quarta-feira, 7 de março de 2012

O homem das flores

                                                                                    Carregueira - vista da portela nascente

No fim das várzeas, por cima da ponte do Coadouro, o vale aperta e estreita-se até às imediações da Carregueira, onde se espraia um pouco, como que a tomar fôlego para continuar viagem. 

Os montes, a nascente, abrandam a inclinação, os cimos afastam-se e vão quase para a Ventosa e a povoação, à partida condenada a encurralar-se ali num esconso a cair para a ribeira, alarga-se, espraia-se e estende-se, encosta acima até aos altos da meia encosta. 

Do norte vem a ribeira da Aboboreira, assim chamada embora nem chegue a lobrigar o povo que lhe dá nome, e é ao encontro da pequena corrente de água, razoável no Inverno, que se estendem as melhores hortas da Carregueira, ainda que os pinheiros dum e outro lado vão quase beber nas poças e pegos que no verão se reduzem a areais e tufos de juncos. 

Pelo poente, a encosta da Ventaneira, barreira natural, protectora dos ventos do norte, limita e reduz muito as áreas cultivadas, sobretudo nas imediações do povoado, onde toda a gente deseja ter o seu bocadinho para mimos. 

Mas a aldeia da Carregueira, viradinha a sul, com a ribeira aos pés, bem protegida de ventos, é por certo um dos lugares mais aprazíveis do nosso concelho de Mação. 

Não tem grandes horizontes mas arrumada no seu cantinho, disposta em cascata, qual presépio, convida ao sossego, paz e tranquilidade dos idílios que cada vez hão-de rarear mais. 

A abertura da estrada para o Vale da Figueira, se bem que facilite as ligações a norte, terá devassado, de alguma forma, uma das aldeias mais próximas da sede do concelho e simultaneamente mais recatada do bulício. Como que fazendo lembrar um fim de linha, onde se vai quando é preciso, pois, caso contrário, é ir e voltar, acabando por parecer longe de tudo, e de mais. 

Porém, uma dúvida nos assalta; é que não se percebe bem porque nunca rasgaram aqueles escassos dois quilómetros que separam a povoação da ponte do Coadouro, na estrada nacional de Mação a Abrantes. 

Não se entenda, todavia esta pergunta como sinal de inquietação, pois nem sequer vemos grande interesse nessa ligação. E, com ligação, ou sem ela, sempre diremos por palavras directas o que temos estado a sugerir: consideramos a Carregueira uma das terras mais simpáticas do nosso concelho. 

Conta-se que, em tempos muito recuados, viveu lá na aldeia um pobre homem que ali chegou um dia, vindo não se sabe de onde, nem quando, nem porquê. 

Foi andando, saindo pelas aldeias das redondezas, esmolando, fazendo uns biscates de caldeireiro, ajudando nos trabalhos comunitários – malhas, ceifas, apanha da azeitona, descamisadas, e sendo sempre dos primeiros a aparecer em casos de aflição, ou grande necessidade de ajuda. 

Dizendo chamar-se Silvestre e ser natural dos lados da Isna de Oleiros, acabou perfilhado e adoptado por todo o povo da Carregueira, a ponto de aos estranhos passar por um dos da terra. 

Começou num palheiro à saída para o Vale e acabou num casebre humilde mas limpinho e arrumado, ao fundo do povo, não longe da ribeira e junto dum terreiro onde vinha desaguar um riacho que descia dos altos da Ventosa. 

Cercada por um canteirito conquistado mais ao ribeiro que ao lado contrário, tinha, paredes meias, uma levada de água que ia tocar uma azenha situada um pouco mais abaixo. 

Dizia-se que nunca ninguém tinha visto aquele canteiro sem flores; mesmo num temporal que arrastou quase toda a casa na corrente, ficou intacta a leirita das flores. 

Atribuía-se o milagre a uma imagem de uma Senhora que nunca abandonou o Silvestre, desde que, ainda zagaleto, a encontrou numa gruta da Isna e agora a tinha num altarzinho, junto da parede da casa que ficava do lado das flores. 

