domingo, 18 de maio de 2014

O conto do vigário


Depois de quatro anos na escola da aldeia, onde a opinião das três Professoras que o ensinaram era unânime – temos aqui uma força da Natureza e uma inteligência muito acima da média -, alguém, da casa senhorial da vila, foi a casa do João Alves e obteve o acordo dos pais para levar o rapaz ao Seminário fazer exames vocacionais com vista a uma possível matrícula naquela instituição religiosa.

O pai do João, não sendo muito de missas nem de padres, era homem temente a Deus, respeitador e honrado. 

Trabalhava, quanto podia, para proporcionar, à mulher e cinco filhos, o sustento e bem-estar possíveis. 

Porém, desde sempre, fora tido como homem ponderado, amigo de saber, competente nos trabalhos que fazia, bom falador e melhor ouvinte, na convivência e no dia-a-dia.

A mãe, Maria dos Anjos, pouco mais tinha que tempo para cuidar da casa, dos filhos e do marido. 

Tinha pais idosos que precisavam também da sua ajuda diária e como morava perto da capela era uma das suas habituais zeladoras.

Nunca lhe passara pela cabeça ter, um dia, um filho padre – isso era para quem tivesse meios, ou influências, que não a sua casa, ou família. 

Mas, não esquecia nas suas conversas com Deus e os santos da sua devoção, de deixar um pedido: que alguém olhasse por algum dos seus filhos e fizesse dele…

No dia em que o capataz da casa senhorial foi lá a casa falar acerca do João, a Maria dos Anjos percebeu que as suas preces tinham sido ouvidas e sentiu uma das maiores alegrias da sua vida. 

Já o Manuel, ficou menos eufórico e, talvez por lhe faltar o suporte da fé, encolheu os ombros e seguiu em frente. Esperemos, mas não acreditemos muito, pois há muito boa gente a empenhar-se noutras crianças. Porque haveriam de escolher o nosso João, dizia ele à mulher?

Na altura própria o processo avançou, o rapaz fez todas as provas e passados quinze dias no Seminário, vieram trazê-lo, dizendo que, se assim concordassem, o João passava a ser um dos protegidos da casa senhorial e no mês de Setembro seguinte entraria no Seminário, para fazer o curso e vir a ser, se Deus assim o quisesse, ordenado padre.

Toda a aldeia rejubilou e não faltaram os parabéns a todos: aos pais, ao João e à casa dos senhores lavradores – nunca tinham puxado por nenhum rapaz da terra -.

As coisas correram bem, lá pelo Seminário, onde esteve cinco anos. 

Porém, a vocação do João, apesar de lutas internas e do apoio do Director Espiritual, não resistiu ao derriço que, platonicamente, se foi desenvolvendo, com a Maria da Chã. 

Depois de completar o quinto ano, com aproveitamento excelente, de nada haver a apontar-lhe quanto ao enquadramento religioso, e da luta evidente que travava consigo próprio, o João informou o Senhor Vice-reitor que não seguiria para o Seminário Maior. 

Acrescentou, apenas, que a sua decisão era irreversível, a sua tristeza só a Deus confessaria e, em todo o resto da sua vida, nunca deixaria de agradecer aos seus patronos, ao Seminário, e a toda a Comunidade que ia deixar.

Na aldeia, isolava-se dias a fio. Evitava contactos com tudo e com todos. Falava, de vez em quando, com a Maria da Chã. Pensou ir fazer exames ao liceu para aproveitar na vida civil os estudos do Seminário. 

Mas, nem parecia ele: não mostrava a mais pequena sombra de felicidade…

Os anos passaram e nada do que seria previsível, quando saiu do Seminário, se realizou: não casou – a Maria da Chã, casada com um primo, emigrou para África e era mãe de três filhos -, nunca foi tratar da correspondência dos estudos nem procurou emprego compatível com as habilitações e ainda que fosse regularmente à missa nunca foi além disso nos assuntos da Igreja. 

Ficou-se, pela casa dos pais, onde acabou sozinho depois dos casamentos dos quatro irmãos. Dedicou-se à vida de marchante e, de terra em terra e de mercado em mercado, comprava e vendia gado. 

Começou, também, a beber mais que o suficiente para perder o tino.

Nos negócios era fino e, mesmo com os abusos da bebida, governava-se bem, economicamente. 

