, com aqueles dois cães, que até de ratos fogem… Uns verdadeiros espanta caça!... Uns lorpas, é o que são! …
Mas não há-de ser mais teimosa que eu e não há-de comer-me as couves todas… Hão-de sobrar algumas, para a acompanhar na panela!...
Começou a ser assunto de conversas a obsessão do “Rasga”pela lebre da chapada da ribeira.
Alguns já chacoteavam com ele e perguntavam-lhe quando poderiam ver o troféu.
De armadilhas, com laços, a ferros, tudo passou pela mente do “Rasga” que, no entanto, já tinha decidido que a magana havia de cair com o chumbo do seu fuzil.
E resistiu, heroicamente, a todas as provocações e gozos da rapaziada da terra.
Até que um dia, pouco depois dos Reis, o “Rasga”entrou na tasca, com um imponente lebrão de um metro de comprimento e quase quinze quilos de peso, ao ombro.
Não havia memória de um exemplar assim, nas redondezas. Veio gente de aldeias vizinhas e, em dois dias, o “Rasga” contou a história dúzias de vezes, para satisfazer os curiosos.
Dizia, orgulhosamente:
Na minha da ribeira, onde a chapada bate com o regato, meia hora antes do nascer do sol, descia a magana, lampeira, para me dar cabo das couves.
Estacou, onde a rodeira cruza a canada, levantou as orelhas que aqui vêm, e ergueu-se sobre as patas traseiras.
Nisto, acerto-me com ela e levo a arma à cara. Miro-a bem no centro dos quartos dianteiros e zás, catrapaz: puxo os dois gatilhos e lá vai chumbo, quente e grosso.
A magana, ferida de morte, deu um salto que parecia uma corça, berrou como um boi e foi cair, redonda, na minha veiguita, junto ao bueiro da entrada da levada. Levantei-a no ar e, com todo o meu respeito, descobri-me, mostrei-a ao “farrusco” e às couves que ela não voltaria a comer…
O resto é o que têm na vossa frente; e olhem que já ouviu que nunca lebre de tal tamanho terá sido caçada...
E foram caçadores afamados que o disseram...
domingo, 14 de setembro de 2008
Compadres
Cabisbaixo, mãos nos bolsos, blasfemando contra o burrico que, ajoujado sob os taleigos, pedia licença a uma pata para mover a outra, o ti Luís assomou-se ao povoado, antes do nascer do sol.
No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões.
A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, ti José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.
Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas.
Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.
Chegado à porta da igreja, junto da casa do ti José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta.
Veio o ti José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:
Ti José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta.
Com sua licença passo ao caso: tem o Ti José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor.
Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora.
Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...
Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.
Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...
Com certeza, Ti Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.
É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...
Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer?
A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..
O que pode saber, Ti Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!...
Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça.
De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa.
Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...
É que, Ti José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente.
E sempre se trata da nossa filha, não é?..
Ti Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.
Mas seja sincero, Ti José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!
Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre.
Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...
Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho.
Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.
O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio.
O Ti Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc.
A outra parte, o Ti José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo ao compadre:
Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...
O Ti Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:
Olhe que já hoje me deu uma boa alegria...
Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!...
Até mais ver!...
Até mais ver, compadre!...
Vá com Deus!...
No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões.
A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, ti José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.
Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas.
Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.
Chegado à porta da igreja, junto da casa do ti José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta.
Veio o ti José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:
Ti José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta.
Com sua licença passo ao caso: tem o Ti José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor.
Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora.
Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...
Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.
Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...
Com certeza, Ti Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.
É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...
Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer?
A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..
O que pode saber, Ti Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!...
Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça.
De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa.
Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...
É que, Ti José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente.
E sempre se trata da nossa filha, não é?..
Ti Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.
Mas seja sincero, Ti José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!
Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre.
Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...
Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho.
Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.
O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio.
O Ti Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc.
A outra parte, o Ti José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo ao compadre:
Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...
O Ti Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:
Olhe que já hoje me deu uma boa alegria...
Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!...
Até mais ver!...
Até mais ver, compadre!...
Vá com Deus!...
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
O Zé Lines
Nos confins da Beira Alta, nas terras arraianas, na margem esquerda do rio Noeme, afluente do Côa, com a Senhora do Monte a nascente e aninhada num morro granítico – o Calvário –, está exposta a sul, a povoação do Rochoso, sede de freguesia, do concelho da Guarda.
Rodeada de barrocos, entrecortados por pequenas veigas, lameiros e terras de pão, contempla a poente a Serra da Estrela, para lá dos horizontes onde restam tufos dos últimos soutos de castanheiros e aqui e além pequenas manchas de pinheiros.
