Comam nêsperas, laranjas e morangos!...
Ah! As laranjas já estão secas, mas ainda são bem boas; as ameixas e os figos lampos são melhores.
Os cachos e as maçãs camoesas é que devem ser poupados, pois são a base do vinho, quando chegar a altura dele!...
Assim falava, meio a gritar, meio em surdina, o Ti’ Zé, lá do chão de cima, debaixo da laranjeira torta, regando a tancada da manhã, nas leiras de feijão de vages, até aos pés da “doce-lima”, no canto da horta da macieira de pero doce.
E, como não obteve resposta, continuou o monólogo:
“Diabos cubram de raios e coriscos os amaldiçoados dos melros que vão vindimando os cachos mais amarelinhos e luzidios das parreiras do cimo das paredes!...
Ainda nem os cães e gatos lhes pegam e já esses demónios não encontram mais nada que comer...
Comam amoras que não faltam nas balças!
E continuava:
Abençoados cata-piolhos e carricitas que por aí voam e, coitados, nem biquito têm para conseguir comer as uvas...
Depois, elevando a voz, quase gritava para os moços que sentados na erva ao fundo da horta iam preparando as costelas para armar aos taralhões:
“Olhem, por cada um desses estupores pretos, de bico amarelo, que nunca se cansam de comer cachos, hei-de dar-vos um prémio...
Essa raça do demo, bem podia ir para outro lado, mas das nossas paredes veem o vale todo e quando levantam voo até têm de poupar as forças, chegando lá abaixo à ribeira quase sem dar às asas.
Nem cantar sabem, os malditos”.
E continuava:
“No último inverno, quando além do rabisco das videiras e das azeitonas quase não tinham que comer, armei umas boízes além nas estevas da ribeira e ainda filei dois belos melros de bico amarelo.
Tinham a moela cheia de bagos de azeitonas.
Mas há aí tantos que o prejuízo é o mesmo, com eles ou sem eles.
Vocês é que podem dar-lhes uma avançada; Se, em cada dia, apanharem três ou quatro, cada um, no fim das férias terão mais de duas dúzias de bicos dessa praga.
O prémio será quatro dúzias de costelas novas, quando for ao mercado e encontrar o Ti’Machado, da Carregueira”.
Entretanto os rapazes viram os primeiros raios de sol no cabeço em frente, por cima da rama dos pinheiros.
Em baixo, pelo vale, uma maresia fechada, tapava toda a paisagem e ainda nem os passaritos tinham começado a bulir.
Mas, antes que o calor do sol desfizesse toda aquela névoa, era preciso ir espalhar as quatro dúzias de costelas, desde o cimo dos Brejos até às hortas da Cabeça Gorda.
Levariam uma boa hora a armar todo o arsenal e regressar ao ponto de partida, onde esperariam a altura de fazer a primeira caçada.
O pequeno brejo estava bem emoldurado de pinhal que em conjunto com o arvoredo das hortas e as árvores de fruto, com seus néctares, atraíam todo o tipo de passarada, incluindo os taralhões – alvo da caçada dos rapazes.
Era uma verdadeira babilónia, aquela luta pela vida: esvoaçavam, chilreavam, saltitavam, debicavam na terra húmida e confluíam para as árvores onde, muitos dos passaritos, fariam o voo final em direcção à agúdia da costela, cujas asas brilhavam ao sol, acabado de chegar.
De facto, num pequeno rapeiro de terra limpa e ainda fresca, tinha sido colocada, e devidamente camuflada, uma costela de arame, com um agudieiro central que prendia um dos braços e se fecharia sobre o outro logo que accionado o suporte da agúdia. Entre os dois braços curvos ficaria preso, e apertado, o pescoço do passarito, que, muitas vezes, nem chegava a engolir a formiga de asas – agúdia -.
Na passagem seguinte, tiraram os passaritos que prendiam, pelo bico, no arame pendurado à cintura.
E, na primeira caçada, nem um único melro figurava entre os vinte pássaros apanhados pelas costelas.
Puseram novas agúdias nas costelas que armaram, outra vez, no mesmo local.
Nos intervalos entre as duas ou três caçadas, iam falando com as pessoas que se espalhavam pelas hortas, nas primeiras horas da manhã.
De vez em quando lá vinha um ralhete porque tinham pisado alguma hortaliça, ou camalhão da rega, ou, muitas vezes, só para meterem conversa connosco, saber como ia a caçada, ou alguma pergunta por alguém que andasse na área da nossa acção.
Uma das pessoas que andava, habitualmente, na horta do Vale das Lousinhas era o Ti´Manel.
Era velho, pouco sociável, raramente se misturava num grupo para beber um copo nas tabernas, nada dizia além da salvação e sempre o vimos como o sacristão da igreja.
Foi casar à Louriceira com a Ti’ Maria Rosa, adoentada e pouco saída de casa. Nunca tiveram filhos. Devia ser o homem que tinha mais colmeias e talvez fosse, também, o que comia mais coelhos bravos.
Tinha sempre um cãozito e quando ao lusco-fusco saía com a saca às costas, para a Ribeira, ou horta do Cabeço Seixo, ninguém duvidava que levasse os ferros para armar.
Seria, pois, natural que não apreciasse muito que a garotada vasculhasse as suas hortas, quer armando as costelas, dando avanço nas romãs e diospiros e aproveitando as canas junto do ribeiro para cortar um pífaro, um canudo para agúdias, ou qualquer outro brinquedo.
Havia poucas canas na terra e embora não usasse as dele, para empar os feijoeiros das vages, o ti’Manel não queria que as cortassem.
Nos Santos era uma das casas por onde a garotada gostava de começar a volta, pedindo os bolinhos.
De uma mão cheia de passas, a uma romã, passando por uma maçã, distinguia-se sempre a Ti’Maria Rosa.
E quando mandava algum garoto fazer-lhe um recado, também dava sempre as passas, o bolinho, ou a romã do costume. Mas uma coisa era certa: poucos se poderiam gabar de ter dado um passo, da porta de casa para dentro.
É verdade que nunca tendo filhos, eram os mais “padrinhos” da terra e também os mais “presenteiros”.
Dizia-se que o Ti’Manel tinha achado muitas coisas na horta do Vale das Lousinhas e que numa espécie de escavação que ninguém percebia com que finalidade fora feita e onde ele cavava de vez em quando, até pepitas de ouro já tinha encontrado.
Também na reparação das paredes da capela teria encontrado uma caixa com um bom punhado de moedas – libras.
O ourives que quando visitava a terra nunca deixava para trás a casa do ti’Manel Rosa, nunca se descoseu com o que lá vendia ou o que lá lhe era mostrado. Quando se fazia vir o assunto à baila, lá na taberna, onde comia qualquer coisa, dizia:
“Como todos sabem não nos compete a nós, ourives, revelar o que se passa com os negócios dos nossos fregueses. Não quero dizer que não tenhamos já sido chamados a revelar esconderijos, a avaliar peças, ou a ajudar as autoridades a esclarecer o fruto de determinados roubos que às vezes nos querem vender.
Como nada disto se passa, nada tenho a dizer.”
Foi assim, sem surpresas, que após a morte do ti’Manel que sobreviveu uma boa dúzia de anos à mulher, foram encontradas muitas peças de ouro e nada menos que uma dúzia de libras de ouro, numa caixa que estava metida num buraco da casa de fora, por trás da pilheira onde estava o relógio.