Mas todos lhe reconheciam infelicidade; não era exuberante, não comemorava os bons negócios que fazia e isolava-se sempre que podia.

No meio das feiras e mercados começou a ser conhecido pelo vigário, não tanto pelo sentido depreciativo que, por vezes, se dá à palavra, mas, talvez, por ser ex-seminarista. 

Diga-se, todavia, que não se sentia nada incomodado pela alcunha e chegou mesmo a acrescentar, ao seu nome, essa designação, quando combinava alguma coisa com alguém. Dizia: “palavra de João Alves – o vigário –“.

Um dia, numa feira da cidade mais próxima da aldeia, foi abordado por um estranho que lhe propôs a venda de notas falsas de cem mil réis: Tinha vinte notas que lhe venderia a cinquenta mil réis cada uma. Como era material de primeira era uma questão de tempo e calma e seria negócio para ganhar um conto de réis.

O João Alves olhou as notas que lhe eram mostradas de relance e respondeu: material desse nem um cego engana. Qualquer miúdo da escola faz melhor que isso. Mas, para não ser desmancha prazeres, dou dez mil réis por cada nota, ou seja, duzentos mil réis.

O passador ainda contrapôs, mas acabou por aceitar os duzentos mil réis em troca das vinte notas de cem escudos. 

E de passador nem sinais; foi prégar para outra freguesia, pensou o João que, dali foi para a taberna onde normalmente se juntavam os negociantes. Como habitualmente, bebeu e voltou a beber, até começarem a aparecer os colegas.

Chegaram, entretanto, dois irmãos a quem o João devia um conto de réis. 

Sentaram-se e depois de mais uns copos, perguntaram ao João se pensava pagar-lhes a dívida ainda nesse dia. 

O João garantiu que antes da noite iria juntar o resto que lhe faltava e, depois, esperaria por eles, ali na taberna, e pagaria a dívida. 

O João, foi o primeiro a chegar. 

Pouco depois apareceram os irmãos e os três afastaram-se para um canto, mais escuro, da sala. O João confirmou que tinha o dinheiro e perguntou se podia pagar tudo com notas de cinquenta mil réis, pois tinha andado a recolher vários pagamentos de dinheiro miúdo.

Com a concordância dos colegas o João puxou das vinte notas de cem, que tinha comprado ao falsário e começou a dá-las para a mão de um dos irmãos, contando em voz audível, até vinte. 

Depois apanhou as notas, dobrou-as e entregou-as ao outro amigo. 

Os irmãos olharam um para o outro e pensaram: Já está tão bêbado que nem reparou que nos entregou notas de cem em vez de notas de cinquenta. 

Mais uns copos e, às tantas, diz o João “vigário”: 

Para uma quantia destas e como já estamos todos bêbados, é melhor passarem-me um recibo. Eu também tenho um sócio a quem irei prestar contas. 

Ora escreve aí, Fernando, os termos do documento: Nós F… e F…., negociantes de gado, naturais da cidade de A…., recebemos de João Alves, conhecido pelo “vigário”, um conto de réis, em notas de cinquenta mil réis, como pagamento de uma dívida de gado que, em virtude disso, ficou saldada. Aos T… dias do mês de Março, na taberna do “maneta”, já bem comidos e bebidos, na cidade de A…. Os recebedores: assinaturas dos dois.

Despediram-se, com mais uns copos e apertaram as mãos, com desejos de novos e bons negócios. 

Os dois sócios nem acreditavam como tinham recebido dois contos em vez de um. 

Diz o mais velho: afinal o “vigário” não é tão afinado como dizem; mas talvez se tenha enganado, por estar tão bêbado… Mas vamos à vida. Dez notas para ti e estas dez para mim.

No dia seguinte, um dos irmãos quis fazer um pagamento com notas de cem, recebidas no dia anterior, mas, diz-lhe o dono das rezes: 

Eu não quero essas notas. Isso é dinheiro falso. Arranje-me dinheiro bom, ou não temos negócio e isto para não ir queixar-me de si às autoridades. Isto são falsificações tão grosseiras que até um cego vê, homem. Então agora deu nisto?

Ainda fora de si, foi falar ao irmão e também ele lhe disse que já tinha tido problemas com as notas de cem que, de facto, eram falsificações muito grosseiras. 