Nas veigas cultiva-se o centeio e a batata, nos lameiros pastam as vacas e nas terras mais áridas os rebanhos que hão-de dar o leite de que se fará o excelente, inconfundível e único “queijo da serra”.
Nos anos sessenta, ainda solteiro, fui apadrinhar um casamento, com a minha noiva, e tornei-me cidadão adoptivo do Rochoso.
Havia que cumprir os usos e costumes da terra que rezavam que todo o rapaz, de fora da terra, que ali fosse casar teria de pagar as “bicas”.
Seria sujeito a algumas partidas, no carro, pagaria umas boas rodadas, na taberna, e participaria numa farra, com a rapaziada da terra.
Foi então que conheci o Zé Lines, figura típica da terra, na casa dos quarenta, que não passava um dia sem ir a casa da madrinha – a mãe da minha noiva -, onde perguntava, da porta, enquanto ia entrando:
- Precisa de alguma coisa, minha madrinha?!...
Raramente o vi comer lá em casa, e, nos anos que tive o gosto de o conhecer, não me lembro de o ter visto sóbrio naquelas passagens nocturnas. Porém, sempre ali bebia o último copito do dia, uma vez que dali seguia para casa, um pouco mais adiante, na rua que vai dar ao Calvário, onde morava com a mãe.
Nascido e criado na aldeia, aprendeu a ler e escrever e depois trabalhou nas mais diversas ocupações.
Nunca foi amigo de andar a dar jornais, mas não recusava qualquer serviço a quem lhe pedisse, sobretudo se o pedido viesse da sua madrinha, ou do falecido padrinho, com quem chegou a andar na construção de estradas, pois o senhor Júlio fora fiscal da Junta Autónoma de Estradas.
Ia fazendo umas “cargas” de contrabando para Espanha; por isso, foi hóspede, por várias vezes, dos calabouços de “nuestros hermanos”, nas terras de Fuentes de Oñoro a Salamanca. Todavia, fazia gala ao afirmar que nunca fôra preso por fazer mal a alguém, ou por roubar.
Quando dizia roubar, exclamava: “toque-le”!...
De estatura mediana, cabelos muito pretos e olhos claros, uma paulada, numa desordem, deixou-lhe uma cicatriz no centro da testa. O amanho, imperfeito, de uma clavícula, por um “endireita”, provocava-lhe um desacerto na altura dos ombros. As mãos acusavam algumas bombas de foguete, rebentadas fora de tempo, e os entalões nas pedras da ribeira, catando os peixitos.
No trato era muito educado e correcto e tinha o “coração” enorme. Amigo do seu amigo e capaz de dar tudo, por um amigo…
Tratava, com a mãe, um pequeno chão nas Fontainhas, logo atrás do Calvário; ali colhiam o sustento de ambos e tinham os mimos da casa, com que o Zé Lines gostava de presentear a “sua madrinha”.
Minava-se por dar uma volta, ir até à cidade, ou andar, simplesmente, pelos campos –, onde, em muitas horas, percorremos todo o termo do Rochoso e muitas vezes fizemos pescarias no Noeme e no Côa.
Vi-o caçar verdugos e procurar míscaros e tortulhos, no tempo deles.
No Verão, percorríamos as terras em volta e começávamos, antes do nascer do sol, a armar as costelas aos taralhões, até ao Monte Margarida e ao termo da Cerdeira.
Nos piqueniques que duas ou três vezes, nas férias grandes, fazíamos nas margens do Côa, junto a Roque Amador, o Zé Lines era o melhor ajudante que podíamos ter: capinava, abria clareiras nos arbustos, apanhava verdura, cuidava da garotada junto do açude, ia comigo à praça e ao talho no Sabugal… que saudades me despertam as recordações daqueles dias bem passados!...
Recordo, particularmente, uma conversa, num dos últimos serões em que estive com o Zé Lines, sentados junto às cruzes do Calvário.
Foi ali que, a meu pedido, o Zé me explicou a aplicação que deu aos duzentos escudos com que controlou a rapaziada que queria que eu participasse nas “bicas”, na altura do meu casamento.
É digno de registo o poder de síntese com que me foi descrito o caso: a rapaziada e até alguns homens feitos, queriam vazar-lhe um pneu do carro, fazer algazarra junto da casa de sua noiva e levá-lo a beber uns copos – tudo em nome da tradição e como baptismo de amizade –.
Pareceu-me que o senhor professor se não devia misturar e, na taberna do Zé Maria e na do sr. Domingos Marques, falei alto e grosso: o senhor professor já me deu dinheiro que chega para nos encher a barriga de bom vinho, mas como ainda não conhece ninguém – e só por isso –, não virá beber connosco. Ninguém toca em nada dele e, se alguém o fizer, racho-o!...ouviram bem, racho-o!...
