Se tivesse tido mais equilíbrio e bom-senso, fazendo o que lhe mandavam e não o que achava melhor, seguindo os exemplos dos ascetas e santos e não os dos livros de filósofos e intelectuais que faziam da dúvida a fonte do seu saber e a base da sua acção, mostrar-se-ia mais dócil, mais temente e mais talhado para Ministro de Deus.
Assim, depois das lutas de uns e paciência de outros, foi perdendo apoiantes e, apenas o Conselheiro Espiritual votou, vencido, quando decidiram que o aluno Ricardo Mendes não servia para o serviço da Igreja e no fim do ano, que se aproximava, seguiria para férias, sem retorno.
Chegavam ao fim os cinco anos que vivera no Seminário.
A decisão não lhe agradou, ou desagradou, sobremaneira; mas foi, todavia um contratempo de peso.
Ainda não tinha estudos suficientes para usar na vida laica como equivalências; seria mal recebido pela família que apostava na sua Ordenação como padre; não teria meios para ir estudar para qualquer liceu ou colégio; e não se resignaria a ir cavar, de sol a sol, como os pais e irmãos, suportando o estigma de “padreca falhado”.
Iria, por isso, apesar dos seus dezassete anos, lutar com a vida e, por ela, venceria.
Foram muito penosos os primeiros meses na aldeia. Naqueles tempos, embora fosse muito difícil a vida nas instituições religiosas, era um verdadeiro privilégio em relação ao viver dos trabalhadores rurais, a que o Ricardo parecia estar condenado.
Foi vivendo como pôde, mas nunca perdeu os hábitos de leitura e aproveitou todos os contactos com os operários da Terra que andavam por fora, sobretudo em Lisboa, nos duros trabalhos da estiva e da construção civil.
Apenas alguns padres, que ainda não acreditavam que o Ricardo desistisse de se Ordenar, se prontificaram a ceder-lhe livros para, pelo menos, se ir entretendo e mantendo alguma ligação com a Igreja.
Mas a cabeça do rapaz já andava por outras paragens e, à primeira oportunidade, com o pouco dinheiro que tinha – pouco mais que o do bilhete de combóio -, seguiu para Lisboa, ao encontro dos que por lá trabalhavam.
Chegou à cidade grande na semana antes de completar dezoito anos, nos princípios de Outubro, dum ano frio e chuvoso.
Do Rossio ao Campo Pequeno, com uma pequena malita de cartão na mão, absorto por toda a fantasia que constituía uma cidade tão grande, subiu a pé.
Chegado lá, e dado que era domingo, conseguiu avistar-se com alguns homens e rapazes da aldeia.
Comeu um bocado de pão com queijo que levava na mala e começou à procura de lugar para dormir e para trabalhar.
Foi então que o seu anjo protector, como dizia: é que nem todos ficaram zangados comigo; houve um, cujo nome ignoro, que sempre me acompanhou e protegeu – talvez o único que percebesse que se me tivessem acompanhado mais, teriam feito de mim o que queriam – um padre e, estou seguro que se tal tivesse acontecido, não teriam que se arrepender, pois seria, no mínimo, tão bom como os outros -.
Mas voltemos ao anjo.
O Ti’ Serras, pedreiro bem conceituado no meio, e Encarregado nas obras de construção do Hospital de Santa Maria, olhou para o rapaz e perguntou-lhe:
Porque estás aqui? Os teus pais sabem de ti? Ainda não tens dezoito anos, ou já? Afinal o que queres?
Depois de responder a todas as perguntas, com calma e segurança, gaguejou um pouco quanto ao seu querer. Afinal era muito simples: queria carinho e ajuda, pois força tinha ele para o que desse e viesse.
Não o quiseram no Seminário nem o acarinharam na aldeia. Só um anjo, cujo nome ignorava, ainda o acompanhava. E, Ti’Serras, espero apenas que me abra o caminho; pois que andá-lo será comigo e como eu aprendi, serei eu a fazê-lo, caminhando.
Quero três coisas: lugar para dormir, trabalhar e poder continuar a estudar.
Vais dormir no nosso “hotel”, lá junto da obra do hospital de Santa Maria, com os restantes.
Amanhã às oito, em ponto, apresentas-te ao Manel Alves para começares a dar serventia e, às cinco, quando acabares, juntas-te com um rapaz que temos lá, estudante, para te dizer tudo o que quiseres saber quanto a essa matéria.
Tenho outra tarefa para ti, mas daqui a dois, ou três meses, falaremos nisso. Para já veremos as tuas capacidades e até onde podes chegar, no nosso meio.
Ao segundo mês chamaram pelo Ricardo para lhe entregarem o salário e, louvado na frente dos colegas, foi convidado a passar aos escritórios para ficar a ajudar o fiel de armazém do estaleiro.
Era trabalho mais limpo e melhor remunerado. E, antes de iniciar a nova actividade foi agradecer ao Ti’Manel Alves, chamando-o de seu anjo da guarda.
Em resposta ouviu o que mais desejava:
A empresa – uma das maiores construtoras do país – despachara, positivamente, um adiantamento sobre salários até ao equivalente a meio ano, destinado ao pagamento de inscrições, matrículas, livros e até alguma roupa.
Estavam atribuídos seis desses prémios a outros tantos jovens que se sabia quererem estudar e terem dificuldades. O Ricardo era um desses beneficiados.
Mas, para saberem o resto, deviam passar pelos escritórios daí a dois dias, onde o próprio patrão lhes diria o resto, antes de ser comunicado a todos os trabalhadores da construtora.
Começava a institucionalização dos benefícios sociais na construtora, que viria a fazer história naquela área.
Com um muito obrigado ao Encarregado, o Ricardo retomou o trabalho, despedindo-se dos colegas e agradecimento da ajuda que tinha recebido.
