O Calvário foi, desde sempre, lugar de encontro e meditação da rapaziada da Terra, sobretudo os estudantes.
Tem-se uma vista imponente, daquele pequeno morro, hoje já completamente dentro da povoação, com o Outeiro de Cima à ilharga, pelo norte e o Bairro dos Franceses aos pés, sobre o meio-dia.
Um conjunto de três cruzes, uma das quais amputada, coroa um pequeno terraço, ligeiramente ondulado, resultante da junção do topo de dois blocos graníticos, desgastados pelo uso, pois, em tempos de maior aperto, nas eiras que distavam dali poucos metros, o local chegou a ser aproveitado para malhar o pão, de pequenas safras.
Ao lado das cruzes, uns barrocos de uns quatro metros, eram frequentados pelos mais pequenos que se divertiam a subir até ao topo, comemorando a vitória numa batalha em que tinham conseguido mais uma brava conquista.
Pulavam, tiravam fotografias e guardavam uma prova de que, num dia célebre, escalaram o barroco do Calvário, um dos ex-líbris do Rochoso - assim se chama aquela bela aldeia da Beira Alta.
Dali, para nascente, via-se a estrada que atravessava a Rasinha. Uma recta entre os cercados das terras de pão e batatas e os baldios de giestas e mato.
Ao fundo, para lá da curva, em direcção ao norte, perdia-se num pequeno souto de castanheiros, que depois se estendia pelo Abrunhal, até às abas dos pinheiros da folha da Senhora do Monte.
E, saindo da estrada de macadame, um emaranhado de rodeiras, onde chiavam os carros de bois, dispersava-se entre o morro e a ribeira de Noemi que iria passar pela Cerdeira, ao encontro do Côa, lá para os lados de Porto de Ovelha.
Os horizontes daquele lado, eram largos; iam até Espanha e divisava-se uma grande parte da linha da raia, para sul de Vilar Formoso, sendo ainda possível distinguir, em dias de céu mais claro, as primeiras elevações de Castela-a-Velha, já no termo de Salamanca, de que sobressaíam as serras Morena e a das Gatas, que o Zé Lines dizia conhecer, como a palma das suas mãos.
Junto da ribeira, pela nosso lado, portanto pela margem esquerda, corriam os "tramas" na linha da Beira Alta, circulando de Guarda para Vilar Formoso e dali para todos os destinos da Europa.
Era por lá que iam e vinham muitos dos emigrantes da França e Alemanha.
No apeadeiro do Rochoso paravam apenas os comboios regionais, que faziam vida entre a Guarda e a fronteira. Quem vinha ou ia para mais longe tinha de mudar, ou na Guarda, ou em Vilar Formoso, se não quisesse descer na Cerdeira, onde até o “Sud” parava.
Pelo norte, ainda se subia até às eiras e, à guisa de muralha, o cerro dos barrocos protegia a povoação dos ventos do frio e diminuía o horizonte que começava lá longe, a meio dos altos das terras de Pinhel e terminava, já a perder de vista, nas elevações do lado de lá do Douro, a que costumavam chamar Trás dos Montes, como diziam os meus habituais guias locais.
O Zé Lines confidenciava-me: gosto de olhar para longe, quando ando lá nas Fontainhas; ainda gostava de ir lá atrás dos montes.
Pelo sul e poente, o olhar estendia-se até às terras do Sabugal que iam acabar nas alturas da serra da Estrela, onde não se acabavam as névoas, frios e chuvas, na maior parte do ano e, sobre a manhã e aos fins de tarde se viam, do Calvário, os reflexos do sol nas neves eternas dos cumes da serra.
Era lá que todas as noites o sol se ia recolher, para voltar na manhã seguinte já no lado oposto, sobre a capelinha da Senhora do Monte, com mais algum calor mandado de Espanha.
Saindo do centro do povo, pelo lado do largo oposto à igreja, cruzam-se os barroquinhos e no Outeiro de Cima, sobre a direita, antes de chegar ao largo da Amoreira, chega-se, a escassos cem metros, à escola, para logo depois do que, pomposamente, se chamava campo de futebol, se chegar ao Calvário.
Pelo meio, construiu-se, recentemente, a capela de S. Sebastião.
Neste cenário, depois da ceia, estávamos no centro de uma galáxia em que as luzes dos povoados que dali se avistavam, pareciam estrelas espalhadas, desordenadamente, no firmamento.
Muitas vezes, estive ali sentado, chupando um cigarro – quando ainda não tinha vencido o vício de fumar -, com alguns homens da terra, que iam até ali, depois de terem bebido umas minis, ou uns meios quartilhos, no Ti’Zé Maria, ou no Ferreira.
Lembro, o incontornável Zé Lines, ainda na força dos anos, mas já diminuído por uma ou duas passagens pelo Sanatório da Guarda, o Albertino, filho do Ti’Zé Maria, que respondia pela alcunha de “Roque”, o Chico “Preizal”, que veio para ali cabreiro e acabou, pendurado numa trave da adega, deixando um bom rebanho de gado e bastante dinheiro no banco, depois de quase duas dezenas de anos em França, o “Bote Giestas”, um ou dois Ruas, o Vicente e outros do clã dos caldeireiros, com o seu realejo e uma velha concertina, que toda a noite sanfonava, rua abaixo, rua acima e, segundo dizia, era sócio de uma das melhores empresas de recuperação de imóveis da cidade de Paris.