Seriam poucos os que teriam tido ensejo de ver a imagem. De aspecto tosco, com a maior parte da tinta já desaparecida, a começar a denotar sinais de caruncho, era a imagem de uma santinha, da devoção do Silvestre e que já em muitos apuros o salvara de grandes aflições e também já acedera a pedidos do seu devoto guardião, em favor de terceiros. 

O último que vira a relíquia foi um pastor que um dia ajudou o Silvestre a sair da ribeira, onde estava perto de morrer afogado e, como ele estivesse sem dar acordo de si, foi levá-lo a casa e teve uma visão de um número quando encarou com a imagem. 

No mercado seguinte foi a Mação e comprou duas cautelas de lotaria, oferecendo uma para comprar um altar para a santa e guardando outra para si. E, na vez seguinte que foi à vila rebateu a cautela, recebendo os quinhentos mil réis do prémio. 

Fez uma casa nova, comprou gado, hortas e courelas e ainda lhe sobrou muito dinheiro. 

Porém, ao perguntar ao Silvestre pela cautela, ficou estupefacto quando este lhe disse que a cautela se tinha incendiado quando soprou uma rajada de vento e a cautela estava debaixo da imagem da Senhora. 

O pastor quis repartir o prémio com o Silvestre para que este fizesse uma capela decente para venerarem a imagem da santa, mas o Silvestre recusou, pois a cautela ardeu depois de ter sonhado que andava a fazer uma igreja com um prémio que tinha ganho. E, humildemente agradeceu, dizendo, em tom de oração à imagem da sua devoção: 

Se a minha Senhora quiser que eu faça a igreja para ela há-de dar-me o número da lotaria, em sonhos. Como quando eu teria o dinheiro me queimou a cautela é porque é feliz, comigo, aqui no nosso cantinho e não quer luxos ou devassas de muita gente. 

Agradeço-lhe que continue a ajudar-me e guarde o seu dinheiro, pois a Senhora quis dá-lo a si e achou que eu não precisava dele, como, de facto, não preciso. 

Ela tem três casas e em todas elas se sente bem; aqui está todos os dias, às outras duas, de que só eu sei o local, vai quando me avisa que devo levá-la lá, no dia seguinte e assim há-de ser até ao resto dos meus dias em que não haverá um só que não lhe ofereça flores, do Seu jardim. 

Havia dias que, ao lusco-fusco, o Silvestre saía, com uma saqueta às costas, levada da azenha abaixo. Uns cinquenta metros depois da casota do moleiro, tomava a meia encosta e ao chegar junto de uma boiça de silvas, tojos, estevas e trepadeiras, entrava na boca de uma velha mina e por lá ficava, até perto do romper da manhã. 

Saía, com a sacola às costas, percorria todo o caminho da véspera, em sentido contrário, entrava em casa, fechava a porta e só saía de novo já depois do meio-dia. 

Muitos se tinham aventurado a seguir o Silvestre mas alguns já se tinham dado mal: uns tinham visto o que não queriam, outros tinham escorregado e caído, sem causa que o justificasse. Todos tinham medo e começavam a sentir desconforto e sensações estranhas quando espiavam. 

O Silvestre repetia o ritual para aquela mina e para outra, bastante mais longe, no meio da encosta, já mais perto do Monte João Dias que da Carregueira. 

O ritual era semelhante. Não tinha dias certos para fazer as saídas e havia até ocasiões em que visitava os dois locais numa mesma noite. 

Numa coisa todos os mirones estavam de acordo: quando se davam ao trabalho de espiar o Silvestre havia sempre sinais e avisos de que não estavam a fazer qualquer coisa bem; e os segundos avisos eram, de tal maneira que todos ficavam sem vontade de repetir uma terceira vez. 

Todos ficaram com a sensação de que o Silvestre sabia que estavam a segui-lo, mas o ritual não se alterava um milímetro. 

Era essa calma que irritava as pessoas que começaram a criar à volta do homem das flores, da imagem que se sabia ter em casa, mas muito poucos tinham tido privilégio de ver e da espécie de cobertura de que gozava nas deslocações nocturnas, lendas e histórias que eram comentadas à boca pequena e quando chegavam ao Silvestre eram recebidas com indiferença e sem comentários. 

