sábado, 31 de maio de 2014

O Melro




Sorrateiramente, pé ante pé, descia a barreira das últimas estevas e debicava, junto da levada, os vermes que catavam a terra húmida enquanto espreitavam a luz e calor do sol para se desenvolverem.

O melro entrava em cena e cada vez que um daqueles bichitos se mostrava ia juntar-se aos outros que já enchiam o papo do passarão. 

Depois de saciado, beberricava e satisfazia a sede com aquela água cristalina e cacarejante que seguia levada abaixo para as hortas lá do fundo do Lavadouro.

O ti’Manel Cortiço deliciava-se a contemplar as habilidades do bicho fino. 

Desde pequeno que tinha um fraquinho especial pelos melros e as carriças que, não tendo nada a ver uns com os outros, são todos filhos de Deus e se cá foram postas é porque interessa que cá estejam. 

São criaturas como quaisquer outras e não há-de ser por mim que alguma coisa lhes há-de correr mal. Se pudesse ajudava a criá-los e todas as boízes, costelas e outras esparrelas que lhes armem, serão partidas por mim. Tudo tem direito à vida…

Estes monólogos sonoros, ilustrados com gestos teatrais, foram muitas vezes as delícias das minhas espreitas, no meio do milharal do chão de cima, quando o velho Cortiço regava na horta da borda da ribeira. 

Para ele, qualquer ser vivo, era uma criatura de Deus e tinha sido criado como nós criamos um filho; nada, nem ninguém, tinha o direito de molestá-lo. 

E, sozinho, filosofava: aos homens, que são capazes de ser maus, sou capaz de lhe assentar duas ripadas no lombo; já aos bichos, aos pássaros e às crianças, não!... Não fazem mal a ninguém, não têm culpa de ter nascido e são a alegria das nossas tristezas. Bendito seja quem os criou e abençoado seja quem os proteger.

Estou a vê-lo, sentado na parede da horta, à sombra da figueira regal, junto da videira Fernão Pires, deliciando-se a ver os passaritos debicarem nos figos madurinhos, ou enchendo o papo de uvas amarelinhas. 

Ficava como que em transe, imóvel e silencioso, apreciando os pássaros a comerem-lhe as novidades. 

E depois, ia apanhar os restos dos figos, ou os bagos que sobravam dos cachos vindimados pelos melros e outras aves.

Também nos pequenos pegos da ribeira o ti’Cortiço se sentava na relva fresca, nas tardes de fim de Verão, a desfazer bocaditos de pão para juntar os peixitos que quase lhe vinham comer à mão.

Não tinha qualquer sensibilidade apurada para a música; não era capaz de trautear a mais elementar das melodias, nunca conseguiu aprender a assobiar e por mais que tentasse nunca lhe saiu direita qualquer imitação de voz de animal. 

Nunca percebi, por isso, as razões do seu silêncio e atenção sempre que um rouxinol das canas, um pintassilgo ou um verdilhão lançavam ao ar os seus trinados, muitas vezes em conjugação com os vizinhos, qual sinfonia pastoral, ou banda de música natural.

E, mistério dos mistérios: será que não conseguindo alinhar duas notas de música, tinha sensibilidade para ouvir e perceber todos aqueles trinados e chilreados, tocados a primor pelas diversas aves da natureza? 

Pelo modo como ouvia, inebriado, toda aquela passarada, arrisco-me a admitir que, embora não sendo capaz de executar, era possível que percebesse todos aqueles acordes e melodias. 

Uma coisa é certa: distinguia e associava o canto de qualquer ave ao seu emissor. E mais; pelas vozes dos diferentes animais, conseguia saber as horas do dia.

Mas voltemos ao melro que originou este conjunto de cogitações e a lembrança do ti’Cortiço. 

Porém, vejamos os epítetos com que o velhote mimava aquele pássaro preto, de bico amarelo, mais corpulento que a maioria das aves campestres e ribeirinhas: bicho fino, esperto e ladino, diligente e habilidoso a procurar a comida, manhoso e dissimulado, forte e bem adaptado ao meio em que vive. 

Grande maroto, não sei porquê, consegues ser o pássaro de que eu gosto mais, dizia várias vezes, de si para si, o ti’ Cortiço! 

E vigiava os locais em que os melros faziam os ninhos para que nenhum predador, humano ou selvagem, tivesse a possibilidade de os encontrar ou danificar. 

Já no tempo dos taralhões, as costelas armadas nas suas hortas eram encontradas desarmadas, sobre os terreiros, e com as agúdias mortas. 