Compreendi, perfeitamente, a maneira como o Zé Lines geriu o caso; apreciei a discrição que sempre teve sobre o assunto e percebi que estava ali um homem simples, mas que sabia respeitar os valores da amizade, que prezava mais que tudo.
Dei-lhe um abraço e agradeci-lhe, com um simples “obrigado Zé Lines”, gosto muito que seja meu amigo.
Vi, mais duas ou três vezes o Zé Lines, que, entretanto começou a passar de tempos a tempos pelo sanatório da Guarda, onde todos os cuidados médicos já não foram a tempo de evitar o falecimento, aos sessenta anos.
Perdi um grande amigo; que nunca me revelou todo o segredo da sua simplicidade, da sua maneira de ser amigo…
A sua maior satisfação era dar alguma coisa a alguém!...
E tinha, tão pouco!...
Rodeada de barrocos, entrecortados por pequenas veigas, lameiros e terras de pão, contempla a poente a Serra da Estrela, para lá dos horizontes onde restam tufos dos últimos soutos de castanheiros e aqui e além pequenas manchas de pinheiros.
Nas veigas cultiva-se o centeio e a batata, nos lameiros pastam as vacas e nas terras mais áridas os rebanhos que hão-de dar o leite de que se fará o excelente, inconfundível e único “queijo da serra”.
Nos anos sessenta, ainda solteiro, fui apadrinhar um casamento, com a minha noiva, e tornei-me cidadão adoptivo do Rochoso.
Havia que cumprir os usos e costumes da terra que rezavam que todo o rapaz, de fora da terra, que ali fosse casar teria de pagar as “bicas”.
Seria sujeito a algumas partidas, no carro, pagaria umas boas rodadas, na taberna, e participaria numa farra, com a rapaziada da terra.
Foi então que conheci o Zé Lines, figura típica da terra, na casa dos quarenta, que não passava um dia sem ir a casa da madrinha – a mãe da minha noiva -, onde perguntava, da porta, enquanto ia entrando:
- Precisa de alguma coisa, minha madrinha?!...
Raramente o vi comer lá em casa, e, nos anos que tive o gosto de o conhecer, não me lembro de o ter visto sóbrio naquelas passagens nocturnas. Porém, sempre ali bebia o último copito do dia, uma vez que dali seguia para casa, um pouco mais adiante, na rua que vai dar ao Calvário, onde morava com a mãe.
Nascido e criado na aldeia, aprendeu a ler e escrever e depois trabalhou nas mais diversas ocupações.
Nunca foi amigo de andar a dar jornais, mas não recusava qualquer serviço a quem lhe pedisse, sobretudo se o pedido viesse da sua madrinha, ou do falecido padrinho, com quem chegou a andar na construção de estradas, pois o senhor Júlio fora fiscal da Junta Autónoma de Estradas.
Ia fazendo umas “cargas” de contrabando para Espanha; por isso, foi hóspede, por várias vezes, dos calabouços de “nuestros hermanos”, nas terras de Fuentes de Oñoro a Salamanca. Todavia, fazia gala ao afirmar que nunca fôra preso por fazer mal a alguém, ou por roubar.
Quando dizia roubar, exclamava: “toque-le”!...
De estatura mediana, cabelos muito pretos e olhos claros, uma paulada, numa desordem, deixou-lhe uma cicatriz no centro da testa. O amanho, imperfeito, de uma clavícula, por um “endireita”, provocava-lhe um desacerto na altura dos ombros. As mãos acusavam algumas bombas de foguete, rebentadas fora de tempo, e os entalões nas pedras da ribeira, catando os peixitos.
No trato era muito educado e correcto e tinha o “coração” enorme. Amigo do seu amigo e capaz de dar tudo, por um amigo…
Tratava, com a mãe, um pequeno chão nas Fontainhas, logo atrás do Calvário; ali colhiam o sustento de ambos e tinham os mimos da casa, com que o Zé Lines gostava de presentear a “sua madrinha”.
Minava-se por dar uma volta, ir até à cidade, ou andar, simplesmente, pelos campos –, onde, em muitas horas, percorremos todo o termo do Rochoso e muitas vezes fizemos pescarias no Noeme e no Côa.
Vi-o caçar verdugos e procurar míscaros e tortulhos, no tempo deles.
No Verão, percorríamos as terras em volta e começávamos, antes do nascer do sol, a armar as costelas aos taralhões, até ao Monte Margarida e ao termo da Cerdeira.
Nos piqueniques que duas ou três vezes, nas férias grandes, fazíamos nas margens do Côa, junto a Roque Amador, o Zé Lines era o melhor ajudante que podíamos ter: capinava, abria clareiras nos arbustos, apanhava verdura, cuidava da garotada junto do açude, ia comigo à praça e ao talho no Sabugal… que saudades me despertam as recordações daqueles dias bem passados!...
