quinta-feira, 15 de março de 2012

A mina do Souto



Garantiam as vozes mais acreditadas que na mina do Souto, para lá das hortas do Passeiro, a dois passos da cerejeira grande, não longe do caminho que da Serra se dirige até à Lameira, estava sentado um homem que, imóvel, fumava uma cigarrada, todas as tardes, antes do pôr-do-sol.

Homem de idade avançada, com a cabeleira farta e branca, os olhos encovados e o olhar fixo na boca da mina, permanecia imóvel, se bem que abrisse e fechasse os olhos, de vez em quando. 

A conversa que corria, em surdina, de boca em boca, chegou aos ouvidos do padre João, que, calmamente, se manteve tranquilo, esperando que mais vozes lhe trouxessem a notícia. 

Quando lhe pareceu adequado falou e, com toda a serenidade do mundo, explicou os factos, como eles eram, aproveitando, pedagogicamente, o falatório que corria. Disse: 

Começo por lhes dizer que, acompanhado por vários de entre vós, estive a observar a mina do Souto e a única coisa que adiantei, como aliás já esperava, foi beber uma boa barrigada de água e beneficiar da paz e sossego que, felizmente, reinam no local. 

Todavia, deste lugar sagrado, quero tecer alguns comentários, pois está em causa a dignidade e respeito que devemos aos nossos mortos e, em caso algum, podemos tecer acusações e cair em falso testemunho. Que descansem em paz, as suas almas!... 

O Ti’Chico da Ladeira, que ainda conheci e, reconheço, não terá sido um exemplo de virtudes, fez das suas, como toda a gente sabe e alguns sofreram na pele. 

Ao longo da estrada da Lameira ele e o seu bando não ajudaram ninguém e prejudicaram muita gente, sem, todavia, atentar contra vidas ou molestar fisicamente as suas vítimas. 

Além de pequenos furtos e acções de amedrontamento, nunca exerceram violência gratuita sobre nenhum dos presentes, ao que julgo saber. 

Deus é Pai e, como tal, profundamente tolerante. Nós, mortais, muitas vezes levianamente, acusamos esta ou aquela alma de sofrer o castigo de Deus e não contentes com o juízo, ditamos a sentença: penar na terra e expiar as faltas cometidas até poder entrar no reino dos céus. 

Até, neste caso, condenamos a alma encarnada do pobre Chico a estar ali dentro de uma mina. 

É bem simples o que se observa na mina e absolutamente naturais todas as reacções de cada um dos que afirmam ter visto isto, ou aquilo. 

Ao fim da tarde, entra mais luz do sol pela boca da mina. 

Esta luz, reflectida pela água, como se de um espelho se tratasse, dirige-se para dentro da mina. 

A poucos metros de entrada, há várias raízes que na busca de água pendem do tecto e dos lados da mina. 

Essas raízes tomam feitios caprichosos e projectam sombras, parecendo verdadeiras formas de figuras humanas. 

Por algumas dessas dessas raízes escorrem fios de água, que ao cabo de muitos anos formam corpos sólidos, esbranquiçados ou avermelhados, permanentemente húmidos. 

Quando um raio de sol, reflectido pela água da represa, acerta numa dessas estalactites ou estalagmites – estes são os nomes dessas formas calcárias que se formam –, parecem olhos a brilhar que, de repente, ou porque a água se moveu, ou porque o raio de sol foi interrompido, se apagam. 

Nada mais que isto se passa na mina; podem beber descansados e aproveitem para ver com muita atenção tudo o que acabo de lhes descrever. 

Mesmo quem não estudou estes efeitos dos fenómenos da Natureza pode compreendê-los se usar a inteligência e sobretudo souber dar atenção ao que tem diante dos olhos. 

Vamos rezar para que as almas necessitadas, e não apenas a do Ti’Chico, alcancem a graça de Deus e descansem em paz.