Aliás quem sabia daquele procedimento do ti’Cortiço nem se dava ao trabalho de armar, fosse o que fosse, na horta do velhote e quando fazia as caçadas, em que retirava os passaritos das costelas, passava ao largo, ou escondia os trofeus de caça, para não ouvir os impropérios e ameaças da boca daquela criatura que nunca se alterava a não ser quando defendia os pássaros.

Outro dos encantos do ti’Manuel Marques Lopes – nome de baptismo do ti’Cortiço – eram as abelhas. 

Tinha apenas duas colmeias e chegava a perguntar às abelhas que esvoaçavam de flor em flor, lá na horta, se moravam na sua colmeia da horta de cima, junto do palheiro. 

Com cortiços feitos de uma só peça unida lateralmente por pregos de madeira e cobertos com lajes de pedra, ligeiramente inclinadas para norte e colocadas sobre uma base de pedra, com menos de um palmo de altura. Por trás, a uns dois palmos de uma barreira cortada a pique, e encimada com tufos de estevas e tojos, o local era inacessível e a ranhura por onde entravam e saíam as meninas – como lhes chamava o ti’Cortiço – ficava num nível praticamente fora do alcance de lagartos e outros predadores rastejantes. 

Os cortiços das colmeias estavam impecavelmente limpos e todas as ranhuras devidamente calafetadas com excremento de vaca misturado com barro. 

O sol batia na porta das colmeias desde o meio da manhã até quase ao fim do dia e do local podia ver-se todo o vale da ribeira para cima e para baixo.

Segundo a filosofia do velhote não devia roubar-se o alimento às abelhas que tanto trabalho tiveram para consegui-lo. 

Mas quando a colmeia tem os favos todos cheios é importante que se creste uma parte para que as obreiras não se tornem preguiçosas. 

Este equilíbrio era uma das grandes preocupações do velhote que varria e limpava, todas as semanas, a entrada das casas das amigas abelhas e inspeccionava cuidadosamente as imediações a ver se havia algum sinal de preocupações.

Quando tinha necessidade de abrir alguma colmeia ou quando retirava alguns favos para crestar, nunca se protegia com máscaras ou com fumos. 

As meninas conhecem-me e sabem que sou seu amigo; não me farão mal e, uma ou outra ferroada não chega para me fazer zangar com elas.

Todo o tempo do ano era passado na horta e, depois de viúvo, a maior parte das noites dormia lá no palheiro. 

Desde que a minha Amélia se foi embora, nem os pássaros cantam tão bem, nem as plantas medram da mesma maneira; até as abelhas perceberam que me falta a alegria de viver, mas cá me vou animando e talvez me faltasse tudo se estes amigos todos deixassem de me acompanhar. 

É como se estivesse na missa: fico mais calado, mais pensador, mais metido comigo mesmo e acabo resignado. 

Sei que compreendem que não tenho a vivacidade com que os acompanhava, e desculpo-os por também cantarem menos e se sentirem mal com a minha solidão. Coitados, hão-de compreender que não sou um grande homem e quando o inferno por aqui passou, há duas semanas, foi o pior dia da minha vida – não porque nunca tivesse visto estas cinzas que são os restos de tudo o que aqui havia – mas porque os meus amigos se foram embora, pois não têm que comer. 

E não sei se quando este preto voltar a ser verde ainda aqui haverá olhos para ver. 

Assim, com mais tempo para dormir, sinto-me com mais sono e sei que os melros devem andar por aí; eu é que tenho dificuldade em vê-los, porque se confundem com as cinzas que cobrem tudo e estão, aos poucos, a escurecer-me a alma.

Menos de quinze dias depois, no dia da Senhora de Agosto, depois de ir à horta fazer as necessidades, limpou cuidadosamente o palheiro e as imediações das colmeias, vestiu a melhor roupa que tinha e estendendo-se sobre a enxerga, com as mãos abertas e voltadas para cima, em sinal de dádiva, fechou os olhos e adormeceu, para não mais voltar a acordar. 

Foi encontrado, com um sorriso nos lábios e uma postura de total serenidade, nessa tarde quando alguém deu por falta dele na missa e foi à horta ver o que se passava. 

E a história virou lenda: diz-se que ainda é visto e ouvido por pássaros, peixes e abelhas que nunca mais tiveram a mesma alegria e que em certos dias do ano há reuniões anormais desses amigos, que fazendo silêncio esperam o ti’Cortiço lá na horta, sentado na parede, esperando que a figueira desaparecida volte a dar figos e as abelhas voltem a ter casas junto do palheiro.

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