Recordo, particularmente, uma conversa, num dos últimos serões em que estive com o Zé Lines, sentados junto às cruzes do Calvário.
Foi ali que, a meu pedido, o Zé me explicou a aplicação que deu aos duzentos escudos com que controlou a rapaziada que queria que eu participasse nas “bicas”, na altura do meu casamento.
É digno de registo o poder de síntese com que me foi descrito o caso: a rapaziada e até alguns homens feitos, queriam vazar-lhe um pneu do carro, fazer algazarra junto da casa de sua noiva e levá-lo a beber uns copos – tudo em nome da tradição e como baptismo de amizade –.
Pareceu-me que o senhor professor se não devia misturar e, na taberna do Zé Maria e na do sr. Domingos Marques, falei alto e grosso: o senhor professor já me deu dinheiro que chega para nos encher a barriga de bom vinho, mas como ainda não conhece ninguém – e só por isso –, não virá beber connosco. Ninguém toca em nada dele e, se alguém o fizer, racho-o!...ouviram bem, racho-o!...
Compreendi, perfeitamente, a maneira como o Zé Lines geriu o caso; apreciei a discrição que sempre teve sobre o assunto e percebi que estava ali um homem simples, mas que sabia respeitar os valores da amizade, que prezava mais que tudo.
Dei-lhe um abraço e agradeci-lhe, com um simples “obrigado Zé Lines”, gosto muito que seja meu amigo.
Vi, mais duas ou três vezes o Zé Lines, que, entretanto começou a passar de tempos a tempos pelo sanatório da Guarda, onde todos os cuidados médicos já não foram a tempo de evitar o falecimento, aos sessenta anos.
Perdi um grande amigo; que nunca me revelou todo o segredo da sua simplicidade, da sua maneira de ser amigo…
A sua maior satisfação era dar alguma coisa a alguém!...
E tinha, tão pouco!...
domingo, 7 de setembro de 2008
A maior “galga”
Mais para o fim do serão, quanto as mentes já estavam menos lúcidas, costumava atacar o Augusto Brotas, que se resguardava enquanto os outros iam bebendo e tinha fama de sabedor.
Junto do balcão da taberna resistiam ainda os quatro da ordem: Chico Galhoso, Abílio da Chica, Bento e Tó da Marreca.
Vem de lá o Brotas e desafia cada um a contar a maior galga que já tivesse ouvido. O campeão ficava livre do pagamento de rodada e ele, Brotas, como juiz, também não pagava, naquela noite.
Começa o Tó da Marreca a dizer que já tinha estado numa herdade onde havia um poço tão fundo, tão fundo que, só para chegar à água, foram precisos quinze rolos de corda, com cento e vinte metros cada rolo. E, depois, ainda outro tanto para se alcançar o fundo.
Quase em uníssono exclamaram todos: aldra!...
Porém, sem se desmanchar, o Tó acrescentou que e o poço foi todo feito em areia e terra, sem se encontrar uma única pedra e a água é salgada, porque vem direitinha do mar.
O Galhoso atirou, de repente:
Andei, a ceifar, debaixo de um castanheiro, tão grande, tão grande, que num ano, carregou de castanhas um comboio, tão grande, tão grande, que o primeiro vagão estava a sair quando chegou o rancho da azeitona e o último ainda estava a carregar quando, ao fim de mês e meio, o rancho veio embora.
Mentiroso sou eu e parece-me que não viram grandes proezas, disse o Bento
Estive, há dias, ao pé duma abóbora, tão grande, tão grande, que para conseguir vê-la toda, era preciso andar em roda dela.
Chegou para fazer vianda para todos os porcos que nunca se lavaram no poço do Tó, porque a água era salgada, nem os que também o não fizeram para não deixar de carregar o comboio das castanhas.
Para pesar toda a produção foram precisas mais de uma dúzia de balanças e quatro homens gastaram à roda de um mês, só para parti-la.
O Abílio da Chica falou por último e disse que viu um mar, tão grande, tão grande, que nem todos os peixes do mundo a beber dele, são capazes de baixar-lhe o nível, quanto mais secá-lo!...
Salta de lá o Brotas, sisudo e muito convencido, com a sentença:
Temos aqui mentirosos de alta qualidade e todos muito sérios nas suas informações.
O poço do Tó, o castanheiro do Galhoso e a abóbora do Bento, merecem respeito. Mas o mar do Abílio é soberbo!...
Atão tantos peixes, a beber, desde que o mundo é mundo, e ainda o não secaram!?... Só esperamos que um dia não se lembrem de ir todos beber, ao mesmo sítio e à mesma hora …Aí o caso era muito sério!....