E combinaram que o melhor era irem procurar o “vigário” e tentar acertar as coisas antes de se queixarem dele.

O vigário mostrou-se muito admirado e disse: eu sei que estávamos todos bêbados, mas não me lembro de ter pago alguma coisa com notas de cem mil réis. 

Paguei-vos, o que vos devia, com notas de cinquenta mil réis, como estas que tenho aqui. Devem estar enganados; devem ter recebido esse dinheiro doutro lado. 

Mas se tiverem dúvidas podem levar o caso às autoridades que ficarão a saber que eu nunca trabalhei com dinheiro falso e estou a ser caluniado por vocês. Eu também ando bêbado às vezes, mas cuido muito bem dos negócios que faço; mas estou a ver que vocês não fazem o mesmo. Quem não é capaz não bebe. 

E, se não têm mais para me dizer, até à próxima, se houver próxima.

Os irmãos nem queriam acreditar e tentaram lembrar-se de tudo o que se passou: 

O “vigário” foi claro e falou alto, quando perguntou se podia pagar tudo com notas de cinquenta escudos. Contou as notas, uma por uma, para a tua mão e depois de dobradas meteste-as no bolso. 

Depois ditou um recibo, que tu escreveste, e nós assinámos os dois. Será que estas notas vieram dele? 

É claro homem, donde diabo haviam de ter vindo estas vinte notas de cem mil réis? 

Não tivemos outro negócio, assim tão grande, pago a dinheiro, nos últimos dias. Vamos fazer queixa dele e o juiz, lá no tribunal, é que há-de apurar se fomos enganados pelo “vigário”.

Começada a audiência diz o Juiz: 

O réu, João Alves, que não constituiu advogado, é acusado de ter dado, a estes senhores, vinte notas falsas, de cem escudos cada uma. Trata-se de um pagamento que o senhor fez a estes senhores no dia … de …, na cidade de A…., no valor de mil escudos. Confirma que fez esse pagamento?

Levanta-se o João Alves e, calma e serenamente diz: 

Confirmo, senhor doutor Juiz, que efectuei o pagamento de um conto de réis, não com notas de cem escudos, mas com vinte notas de cinquenta escudos cada uma. Por isso, nada devo a estes senhores e quanto às notas falsas que referem, não entendo o que querem dizer. 

Competirá a V. Exa registar a calúnia de que sou vítima e tratar os seus autores como a lei mandar. 

Quanto ao valor que os meus acusadores dizem ter recebido a mais – perante este tribunal dizem ter recebido notas de cem escudos cada uma e no recibo que passaram e assinaram, mencionam expressamente vinte notas. 

Receberam, portanto dois contos para pagamento de uma dívida de mil escudos - competirá a este tribunal definir o destino a dar ao valor indevidamente recebido que eu doo a qualquer Instituição de Benemerência a definir por V. Exa..

Acresce, senhor doutor juiz, que não preciso ser eu a afirmar a Vossa Excelência como tudo se passou. 

São eles que o dizem. 

Tenho o recibo da transação. Foi feito na taberna do “maneta”, escrito por um destes senhores, lido em voz alta na presença de muitos outros negociantes e assinado por ambos os meus acusadores e difamadores. E entregou o papel ao doutor Juiz.

…Perante a evidência do que leu, o juiz disse: então os senhores estão a dizer que receberam vinte notas de cem escudos? 

Pensaram que o pagador estava a enganar-se e não disseram nada, agindo de má fé. 

Passaram um recibo falso, confirmando a má fé, declarando, explicitamente, que tinham recebido notas de cinquenta escudos. 

Afinal, quem é que quis enganar quem? Isto se alguém quis enganar alguém? O que me têm a dizer, sobre isto?

…Nós não queremos enganar ninguém; mas também não queremos ser enganados. Alias não duvidámos nunca, visto que até foi aquele senhor que contou as notas e nós limitámo-nos a aceitar … o conto dele.

… Ah! Ah!...Entendo:

O CONTO DO VIGÁRIO.

Como contava o meu padrinho, estas histórias de gente simples, encerram princípios de moral e mostram que a inteligência não é exclusiva dos cultos; cá no povo aprende-se muito… são os anos de tarimba; versus os de Coimbra; dizia ele.

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