Atarracado, de compleição física bastante débil, o António era, desde pequenito, extremamente atencioso e gostava de ouvir quem falasse bem, isto é, quem dissesse muitas coisas, sem se enganar.
Por certo, nem perceberia o que diziam; seguro é que gostava de ouvir qualquer orador, leigo ou religioso, político ou não, sabedor ou ignorante.
Várias vezes se infiltrava na sala de audiências, do tribunal, para ouvir os advogados e os juízes.
Nas feiras tinha uma predilecção especial pelos propagandistas e leiloeiros, nas festas não perdia um sermão e não faltava a uma pregação religiosa.
Fez o exame da quarta classe e sabia de cor a maior parte das histórias do Livro de Leituras.
Nas redacções nunca esgotava o assunto e livrito que lhe chegasse às mãos, era devorado em pouco tempo.
A única dúvida era acerca do entendimento que teria sobre o que ouvia e lia, dado que não se exprimia com grande facilidade.
Participou desde muito novo em todas as tarefas próprias da sua idade e do seu meio rural.
Chegada a altura namorou e casou-se; era um normal chefe de família e zelador das leiras em que angariava o sustento para si e para os seus.
Mas porquê a alcunha de “Tó Lixado”, que, diga-se, nada o incomodava?
Numa das pregações da Semana Santa foi anunciado um pregador de grande fama e nomeada.
Diziam uns que fazia chorar as pedras, outros que só à conta dele já tinham seguido as vocações para cima de vinte padres e religiosas.
O Tó não mostrava tanto alvoroço há muito tempo; para mais que a pregação seria na igreja de S. Sebastião e ele era muito devoto do “mártir S. Sebastião”.
Todos ouviam, em silêncio, a dramatização, efectivamente pintada com as cores negras da flagelação do mártir e o pregador descrevia, cuidadosamente, cada seta que lhe fora arremessada.
No meio do adro, amarrado a um tronco, o mártir levantou os olhos ao céu, quando um dos soldados disparou a primeira seta que lhe acertou nas costelas, disse o pregador.
Respondeu o Tó, que já se acercara do púlpito, num tom perfeitamente audível por todos os circunstantes e pelo próprio orador:
Ai!..., meu rico S. Sebastião!...
Depois, o pregador continuou:
Um segundo facínora atirou outra seta e acertou-lhe no ventre. O santo apenas gemeu!...
O Tó, aumentando o tom, exclamou:
Ai!..., meu pobre S. Sebastião, deve ter doído tanto!...
O pregador continuou a descrever as setas seguintes, cada vez mais terríveis e perigosas, e também o Tó ia dramatizando os lamentos e apelos de coragem para que a martírio fosse menos pesado ao santo e dizendo-lhe palavras de incentivo para que tudo suportasse.
Nessa altura a assistência já olhava ora na direcção do pregador, ora na do Tó, para seguir por um lado a descrição do martírio e pelo outro a coragem com que o Tó animava o santo para suportar todas as sevícias.
A voz do padre era, como convinha, num tom suave e apiedado; a do Tó ia subindo de tom à medida de cada seta e de cada cena.
À sétima seta, com a assistência em transe, o pregador suspendeu-se e disse:
Não satisfeito com o sofrimento do santo, o chefe dos guardas, pegou no arco de um deles e disparou uma seta que foi direita ao coração do mártir S. Sebastião, que apenas levantou os olhos…
Nessa altura, num tom de voz clara e sem qualquer sentimento, o Tó exclamou, de rompante, mas pausadamente:
Foi … essa…!
Essa … é … c’o… “lixou”!...
Alguém começou a chamar-lhe “Tó Lixado”.
Assim ficou, para o resto dos seus dias.