Na sua expressão era um dos “rois de bâtiment”, e tinha sociedade com uns colegas de Famalicão, especializada em compor “trottoirs”.
Era o mais ouvido, talvez por ser o que, ao tempo, mais alardeava o dinheiro que crescia a olhos vistos nos bancos da Guarda. Ali se iam bebendo umas minis e se relatavam os episódios mais mirabolantes que me foi dado ouvir.
Muitas dessas histórias eram contadas e reportadas a locais que os que nunca tínhamos vivido e convivido lá por Champigny, dificilmente enquadrávamos e acabávamos por esquecer.
Eu e o Zé Lines éramos os que nunca tínhamos sido emigrantes em França e um ou dois, dos outros, estavam, ou tinham estado, na Alemanha e no Luxemburgo.
Porém, a grande maioria eram franceses e da região da grande cidade de Paris.
Quando o grupo ficava mais pequeno, às vezes já passava de meia-noite, vinham as histórias da terra e do contrabando e aí, o Zé Lines, ainda era dos melhores.
Entrava com as suas aventuras a caminho de Nave de Haver, onde havia um Guarda Fiscal, filhote ali duma povoação vizinha do Rochoso, de nome Albardo, e que respondia pela alcunha de “Borrado”.
Definia-o como: "pouco tendo ficado a dever à inteligência e não aproveitando o que podia ter aprendido na escola".
Tinha um corpanzil alambazado e mão pesada para os que lhe passavam pela porta, quando estava de serviço no posto; era o maior cagarola, pois, no escuro e na solidão da noite, ficava verdadeiramente tolhido de medo de tudo o que mexesse e fizesse barulho.
Em garoto, numa altura em que esteve fechado o posto escolar de Albardo, andou aqui no Rochoso e metia-se connosco, por aí, aos ninhos, ou nas brincadeiras de explorações de que eu e o Tó Remédios, que já lá está, coitado – Pai, Filho, Espírito Santo! -, gostávamos imenso.
Tínhamos uma partida em que o “Borrado” caía sempre: empurrávamo-lo para cima de um carvalho, dizendo que estava lá um ninho e, como não era capaz de descer sozinho, gozávamos o pratinho, normalmente a uma certa distância da árvore, por causa dos cheiros.
O “Roque”, que raramente falava, atirou: Oh! Zé, então e aquela vez em que fomos explorar a mina do Abrunhal! Lembras-te?
E logo arrancava o Zé Lines, carregando bem nas cores, pois tudo o que fosse para descascar no “Borrado” dava-lhe um gozo especial.
Então lá vai, mas olhe senhor professor que às vezes exagero um pouco quando falo daquele desavergonhado que se não usasse farda até eu o comia, mas com o senhor aqui, não sairá da minha boca nem uma só palavra fora dos termos da pura verdade. E continuava:
Um belo dia, o senhor professor precisou de ir à Guarda, no trama das onze e deixou-nos na sala, entregues aos mais velhos e com a atenção da senhora professora das meninas.
Pouco tempo depois, já todos andávamos no lameiro do Enchido a jogar a bola: só o “Borrado”, que não tinha jeito nenhum, não foi aceite por nenhuma das equipas e ficou ali sentado a ver.
Ainda se levantou para ser árbitro, mas todos torceram o nariz e lá voltou a sentar-se no cercado do lameiro, do lado do ribeiro, debaixo dos carvalhos.
O calor apertava e já fartos e cansados, decidimos ir até ao Abrunhal, fazer três coisas: e o chefe do grupo “menino Toninho”, depois do juramento de todos, explicou que primeiro iriam às castanhas, comer até querer e encher os bolsos, a seguir os de fora da terra dariam a merenda para todos comerem, antes de entrar na mina, pois podiam demorar mais tempo que esperavam e, por fim, iriam explorar a mina, que toda a gente comentava, mas poucos, ou ninguém conhecia.
Estejam descansados que quando lá chegarmos mostrarei os planos de exploração e, fica desde já combinado que se acharmos algum tesouro ele será propriedade do grupo, mas quem mandará nele será o chefe.
Vamos para lá e quanto mais perto estivermos, menos barulho.
A mina começava no fundo de um desaterro a céu aberto e a entrada cheia de silvas, giestas e carvalhos, estava enxuta e sem sinais de uso; não eram visíveis caminhos para dentro da mina, mas os caçadores e os pastores diziam que já tinham visto fugir para lá todo o tipo de animais: gatos bravos, porcos de espinhos, raposas, lobos e outras coisas esquisitas.
Sentaram-se, debaixo de uns carvalhos, para fazer três grupos de três pessoas, para combinar um assobio de chamada quando encontrassem alguma coisa que valesse a pena e um grito – pedido de socorro – se algum grupo se perdesse, ou precisasse de ajuda ou outra qualquer coisa muito especial.