Parece-me que todos concordam que ganhou o Abílio e, venha de lá a rodada, antes que se acabe primeiro a água do mar do Abílio, que a zurrapa que o Ti’ Manel nos deita nos copos. Mas, antes oiçam lá esta:
Para a próxima, escusam de ir tão longe:
Atão não temos aqui uma serra tão grande, tão grande, que até o sol lhe passa sempre à roda, com medo de lhe passar por cima?
Atão, nunca tinham pensado porque puseram o nome de Serra aqui à nossa terra?...
Junto do balcão da taberna resistiam ainda os quatro da ordem: Chico Galhoso, Abílio da Chica, Bento e Tó da Marreca.
Vem de lá o Brotas e desafia cada um a contar a maior galga que já tivesse ouvido. O campeão ficava livre do pagamento de rodada e ele, Brotas, como juiz, também não pagava, naquela noite.
Começa o Tó da Marreca a dizer que já tinha estado numa herdade onde havia um poço tão fundo, tão fundo que, só para chegar à água, foram precisos quinze rolos de corda, com cento e vinte metros cada rolo. E, depois, ainda outro tanto para se alcançar o fundo.
Quase em uníssono exclamaram todos: aldra!...
Porém, sem se desmanchar, o Tó acrescentou que e o poço foi todo feito em areia e terra, sem se encontrar uma única pedra e a água é salgada, porque vem direitinha do mar.
O Galhoso atirou, de repente:
Andei, a ceifar, debaixo de um castanheiro, tão grande, tão grande, que num ano, carregou de castanhas um comboio, tão grande, tão grande, que o primeiro vagão estava a sair quando chegou o rancho da azeitona e o último ainda estava a carregar quando, ao fim de mês e meio, o rancho veio embora.
Mentiroso sou eu e parece-me que não viram grandes proezas, disse o Bento
Estive, há dias, ao pé duma abóbora, tão grande, tão grande, que para conseguir vê-la toda, era preciso andar em roda dela.
Chegou para fazer vianda para todos os porcos que nunca se lavaram no poço do Tó, porque a água era salgada, nem os que também o não fizeram para não deixar de carregar o comboio das castanhas.
Para pesar toda a produção foram precisas mais de uma dúzia de balanças e quatro homens gastaram à roda de um mês, só para parti-la.
O Abílio da Chica falou por último e disse que viu um mar, tão grande, tão grande, que nem todos os peixes do mundo a beber dele, são capazes de baixar-lhe o nível, quanto mais secá-lo!...
Salta de lá o Brotas, sisudo e muito convencido, com a sentença:
Temos aqui mentirosos de alta qualidade e todos muito sérios nas suas informações.
O poço do Tó, o castanheiro do Galhoso e a abóbora do Bento, merecem respeito. Mas o mar do Abílio é soberbo!...
Atão tantos peixes, a beber, desde que o mundo é mundo, e ainda o não secaram!?... Só esperamos que um dia não se lembrem de ir todos beber, ao mesmo sítio e à mesma hora …Aí o caso era muito sério!....
Parece-me que todos concordam que ganhou o Abílio e, venha de lá a rodada, antes que se acabe primeiro a água do mar do Abílio, que a zurrapa que o Ti’ Manel nos deita nos copos. Mas, antes oiçam lá esta:
Para a próxima, escusam de ir tão longe:
Atão não temos aqui uma serra tão grande, tão grande, que até o sol lhe passa sempre à roda, com medo de lhe passar por cima?
Atão, nunca tinham pensado porque puseram o nome de Serra aqui à nossa terra?...
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
Chuva de prata
Toda a garotada da aldeia gostava de ouvir as histórias do velho Vicente Pisco, que morava num casebre, ao fundo da cabana onde o Ti’ Zé Coroado fazia cestos de verga.
Na nossa linguagem não havia números para dizer a idade do velhote; era velho e mais nada.
Naquele ano, à volta de mil novecentos e cinquenta, não havia escola no Posto da Serra e a garotada distribuiu-se pelas aldeias mais próximas; eu tinha a sorte de ter avós na Queixoperra e fui para lá, fazer a segunda classe.
Pouco mais me lembro, para além de que aquele ano foi muito bonito: gostei muito da Professora, dos colegas e, sobretudo, de ver muitas coisas que não havia na minha terra. Havia muitas peras, muitas casas com juntas de bois, muitos caçadores e duas coisas que, de tal modo me cativaram as papilas gustativas, que ainda consigo lembrar-lhes o sabor, na íntegra: os queijos da minha avó e as passas de figos brancos, da figueira da Amarela.