Quando uma ocasião, talvez com um copo a mais foi interpelado, na taberna, ouviu, sorriu-se e respondeu: faço o que tenho que fazer e me mandam fazer; não faço mal a ninguém, não me meto na vida de ninguém. De que me censuram então? Haja o primeiro que prove que faço mal a alguém e, se for essa a vontade de quem me manda, provavelmente irei para outro lado, onde possa ter flores e fazer a minha devoção. 

Mas que raio são lá essas ordens que dizes ter de cumprir? E quem tas dá? Ora, ora, há tantas coisas que decidimos depois de pensar com os nossos botões e quando acabamos por acordar. Sei o que tenho que fazer e para mim isso é o suficiente. Se incomodar alguém, avisem-me, por favor. Até lá deixem-me viver a minha vida, como eu deixo os outros viver a deles, em paz. 

Mas o velho moleiro, também pensava com os seus botões e não era cagarola como muitos dos que já tinham ido atrás do Silvestre e se "sujaram" todos, com medo. 

Pensava que se ele estava tão afoito era porque estava convencido que ninguém teria coragem de ir todos os dias dentro da mina velha e esconder-se lá até o Silvestre chegar, para ver o que se passava a seguir. Mas não devia haver lá nada que comesse um homem! 

Então, depois de muitas noites a pensar naquilo, preparou-se e numa semana, a meio da tarde, foi todos os dias para a mina, escondeu-se num dos ramais que lhe pareceu menos, ou mesmo nada frequentado, e aguardou até uma ou duas horas depois de sol-posto. Ao cabo de sete dias, nada! 

Não desistiu e ao terceiro dia, mal tinha tomado lugar no esconderijo, chegou uma figura, com um pano preto sobre a cabeça e roupa também escura. 

Entrou, virou no segundo ramal à direita, deu mais alguns passos e acendeu uma luz cuja claridade chegava perto do local onde estava o moleiro. Depois, durante uma boa meia hora fez-se silêncio total. 

Até que chegou o Silvestre, com a sacola às costas e se dirigiu para o mesmo local, deixando de dar passos momentos depois. 

O silêncio continuava total, até que o moleiro ouviu claramente a voz do Silvestre, dizendo: está alguém a fazer-nos companhia, dentro da mina. Sinto os avisos da minha Senhora. Vi entrar o moleiro e vim para ajudá-lo; ao pé da casa do engenho anda tudo a arder e lá dentro era uma barulheira que ninguém nunca viu nada igual. Dizem por lá que se deve ter acabado o grão na tremonha e as pedras devem andar a roçar umas nas outras o que deve ter provocado faíscas e incendiado tudo em volta. Estão à espera que ele chegue para ver se põe termo naquilo. 

O moleiro ao ouvir aquilo, escapuliu-se para a porta da mina, mas tinha sido espalhado barro e atravessados garavetos e outros gastalhos que o levaram a cair a todo o comprimento na lama, ficando completamente encharcado e sujo. 

Lá se desenvencilhou e foi a correr para a azenha onde estava à espera apenas uma freguesa para trazer um taleigo e levar a farinha; de resto tudo era calma e serenidade na azenha e nas redondezas. 

Ao ver o moleiro naquela figura a freguesa perguntou se estava bem, se precisava de alguma coisa e que lhe tinha acontecido. 

O moleiro, ficou enrascado e até parecia que tinha acordado dum sonho mau. 

Lavou-se, mudou de roupa, e prometeu a si próprio que nunca mais se meteria na vida dos outros. Inclusivamente acabou por se arrepender de espreitar o Silvestre que, coitado, não fazia mal a uma mosca e já o tinha ajudado em grandes enrascadas no caminho da azenha. 

Esteve a imaginar o que responderia se o Silvestre lhe perguntasse alguma coisa e, por fim, adormeceu. 

Na mina o Silvestre e a Maria do Vale fizeram o que sempre faziam, na maior das calmas e com a bênção da Senhora, sem se preocuparem com mais aquele mirone que, certamente, devia ter ficado bem vacinado e tão cedo não voltaria a meter o bedelho onde não fosse chamado.