O “relógio” que sempre conheci na pilheira da casa de fora - de onde apenas o vi sair para dentro duma saca de adubo que o levou à do Ti ‘Machado, da Carregueira, para ver se lhe dava um jeito – e a “folhinha” presa num prego, na lareira, ao lado do canto onde, invariavelmente, se sentava o meu avô, eram as duas relíquias de consulta diária, na casa do Casal, onde vivi a minha primeira década, até ir para o colégio de Mação.
Falemos, hoje, do relógio.
A pilheira da casa de fora, era uma pequena cavidade na parede, terminada na parte superior em ogiva e com a base formada por uma laje de pedra, que saía da parede coisa de um palmo.
Era sobre essa base, meio dentro da pilheira, meio saliente, que estava o relógio.
Acho que terei nascido a ouvi-lo e sempre me lembro de ter adormecido ao som do seu tic-tac.
Salvo, claro está, naquela vez, em que, por uns dias, foi a reparar e limpar ao curioso-pseudo-relojoeiro, que nas horas de descanso da sua fábrica de pregos e outros artigos de arame, "arranjava" relógios.
Entre a caixa do relógio e o fundo da pilheira, havia uma velha caixa de folha com letras e desenhos, que fora embalagem de bolachas, recebida como oferta, quando a tia Conceição tinha estado em Lisboa, no hospital.
Essa caixa era a que servia para minha avó, e mãe, guardarem as economias que iam angariando com as pequenas vendas de ovos, queijos, azeite, vinho, aguardente, frangos e galinhas.
Era, com essas minguadas verbas que mercavam os tecidos que os paneiros – O João gregório e o Adelino, da Alcaravela e a Ti ‘Carlota, do Penhascoso - vinham vender e onde minha mãe se abastecia para confeccionar camisas, calças, ceroulas, casacos e outras roupas, para as sete pessoas da casa.
Saía dali, também, para mercearia e sabão, comprados na loja e para as sardinhas, que as peixeiras de Alcaravela, traziam todas as semanas.
Só muito raramente se pedia outro dinheiro aos homens da casa, para o seu governo.
Desde sempre os meus pais viveram com os meus avós; a minha tia morreu ainda menina e nós – as crianças – dormíamos na casa do Casal, indo os meus pais, todos os dias, depois da ceia para a “casa nova”, lá nas oliveiras da “horta velha”, onde apenas dormiam.
A vida era retomada, logo na manhã seguinte, na casa do Casal.
A “casa nova” passou a ser a casa de todas as professoras da terra; ficava a poucos metros da escola e só à noite servia de local de dormida dos donos.
Mas, voltando ao relógio: uma vez por semana, meu avô puxava a tripeça, de cortiça, que estava debaixo da mesa, dita do relógio, e, de cima dela, abria a porta, tirava uma chave formada por um tubo de secção quadrangular e terminando em duas aselhas redondas.
Depois enfiava a chave nas hastes das cordas para as fazer girar até prenderem.
Do lado esquerdo ficava a corda das horas e do lado direito a corda do mecanismo ou engenho.
Enquanto estava a rodar a chave – a dar corda -, o meu avô parava a pêndula.
Depois, adiantava mais um ou dois minutos, para compensar o tempo que parara o relógio e impulsionava a pêndula, restabelecendo o tic-tac, inconfundível.
É preciso cuidado, pois uma volta a mais na corda pode parti-la, dizia-me o meu avô.
E lá voltava a história: Uma ocasião, o meu Ti‘Valentim do Melhim, que Deus haja, de onde herdei este relógio, quis ver até onde ia a força da corda e acabou por parti-la.
Depois, olha, teve de levar o relógio ao Ti‘Machado velho, pai deste que está lá agora, para o arranjar.
Como ele já não era novo e talvez já visse mal, ou não sei que diabo de relojoeiro era aquele, não se entendeu com aquilo e mandou o meu tio ao Mação a casa de um velhote – Diogo, se chamava ele -.
Ali, em menos de meia hora, caçou-lhe dois vinténs, por meter a corda no sítio, pois tinha saltado, oleado e limpo o mecanismo.
Limpou, limpou…mas foi os vinténs do meu tio; mas foi dinheiro abençoado, pois, até hoje, não voltou a parar.
Olha que comigo já está há uns quarenta anos e lá no Melhim, deve ter estado mais que isso.
Sempre a trabalhar, a não ser três ou quatro vezes que estive fora, quando fui a Lisboa ver a tua tia, que esteve lá no hospital e ninguém lhe deu corda.
Deixaram para mim, pois sabem que gosto de ser eu a fazê-lo.
Um dia, aí uns vinte anos mais tarde, o relógio começou a atrasar-se, a parar de vez em quando e o mecanismo das horas não batia as badaladas.
Meu pai retirou o relógio, embrulhou-o nuns panos e trouxe o relógio da “casa nova” para o Casal.
O velho relógio ficou anos – mais de quinze ou vinte – dentro do oratório, no canto da casa de fora.
Até que um dia, talvez uns vinte anos depois de meu avô nos ter deixado, trouxe o relógio para minha casa, combinando que o novo seria para minha irmã.
Em minha casa esteve bastante tempo sem trabalhar; um ou dois relojoeiros onde o levámos diziam que era um relógio vulgar, sem marca de valor e a própria caixa de madeira teria também de ser substituída, ou restaurada.
Até que a minha mulher falou ao seu relojoeiro e não só foi restaurada a caixa como foi posto o relógio a trabalhar.
E há vários anos que marcha e me acompanha com o velho tic-tac que sempre me adormeceu, lá na Serra.
O relógio não tem grande valor comercial – é, todavia, das peças mais valiosas que guardo em casa -.
Pelo que acima ficou dito, e porque nem o meu avô, nem o meu pai, tiveram objectos de valor para me deixar, guardo símbolos e recordações.
Não sei se terá alguma coisa a ver com o relógio do meu avô Zé Lourinho… gosto de relógios e, por onde andei – em casa, nos escritórios -, havia sempre vários relógios.
Quando, nas longas noites de inverno, o escuro e a chuva, caíam sobre a aldeia, nada mais restando que silêncio, o tic-tac do relógio e o bater das horas, acompanhavam-me e adormeciam-me.
Também me acordavam, quando nas manhãs das segundas-feiras, ainda completamente de noite e, por vezes a ouvir a chuva sobre a telha vã do telhado, saltava da cama, para passar água pela cara, fazer umas sopas de pão com açúcar, pegar nas duas bolsas que punha ao ombro, tipo alforge, e de chapéu aberto, aí pelas seis e meia, partia para Mação, pois a primeira aula começava às oito e meia.
O meu avô, aproveitava para ir lá fora fazer a primeira necessidade e quase sempre me metia cinco escuditos na mão, com a recomendação: não gastes mal o pouco que temos; mesmo esse custa muito a juntar.
E ao meu pedido da bênção, respondia, invariavelmente:
Vai com Deus e que Deus te abençoe.
E recolhia-se para dentro de casa…talvez com uma lagrimazita no olho; eu tinha apenas acabado de fazer dez anos e ao nascer do sol, já estaria às vistas da Carregueira, ou do Penhascoso – com uma hora e meio de caminho andado.