No Pito Cerro tínhamos laranjas muito doces, na horta do Ribeiro, cenouras – coisa que nunca tinha visto na Serra –, na Matagosa, água muito fresquinha e no Ougueiro, ao fundo do Pito de Horta, alhos, cebolas e alfaces e uma nora.
Uma coisa me incomodava: dado o elevado número de caçadores, havia muitos cães e eu tinha medo deles. Era um consolo subir e descer a azinhaga da Bica, quando ia a recados à loja do Ti’ Zé Maia, ou do Ti’ Silvestre: subia e descia sem encontrar um único cão.
Morava no casal, junto das casas da gente mais velha da terra e, da varandita do meu avô, via entrar e sair o Ti’ Vicente Pisco.
Diga-se que Vicente era um nome vulgar na Queixoperra e não havia nenhum na Serra. Aqui está mais uma novidade, para mim, entre muitas outras que me enriquecerem, de tal modo, que ainda hoje guardo um carinho especial pelos usos e costumes da terra e pelas suas gentes.
Ouvi, com outros miúdos, muitas histórias do velhote. Retenho-as, na sua grande maioria, na memória. Há, porém, uma que várias vezes se adianta e sobrepõe às outras: a do dia da chuva de prata.
Contava, sentado no degrau da sua porta, o Ti’Vicente Pisco: Há dias para tudo; uns melhores, outros piores e muitos nem bons nem maus.
Há dias que só vêm uma vez: só temos um dia para nascer e só outro para morrer. Um dos meus segredos é saber quais são esses dias: para nascer é o primeiro e para morrer é o último, da vida de cada um.
E olhem que já tem vindo aqui à minha porta o dia de morrer, mas eu, nesse dia, vou-me embora para longe, para as Fontainhas, ou para a Lameira Cimeira. É por isso que sou o mais velho da aldeia.
Há dias que nos ficam na lembrança e outros que teimam em não nos sair dela, embora gostássemos de os esquecer.
Há dias bons e dias maus – vocês conhecem o Ti’Manel Dias, das Barreirinhas? E que vos parece?
É claro, é mau. Assobia aos cães quando vocês lhe passam à porta!...
Nós, lá íamos abanando a cabeça, até que o João do Ribeiro, ou o Heitor – outro nome que também não havia na Serra –, lançavam o desafio: Oh Ti’Vicente, e é verdade que há um dia que chove prata?!...
Completamente verdade. Foi-me dito pelo meu avô e olhem que era homem que nunca mentia!...
Ele andou toda a vida para encontrar esse dia e parece-me que calhou numa altura em que tinha ido a alguma feira, ou quando andou na tropa. Acabou por não o descobrir.
Eu, aqui há uns anos, acordei com o chão coberto de branco. Vesti as calças, a correr, e fui à tapada para apanhar a prata, mas ainda não era o dia de chover prata; era, apenas, uma das poucas vezes que caiu neve cá na terra.
Palavra de Vicente Pisco: podem estar descansados que quando estiver para chegar o dia da chuva de prata, eu mando avisar todos – não quero que ninguém fique sem poder guardar um bem tão raro –.
Olhámos uns para os outros, muito crédulos, e fomos embora!...
Na nossa linguagem não havia números para dizer a idade do velhote; era velho e mais nada.
Naquele ano, à volta de mil novecentos e cinquenta, não havia escola no Posto da Serra e a garotada distribuiu-se pelas aldeias mais próximas; eu tinha a sorte de ter avós na Queixoperra e fui para lá, fazer a segunda classe.
Pouco mais me lembro, para além de que aquele ano foi muito bonito: gostei muito da Professora, dos colegas e, sobretudo, de ver muitas coisas que não havia na minha terra. Havia muitas peras, muitas casas com juntas de bois, muitos caçadores e duas coisas que, de tal modo me cativaram as papilas gustativas, que ainda consigo lembrar-lhes o sabor, na íntegra: os queijos da minha avó e as passas de figos brancos, da figueira da Amarela.
No Pito Cerro tínhamos laranjas muito doces, na horta do Ribeiro, cenouras – coisa que nunca tinha visto na Serra –, na Matagosa, água muito fresquinha e no Ougueiro, ao fundo do Pito de Horta, alhos, cebolas e alfaces e uma nora.
Uma coisa me incomodava: dado o elevado número de caçadores, havia muitos cães e eu tinha medo deles. Era um consolo subir e descer a azinhaga da Bica, quando ia a recados à loja do Ti’ Zé Maia, ou do Ti’ Silvestre: subia e descia sem encontrar um único cão.
Morava no casal, junto das casas da gente mais velha da terra e, da varandita do meu avô, via entrar e sair o Ti’ Vicente Pisco.
