O Alfredo era o mais novo de sete irmãos, todos rapazes.
Para guardar o gado, ir à missa e outras coisas que não agradavam à rapaziada, o mais pequeno alinhava à frente; para ir a qualquer lado, estrear uma camisita, ou receber fosse o que fosse, lá estava o pequenito no fim da fila.
O “Fredito” tinha os olhos mais claros que os irmãos, a cabeça, anormalmente grande e fazia quase tudo, com a mão esquerda.
Dali vieram as variadíssimas alcunhas que, antes, durante e depois da escola, acabaram por não o incomodar: cabeçudo, olho-de-gato, canhoto, lince, miau, carolas, mancanha – de mão canha, canhota, esquerda –, a que havia de melhor lhe assentar e todos lhe aplicavam.
Guardava o gado com muita habilidade e pedra atirada por aquela mão esquerda, fazia estragos no alvo a que fosse destinada.
As ovelhas e as chibas conheciam as pedradas do “Fredito” e as mordidelas do “farrusco” que respondia, solicitamente, ao assobio e à voz do dono.
Na escola, não foi além da segunda classe; apesar de não se revelar um barra, não lhe foi dado tempo para se mostrar – os mais velhos já trabalhavam fora e o “Fredito” tinha de ajudar na casa, levar o almoço e o jantar, guardar o gado e ir fazer os recados, não sobrando tempo para ir à escola –.
Mais tarde aprenderia um ofício, dizia o pai.
Nos “balhos”e nos descantes, andava de grupo em grupo, sem se integrar, e, por norma, junto dos homens mais velhos.
Nunca aprendeu a “balhar”.
Na taberna, eram-lhe reconhecidas aptidões especiais para o jogo do “burro” e para a “bêlha”; já nos jogos de cartas não passava de bom perdedor.
Tanto o “burro” como a “bêlha” eram jogos de arremesso de vinténs e malhas, respectivamente, pelo que a sua mão esquerda se revelava, assustadoramente, certeira.
Todos queriam ser seus parceiros.
A armar aos pássaros, a descobrir ninhos, a localizar a melhor novidade de fruta e a achar uma estrema, não havia quem lhe passasse a perna.
Conhecia todo o gado do povo e quando voltava com o pequeno rebanho que abria todos os dias, enquartelhava todas as reses sem se enganar.
Nas sortes ficou livre: disse, directa e desabridamente, ao sargento que os pais precisavam dele, que ainda tinha dois irmãos a servir – um em Elvas e outro em Abrantes - e já outros quatro tinham sido soldados.
Ele, que não sabia ler nem escrever, não devia ser preciso, lá na tropa.
Ainda aprendeu o ofício de sapateiro e daí derivou para albardeiro; porém, as suas exigências não eram grandes e ganhando a vida sem se esforçar muito, nunca foi longe na arte.
No ano que foi à ceifa, não passou de moço aguadeiro e não ficou muito entusiasmado para voltar – era trabalho violento de mais, dizia ele.
Estou a ver o Alfredo, que nunca casou, já na casa dos cinquenta, quando eu era garoto, a narrar e representar os quadros da batalha campal, travada à saída de Santa Clara, noite fora, à margem do arraial das festas de Alcaravela:
“O meu Manel, tem a mania que é teso! E é.
O meu João, não se lhe fica atrás.
O Chico e o Pedro, são do melhor, no jogo do pau.
Vai daí, o Manel, com a cabeça grande e a barriga cheia de vinho, prega uma cacheirada no Tonho das Lercas, que foi logo a terra.
Os galhibanos da Presa, sacaram dos paus e foram para o meu Manel, que já fazia costas com os outros três irmãos.
A primeira cacetada do Chico pôs logo o “fanfas” do “artista”, tido como o melhor jogador de pau das redondezas, fora de combate; acertou-lhe uma mocada na tola e além da cabeça, partiu-lhe o cacete pelo que não teve mais que “dar às de vila Diogo”.
Estava gerada a confusão: os meus irmãos iam-se defendendo e distribuindo bordoada, por tudo o que aparecia a talhe de foice, e encaixando, também, as pauladas dos das Lercas, que já andavam juntos com os da Presa.
Bem, só se perderam as que caíram no chão – o meu Manel andou com um braço ao peito, o Chico com um lanho na cabeça um ror de meses, o Pedro a cambar de um joelho e o meu João ficou, para sempre, com uma orelha rachada.”
Então e tu, Alfredo?...
“Eu, sempre fui homem pacífico...
Estive de reserva e olhe que não fui preciso. Os meus quatro irmãos, chegaram para os vinte e tal que se lhes opuseram e daí que assim tive mais tempo para ver bem as coisas e ficar inteirinho, para contar as histórias e apaziguar a malta.
A verdade é que acabámos todos, na taberna do Cigalho, a beber mais uns copos…
É que até nem somos inimigos uns dos outros.
Aquilo também é preciso para a malta treinar e mostrar o que vale.
As cachopas gostam de ver.
Mas, a sorte dos gajos foi que tudo acabou antes de chegar o meu Luís e o “Agusto”, que ouviram tarde de mais os assobios do Manel.
Se não, aquilo, ainda acabava mal.
Assim, olhe: mais cacetada, menos cacetada, só se perderam as que caíram no chão!...”
E eu que o diga!...
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