No dia seguinte apresentou-se no escritório e foi de imediato enviado aos estaleiros, onde o Fiel – sr. Jacinto, de seu nome -, disse já o conhecer e ter pedido a sua ajuda naquele trabalho.
Indicou-lhe uma secretária, mostrou-lhe os arquivos de materiais, as fichas de controlo e os preçários para valorização das requisições e folhas de obra.
E, a partir dali, todos os dias iriam passar por uma das áreas de materiais para que aprendesse tudo o que se usava, para que servia e como era registado.
Eram centenas ou milhares de nomes que teria que decorar, mas tinha a certeza que tinha capacidade para isso e muito mais.
Findo o primeiro mês, numa visita de um dos engenheiros da empresa, acompanhado pelo patrão, foi admirado e louvado o trabalho do estaleiro.
Da arrumação à limpeza, mais parecia um armazém limpo e bem organizado do que um estaleiro de obras.
E o sr. Jacinto não poupou palavras para enaltecer a competência, dedicação e zelo do seu ajudante Ricardo.
Entretanto, numa reunião entre a Gerência e quadros principais, até ao nível de Encarregados, foi comunicada a instituição de um prémio a atribuir ao trabalhador estudante que mais se distinguisse em cada ano.
Um júri determinaria o vencedor, que receberia, nos anos seguintes, até à conclusão do curso, uma gratificação mensal igual à remuneração mensal; isto é, ordenado dobrado enquanto estudasse e mantivesse os critérios de aproveitamento e dedicação ao trabalho.
Seriam, ainda concedidas horas de dispensa aos estudantes que comprovassem necessidades de tempo para preparação de exames, ou trabalhos escolares especiais.
Saltemos no tempo – é nosso privilégio fazê-lo – e acrescentemos que passados trinta anos, nos quadros superiores da Empresa figuravam quatro Engenheiros, dois Advogados, um Contabilista e dois Arquitetos, que tinham sido operários nas obras da Empresa, que entretanto tinham aproveitado as ajudas e facilidades dadas aos trabalhadores estudantes.
Acrescente-se que nenhuma obrigação ligava um trabalhador estudante à Empresa; depois de licenciado, ou concorria, como qualquer outro, às vagas abertas, fazendo carreira na Empresa, ou era livre para ir trabalhar para onde quisesse.
O Ricardo, na sua altura, foi cumprir serviço militar.
Esteve sempre em Lisboa e ligado à Empresa, onde colaborava em todos os tempos livres da Escoa Prática de Administração Militar.
Continuou a receber salário durante todo o tempo de serviço militar e, durante esse período foi dispensado do pagamento do adiantamento que recebera.
Juntamente com três colegas, ajudados pela Empresa e coordenados por um professor da escola primária, o Ricardo criou aulas nocturnas para que os operários, que quisessem, tirassem o exame da quarta classe.
Nada teriam que pagar – desde os livros e cadernos ao diploma, tudo era oferecido pela Empresa – e, com essa habilitação poderiam partir para outras vidas: Contínuos, Polícias, Carris, Telefones, Motoristas, foram, entre muitas outras, algumas das actividades que se abriram aos ex-operários da Construtora.
Muitos, porém, foram reformados nos mais variados postos da hierarquia da Empresa.
Curiosa era a maneira como a gerência chamava a todos os que tinham passado pela Empresa: Os nossos embaixadores!...
Um desses ex-operários, cansou-se de ser jurista e reformou-se aos sessenta anos.
Este dr. Ricardo, voltou para a aldeia que deixara mais de quarenta anos antes, mas nunca esquecera. Solteirão inveterado, viveu os últimos anos numa casa, que restaurou, lá nos altos da Terra, onde veio a falecer, já depois dos oitenta anos.
Recebia muita gente – uns conhecidos e familiares da aldeia, outros nunca vistos por aquelas paragens -. Um vínculo os unia: a Empresa onde, cada um à sua maneira tinha sido feliz.
O doutor Ricardo dizia que acabou por fazer o seu apostolado e – talvez, acrescentava ele – melhor que alguns dos que um dia decidiram, arbitrariamente, que o rapaz não prestava para ministro da Igreja.
Era particular amigo e orientador dos estudantes da Terra, tinha as comodidades possíveis naqueles tempos, numa aldeia beirã, e estimava particularmente os seus livros que acabou por oferecer à escola, para começo de uma biblioteca.
Foi um dos principais impulsionadores e beneméritos da Associação da aldeia e, ao falecer, serenamente, tinha a seu lado uma carta que não chegou a concluir.
Estava ao lado de um grande rolo de escritos que tinha por fora a designação de Caderno Diário – Coisas de Gente Simples.
Era um "conjunto de Provérbios, Profecias, Parábolas, e Ditos que ouvi da Gente Simples minha conterrânea".
O acervo foi entregue ao Presidente da Associação e, anos mais tarde, foi mostrada por um primo, visita do doutor, uma folha de papel, envelhecida que, de memória, passarei a citar:
Parábola das correntes…
- O filho pergunta ao pai: Quem foi S.?
- Meu filho, esse foi um miserável qualquer que, durante muitos anos, andou a pôr correntes aos Portugueses!
- Volta o filho: E quem foi M.S.?
- Esse, meu filho, foi o que gastou o seu tempo a tirar essas correntes aos Portugueses!
- Oh! Pai! E que são correntes?
- Então filho, são aquelas coisas de ouro que o teu avô traz no colete para prender o relógio!...
Nota: Qualquer conotação do S. e do M. S. com ex-governantes do nosso país, pode ser mais que isso; pode ajudar a decifrar a parábola; depende do seu critério, caro leitor!...
Sem comentários:
Enviar um comentário