Diga-se que Vicente era um nome vulgar na Queixoperra e não havia nenhum na Serra. Aqui está mais uma novidade, para mim, entre muitas outras que me enriquecerem, de tal modo, que ainda hoje guardo um carinho especial pelos usos e costumes da terra e pelas suas gentes.
Ouvi, com outros miúdos, muitas histórias do velhote. Retenho-as, na sua grande maioria, na memória. Há, porém, uma que várias vezes se adianta e sobrepõe às outras: a do dia da chuva de prata.
Contava, sentado no degrau da sua porta, o Ti’Vicente Pisco: Há dias para tudo; uns melhores, outros piores e muitos nem bons nem maus.
Há dias que só vêm uma vez: só temos um dia para nascer e só outro para morrer. Um dos meus segredos é saber quais são esses dias: para nascer é o primeiro e para morrer é o último, da vida de cada um.
E olhem que já tem vindo aqui à minha porta o dia de morrer, mas eu, nesse dia, vou-me embora para longe, para as Fontainhas, ou para a Lameira Cimeira. É por isso que sou o mais velho da aldeia.
Há dias que nos ficam na lembrança e outros que teimam em não nos sair dela, embora gostássemos de os esquecer.
Há dias bons e dias maus – vocês conhecem o Ti’Manel Dias, das Barreirinhas? E que vos parece?
É claro, é mau. Assobia aos cães quando vocês lhe passam à porta!...
Nós, lá íamos abanando a cabeça, até que o João do Ribeiro, ou o Heitor – outro nome que também não havia na Serra –, lançavam o desafio: Oh Ti’Vicente, e é verdade que há um dia que chove prata?!...
Completamente verdade. Foi-me dito pelo meu avô e olhem que era homem que nunca mentia!...
Ele andou toda a vida para encontrar esse dia e parece-me que calhou numa altura em que tinha ido a alguma feira, ou quando andou na tropa. Acabou por não o descobrir.
Eu, aqui há uns anos, acordei com o chão coberto de branco. Vesti as calças, a correr, e fui à tapada para apanhar a prata, mas ainda não era o dia de chover prata; era, apenas, uma das poucas vezes que caiu neve cá na terra.
Palavra de Vicente Pisco: podem estar descansados que quando estiver para chegar o dia da chuva de prata, eu mando avisar todos – não quero que ninguém fique sem poder guardar um bem tão raro –.
Olhámos uns para os outros, muito crédulos, e fomos embora!...
terça-feira, 2 de setembro de 2008
S. Barnabé
O Ti’Cavaco saía alta madrugada, montado no macho, estrada de Almodôvar a baixo e, antes de entrar na vila, desviava à direita, embrenhando-se no Caldeirão.
Passava entre as barragens de Monte dos Clérigos e Boavista, até às nascentes do rio Mira.
Entre as aldeias de Cansados e Felizes, circundava, pelo norte, as alturas da serra, onde está o talefe dos 577 metros, e tomava o caminho para S. Barnabé, onde chegava por volta do meio-dia.
Ia direito a casa do Ti’Chico da Azenha, em procura da melhor medronheira que alguma vez lhe passou pelo estreito.
Era dessa pomada que dispensava aos clientes amigos e especiais. Passados quase quarenta anos tenho ainda na minha casa umas duas garrafas desse néctar, adquirido a cinco escudos o litro, ou vinte e dois escudos e cinquenta centavos os cinco litros.
O Ti’Chico colhia o medronho quando já pendia, muito bem maduro. Tinha duas talhas de uns dez almudes cada, onde preparava as infusões. A água era cuidadosamente apanhada, de manhã cedo, numa mina distante de tudo e certamente conhecida de muito poucos. As raízes das torgas, arrancadas no fim do inverno e secas, à sombra, nos cómodos da burra, eram o combustível ideal para manter constante o calor que aquecia a caldeira do velho alambique de cobre.
O engenho, era formado, além da caldeira, calafetada em pedras e cal, sobre uma fornalha com acesso por uma pequena porta, onde ardia a fogueira que fazia ferver a infusão, pelo capelo, o banho onde estava mergulhado o cano, em serpentina, e o tubo onde corria a aguardente, para um cântaro, de barro, de uns vinte litros. Cada caldeira dava uns dois cântaros, da boa, e mais um, da mais fraca.
O Ti´Chico descrevia, com detalhe, a forma de trabalhar, mas… os segredos da colheita dos frutos, a recolha da água, o tempo de infusão, a apanha e tratamento das cepas das torgas e a temperatura a que pertencia guardar o néctar de príncipes e reis, como lhe chamava, só uma vez seriam revelados – cada pai passava o segredo ao filho mais velho, num ritual que envolvia a entrega de um tubo de cana grossa, fechado com uma rolha de cortiça e selado com sangue.
