No beco, por trás de uma arcada, abria portas, todos os dias, a tasca do Ti’Jaquim das Iscas, que, nos anos sessenta do século passado, chegou a ser um dos locais de passagem obrigatória, na cidade de Faro.
Ali se juntavam os jornalistas, vendedores, delegados de propaganda médica e outros viajantes, atrás duma cataplana de amêijoas, duma caldeirada, ou dos petiscos de ocasião de que o “chefe Fernando” era artífice experimentado e reconhecido.
Depois do jantar que quase sempre descaía em ceia, passava-se no armazém do Ti’Manel dos Arcos que ocupava os baixos de duas ou três casas, no bairro antigo de Faro, a poucos metros da tasca do Ti’Jaquim das Iscas.
Faziam-se as compras de amêndoas, figos secos, mel e medronheira – simples, da serra do Caldeirão, ou com mel, de um qualquer armazenista de Loulé –.
O Ti’Manel propagandeava a mercadoria e ia servindo rodadas, aos circunstantes e, sempre que reconhecia alguma cara nova no grupo, procedia ao ritual da iniciação do neófito.
Se o novato respondia, a contento do Ti’Manel, a despesa era por conta da casa; se não passava no exame, preparava vinte ou trinta escudos e recebia a alforria e, consequentemente, estava admitido como confrade.
As perguntas iniciáticas eram sempre as mesmas:
Qual é a toalha do mel?
O que quer dizer uma pistola sobre um saco de cimento?
O que é que pode ser mais burro que um burro?
As respostas, muitos simples: A água; cimento armado e, mais burro que um burro, só outro burro, não importa de que espécie.
O Ti’Manel fazia sempre a festa; ou por ter encontrado alguém com finos dotes, ou por conseguir ensinar alguma coisa.
E, talvez, porque encaixava mais uns escudos, ainda que, algumas vezes, os iniciados já fossem prevenidos e passassem no teste.
Para aquele "montanheiro", que conhecia a serra tão bem como as suas mãos, nunca se acabavam as histórias.
É claro que todas elas envolviam o macho “judas”, o cão “farrusco” e o dono dos dois, que, em caso de aperto, faziam o que tinham a fazer.
Somos um grupo de comandos, onde ninguém falha e, até hoje, há-de aparecer o primeiro que nos venha pôr cuspinho no nariz.
Depois, como protagonista:
Olhem, meus amigos, mentiroso sou eu, mas na hora de falar verdade também sei fazê-lo!
Então vamos a ver se consigo contar o caso que se passou ali perto de Salir, quase às vistas de Loulé.
Tinha comprado umas arrobas de amêndoa, dois cantaritos de mel e uma meia alcofa de figos secos a um parente de Alte.
O judas vinha ajoujado debaixo dos alforges e o farrusco toscava, na frente, a limpeza do caminho.
Por trás duma curva, sai-me um marafado da sombra duma alfarrobeira e, logo adiante estavam mais dois, sentados na beira do caminho, com ar de poucos amigos.
O da alfarrobeira, com falas mansas, disse-me:
Olá, tiozinho!... Então o que leva aí para nós?...
A vida tem corrido mal e temos precisão de qualquer coisa!...
E, por azar dele, foi-se chegando ao alcance do farrusco, mostrando a faca com que cortava um bocadito de pau, enquanto um outro, de boina, se aproximava da traseira do macho.
O meu assobio de comando, na altura própria e já o “farrusco” filava o braço do chefe, deitando-o a terra.
Um coice do “judas” e o segundo ficava com um joelho desmanchado.
Quanto ao terceiro, pernas para que te quero e sumiu-se pelo mato dentro, seguido pelo chefe que conseguiu soltar-se do farrusco, deixando-lhe, nos dentes, um bocado da manga do gibão.
O do joelho avariado lá ficou a gemer e nós os três, seguimos caminho.
É que cá no nosso grupo, cada um tem as suas manias:
O farrusco fica como louco logo que vê facas e onde põe a boca é seu.
O judas acha que a menos de um metro da sua traseira só se chega o dono e coice que acerte é para partir.
Se o inimigo vier de frente, cada dentada sua traz bocado.
Eu, coordeno as operações, com a fosca no bolso e, com um pau, faço bem a minha parte.
Ainda está para nascer o malandro que nos faça frente, mesmo que, traiçoeiramente, venha à falsa fé.
Aliás, o merecimento dos nossos valores tem fama por toda a Serra e tem-nos aberto muitos caminhos por todo esse Caldeirão.