A tensão ia subindo e as histórias do chefe de grupo, “menino Toninho”, não ajudavam nada a acalmar os mais medrosos.
De revelação, em revelação, falou-se da origem, finalidade, feitiços, habitantes, tesouros e todas as fantasias que a mina encerrava.
Uns ficavam admirados, outros cada vez tremiam mais de medo e outros ainda não ligavam às explicações e queriam era ir ver, com os próprios olhos o que estaria, afinal, escondido naquela mina.
Por essa altura já havia quem quase chorasse de medo e, particularmente o de Albardo, estava à espera de um pretexto para desistir.
Quando o “chefe” disse que afinal dois grupos iriam fazer a exploração e o terceiro grupo ficaria ali, na porta da mina, esperando algum sinal que viesse de dentro, ou indo chamar alguém, se os grupos não voltassem até que o sol fizesse uma sombra do Manelito com o comprimento de quinze pés.
Já se sabia, por ser a medida da sombra, que o Manelito era do grupo que ficava na porta.
Para escolher os outros dois o “menino Tonito”, disse que quem quisesse podia levantar o dedo e, como todos esperavam, logo o Zé Pires, “Borrado”, levantou o dedo.
Disse que estava com imensas dores de barriga, se calhar das castanhas que tinha comido, e por isso se oferecia para ficar de guarda.
Faltava escolher o terceiro, mas logo o chefe viu o “Hóstias”, que era neto do sacristão da igreja e vinha muitas vezes para a veiga que o avô tratava, na cerca do Abrunhal, a tremer que nem varas verdes.
Perguntou-lhe se também estava doente da barriga e o colega respondeu que tinha de ficar de guarda porque o avô já lhe tinha explicado que nunca poderia chegar-se à mina, porque poderia perder-se lá dentro, ser comido por algum dos monstros que a habitavam, cair para algum poço, ou ficar prisioneiro dos ladrões que lá se escondiam.
O último explorador de que havia memória, um pastor que se aventurou, com o cão, dentro da mina, foi encontrado mais de quinze dias depois, numa gruta da ribeira, já perto da Cerdeira.
É que o meu avô diz que esta mina tem ligações para a Cerdeira, para a ribeira das Cabras, já perto de Porto Mourisco e um ramal que começa atrás da Senhora do Monte e vem dar ao centro da mina.
Estavam nestes preparos quando ouvem um restolhado atrás de umas giestas e salta de lá o Ti’ Zé do Pico, que andava na veiga a regar e viu aquela trupe de garotos a atravessar os castanheiros, em direcção à mina.
Pensou que o neto não estivesse no grupo, pois fazia-o na escola àquela hora, mas quando se apercebeu que ele fazia parte da turma chegou-se, para o que desse e viesse.
Foi então que o sacristão explicou que aquelas minas já tinham dado riqueza a muita gente que ali explorou volfrâmio até há poucos anos; a Alemanha, comprava, por bom preço, todo aquele metal para as fábricas de guerra.
Era com ele que se faziam as balas e as bombas da guerra.
Ele próprio, quando era pouco maior que eles, andou lá a trabalhar e passou muitos dias sem ver o sol procurando as pedras de volfrâmio, que depois eram vendidas a um senhor espanhol que comprava tudo o que encontrasse, para fazer negócios com os alemães.
Já ouviram falar de candonga? Depois hão-de pedir, lá na escola, ao senhor professor que vos ensine o que são minas, o que é volfrâmio e todos os negócios à volta disso.
Mas vou dizer-vos mais alguma coisa sobre as minas, especialmente sobre esta que percorri, primeiro a levar coisas aos mineiros e depois, com a picareta a cavar o minério e a carrejá-lo cá para fora, em carrinhos de mão.
Para já, só se entra numa mina com um capacete de aço e com luz de gasómetro; aquilo, daqui a poucos metros da entrada é completamente escuro e há sítios onde corre água por todos os lados.
Depois não há só uma mina, são muitos buracos que se foram fazendo à medida que aparecia volfrâmio.
Mas se ele estava no chão cavava-se um poço.
É assim como um labirinto, que ao certo ao certo nunca se sabe até onde pode chegar e, como deve haver barreiras e tectos que caíram, só com cordas, boa luz e cautelas especiais, pode alguém aventurar-se a explorar as minas.
Quem quiser pode espreitar comigo.
Logo aqui à direita e ainda com a luz de fora, pode ver-se a sala onde se fazia a contagem de quem entrava e saía, para ter a certeza que ninguém ficara perdido lá pelas galerias.
Mais tarde diz-se que se chegaram a esconder ali quadrilhas de ladrões, mas, além disso podem ter a certeza que não há mais nada e não vale a pena correr riscos, por uma coisa de nada e, hoje em dia, sem qualquer interesse.
Aí o meu neto, pensará que lhe menti quando lhe disse que era muito perigoso ir para perto da mina, mas ainda achava cedo para lhe contar que conhecia bem os buracos que estão lá por baixo da terra.
Poderei ter exagerado, mas não aconselho ninguém a correr riscos que não mostrarão nada mais que cá o Ti’ Zé do Pico lhes acaba de explicar.
Vamos todos para casa!