Contava o velhote:
Um dia, há centos de anos, andando à caça, pelos altos da Serra, o Senhor Rei D. Duarte – aquele que tinha um irmão para lá de Lagos –, matou um enorme javali e, tão contente ficou, que decretou que aquele lugar se passasse a chamar Felizes.
Levada, por caminhos difíceis, a imponente presa, de tão pesada que era, deixava exaustos todos os serviçais, cujo chefe pediu uma pausa a sua majestade. O senhor D. Duarte autorizou a paragem e ordenou que ao local se passasse a chamar Cansados.
Seguindo dali, por um dos mais belos vales do Caldeirão, deu a comitiva com uma azenha, onde apenas vivia um velho moleiro ermitão que, ao ver tão importante figura, lhe ofereceu uma pichorra de medronheira, preparada por ele próprio.
El-Rei D. Duarte, sentado ali, naquele banquinho de azinho, encostado ao alambique, aproveitou o calorzinho das brasas de Torga e provou a nossa medronheira, que nunca mais deixou que faltasse nas festas da sua corte.
Era dia de S. Barnabé e, também, esse o nome do meu antepassado que recebeu Sua Majestade, que, ali mesmo, mandou que o lugar se chamasse, para sempre, S. Barnabé
Passava entre as barragens de Monte dos Clérigos e Boavista, até às nascentes do rio Mira.
Entre as aldeias de Cansados e Felizes, circundava, pelo norte, as alturas da serra, onde está o talefe dos 577 metros, e tomava o caminho para S. Barnabé, onde chegava por volta do meio-dia.
Ia direito a casa do Ti’Chico da Azenha, em procura da melhor medronheira que alguma vez lhe passou pelo estreito.
Era dessa pomada que dispensava aos clientes amigos e especiais. Passados quase quarenta anos tenho ainda na minha casa umas duas garrafas desse néctar, adquirido a cinco escudos o litro, ou vinte e dois escudos e cinquenta centavos os cinco litros.
O Ti’Chico colhia o medronho quando já pendia, muito bem maduro. Tinha duas talhas de uns dez almudes cada, onde preparava as infusões. A água era cuidadosamente apanhada, de manhã cedo, numa mina distante de tudo e certamente conhecida de muito poucos. As raízes das torgas, arrancadas no fim do inverno e secas, à sombra, nos cómodos da burra, eram o combustível ideal para manter constante o calor que aquecia a caldeira do velho alambique de cobre.
O engenho, era formado, além da caldeira, calafetada em pedras e cal, sobre uma fornalha com acesso por uma pequena porta, onde ardia a fogueira que fazia ferver a infusão, pelo capelo, o banho onde estava mergulhado o cano, em serpentina, e o tubo onde corria a aguardente, para um cântaro, de barro, de uns vinte litros. Cada caldeira dava uns dois cântaros, da boa, e mais um, da mais fraca.
O Ti´Chico descrevia, com detalhe, a forma de trabalhar, mas… os segredos da colheita dos frutos, a recolha da água, o tempo de infusão, a apanha e tratamento das cepas das torgas e a temperatura a que pertencia guardar o néctar de príncipes e reis, como lhe chamava, só uma vez seriam revelados – cada pai passava o segredo ao filho mais velho, num ritual que envolvia a entrega de um tubo de cana grossa, fechado com uma rolha de cortiça e selado com sangue.
Contava o velhote:
Um dia, há centos de anos, andando à caça, pelos altos da Serra, o Senhor Rei D. Duarte – aquele que tinha um irmão para lá de Lagos –, matou um enorme javali e, tão contente ficou, que decretou que aquele lugar se passasse a chamar Felizes.
Levada, por caminhos difíceis, a imponente presa, de tão pesada que era, deixava exaustos todos os serviçais, cujo chefe pediu uma pausa a sua majestade. O senhor D. Duarte autorizou a paragem e ordenou que ao local se passasse a chamar Cansados.
Seguindo dali, por um dos mais belos vales do Caldeirão, deu a comitiva com uma azenha, onde apenas vivia um velho moleiro ermitão que, ao ver tão importante figura, lhe ofereceu uma pichorra de medronheira, preparada por ele próprio.
El-Rei D. Duarte, sentado ali, naquele banquinho de azinho, encostado ao alambique, aproveitou o calorzinho das brasas de Torga e provou a nossa medronheira, que nunca mais deixou que faltasse nas festas da sua corte.
Era dia de S. Barnabé e, também, esse o nome do meu antepassado que recebeu Sua Majestade, que, ali mesmo, mandou que o lugar se chamasse, para sempre, S. Barnabé
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Mais uma vez, agradecemos as mensagens e contactos diversos, por diferentes meios
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Prof. José Valente
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