Ao que se sabe, O “Manholas”lavou os pés, no dia em que foi às sortes; até aí, tinha andado várias vezes dentro de água, mas nunca ninguém o viu lavar-se.
A planta dos pés era mais resistente e dura que sola; pelo menos era muito mais durável. A dele já aguentava, sem se gastar, havia mais de vinte anos.
Movimentava-se tanto nos caminhos como fora deles, por montes e vales, sobre pedras ou no meio de tojos e balças.
As unhas nunca foram cortadas; os usos que tinham contra todo o tipo de obstáculos, evitavam o crescimento excessivo e serviam de protecção.
Porém, os pés do “Manholas” não andavam muito encardidos; no Inverno passava dias e dias dentro das regueiras dos caminhos, a chafurdar na lama e a atravessar ribeiros e canadas; no Verão deliciava-se nos regos da água, quando alguém andava a regar, ou nas longas caminhadas que fazia ao longo da ribeira, a apanhar peixes.
No dia das sortes, lá foi com os colegas que, como ele, faziam vinte anos, à inspecção militar e, como sempre, descalço.
Porém ninguém notou, nesse dia, falta de limpeza nos pés do Manuel dos Reis – Manholas –.
Os inspeccionadores perguntaram porque vinha descalço e o “Manholas”respondeu que não tinha sapatos, nem botas.
Acrescentou que nunca usara tais coisas e não pensava habituar-se e, se não houvesse lá na tropa malta descalça, era melhor não o levarem para lá.
Apesar de apoucado de espírito – “poucochinho”, como diz o povo – o “Manholas”não era tolo.
Conhecia todos os recantos, todos os buracos e grutas das redondezas da aldeia.
Apanhava, à mão, todo o tipo de caça, peixes, cobras e lagartos, até se dizia que acamaradava com os lobos, com quem se entendia, perfeitamente. Porém, nunca deve ter visto nenhum!
Quando cruzava com alguém, não deixava de salvar – emitia alguns sons semelhantes a “vá com Deus”; porém andava, habitualmente por fora dos caminhos e gostava muito de ver, sem ser visto.
Nunca incomodou ninguém, tal como não era importunado por quem quer que fosse.
Vivia com a mãe, de idade avançada, num casebre da aldeia.
Um dia, vá-se lá saber porquê, o “Manholas” desapareceu.
Procurou-se, por todo o lado, mas não se encontraram quaisquer sinais dele.
Passados meses, um pedinte que passava pela aldeia – o “Armando do pífaro” –, disse que tinha tido notícias do “Manholas”, lá para cima, perto de Lamego, de terra em terra.
Mais de trinta anos depois, já tinha morrido a mãe do “Manholas”e no lugar do seu casebre tinha sido construída a casa de um mestre-de-obras, que fizera fortuna em Lisboa e comprara o lugar, apareceu, na aldeia, um mendigo, descalço e com barba e cabelos descomunais.
Era um homem, já ancião, que não mostrou pressa e por ali se foi demorando.
Ia até à ribeira e fazia longos passeios, parecendo conhecer aqueles locais; movimentava-se, tão bem de noite, como de dia.
Bebia água nos bons sítios e dormia sestas no fresco dos juncos e carriços dos lameiros da ribeira.
Comia alguma coisa, se lha davam.
Um dia, sentindo-se mal, foi a casa da Ti’Maria Antónia, que tão bem conhecera noutros tempos, pediu uma tesoura e cortou barbas e cabelos. Lavou a cara e fixou a velhota, bem nos olhos.
Ouviu-se, de imediato um grito:
Meu Deus, mas tu és o “Manholas”!...
Quanto caiu em si, a velhota viu o homem estendido no chão, com os olhos esbugalhados.
Estava morto.
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