terça-feira, 27 de novembro de 2012

Os pontos nos “is”

                                                                         Os pontos nos "is"



Sabe, Chefe, uma das minhas preocupações foi, sempre, o cumprimento rigoroso dos seus ensinamentos e recomendações; enquanto estávamos ali na “clínica de vendas” é que se punham os problemas, ou dúvidas, depois de sair aquela porta era cumprir a cartilha e mais nada. 

Sem nunca desviar os olhos dos objectivos, que eram para cumprir, custasse o que custasse. 

Este era o espírito reinante nas reuniões preparatórias das campanhas de vendas e, depois, nos encontros intercalares; nos acompanhamentos, pelo terreno, ajustava-se algum desfasamento que, eventualmente, se estivesse a verificar. 

Uma máquina de vendas que deu cartas no mercado farmacêutico. 

Desde aquele primeiro dia de campo, em Outubro de 73 - completar-se-á, no próximo ano, meio século - foram inúmeras as histórias e episódios que marcaram a nossa actividade de Vendedor/Coordenador, Supervisor, Chefe de Vendas, Chefe de Serviços Comerciais, Diretor de Vendas, Director Comercial e de Marketing e Director Geral. 

Muitos jovens vendedores – mais de centena e meia - iniciaram, connosco, a actividade e alguns vieram a atingir postos cimeiros em multinacionais de referência, nos mercados Farmacêutico, O.T.C., Higiene e Alimentação Infantil, Brinquedos, Cosmética, Venda Directa, Grande Distribuição, Produtos para o Lar e Material Didático. 

Largas centenas de horas em cursos de preparação, treino, reciclagem, formação de quadros e análises de resultados e campanhas, acompanharam a nossa principal actividade, ao longo de mais de quarenta anos. Sem esquecer, como é óbvio, as largas sessões de participação em que fizemos a nossa própria aprendizagem, nas três Companhias onde trabalhámos. 

E, recordamos: 

Lembra-se, Chefe, da descrição feita pelo L.M., da visita que fizeram a uma farmácia de Campo de Ourique, onde o Encarregado – um tal sr. Arnaldo – começou por armar ao fino, gozando com três “periquitos” que entravam na “sua farmácia” e, ao cumprimento inicial, respondeu muito secamente: não compreendo, costumam perguntar pelo meu nome as pessoas das minhas relações, aquelas que eu conheço!.. Os outros, marcam entrevista e perguntam se desejo atendê-los!...Ou os cavalheiros terão sido meus colegas de escola?... 

Na ficha de cliente, passada pelo colega da Propaganda J. M., constava uma nota: Ajudante de trato difícil a princípio, mas muito dedicado ao Laboratório e muito prestável. Cuidado com a entrada! 

Face à atitude do indivíduo, que aliás se enquadrava, perfeitamente nas observações da ficha, o Chefe deu corda ao peixe, relaxou-o, passou-lhe a mão pelo lombo e qual cordeirinho, completamente rendido, acabou por comprar o dobro de tudo o que tinham combinado antes de entrar na farmácia. 

E, no final, o Ajudante Arnaldo, desculpou-se da sua reacção na entrada, entregou um cartão seu, disponibilizou um espaço para colocar dois armários-expositores e terminou: agora que somos aqui vizinhos, pois o Laboratório veio aqui para a nossa área, sempre que precise de alguma coisa, apareça, pois no que lhe possa ser prestável, estarei, sempre, ao seu dispor. 

Recordo o seu comentário: Apenas um que foi à lã e voltou tosquiado! 

Lembra-se, Chefe, da dramatização que o L.M. fez daquela sua primeira demonstração, no terreno. E de ter terminado, dizendo que chegou a temer que o Chefe se exaltasse e não conseguisse dar a volta ao Ajudante? 

Também o A.V. acrescentou que ficou rendido à classe da argumentação do Chefe e considerava uma das melhores peças de artes de venda a que assistiu. 

Tinha acabado de ganhar dois Supervisores para a sua equipa… 

Na minha zona, pelas farmácias das Beiras, também se passaram inúmeras peripécias com o pessoal e com os drs. 

Lembrarei, sempre, aquele dr. da raia que nunca tinha comprado mais que uma dúzia de boiões na campanha anual e, depois de muito bem trabalhado pelos dois – o Chefe, por um lado, dizia mata-se; eu, por outro, dizia esfola-se - acabou por assinar a nota de encomenda. 

Ia lendo por cima do meu ombro, o que eu ia escrevendo e, sorrindo para o Chefe, comentou: ai o filho da p… que já escreveu!... 

Caiu em si e desculpou-se, imediatamente, pela expressão, e pediu-me que a interpretasse mais como sinal de afecto que com qualquer sentido de ofensa. 

E lá comprou, uma grosa de boiões, uma torre de inaladores, duas grosas de pastilhas e, daquele dia em diante, foi uma das farmácias que nunca me recusou a introdução de um produto apresentado de novo. 

Um grande amigo, enquanto esteve na farmácia, tratando-me com um carinho, uma delicadeza e uma dignidade só encontradas nas pessoas nobres e simples que tive o privilégio de visitar regularmente, durante anos. 

Uma das recomendações dadas pelo Chefe, era: atenção aos cumprimentos e à cópia da nota de encomenda que deve sempre ser deixada ao responsável da Farmácia. 

Cuidado com o que se escreve e se diz!.. Nunca esqueçam que vocês são, para a maior parte dos clientes, a única imagem do Laboratório. 

Os nomes correctos de toda a gente, das Localidades e das Farmácias; as observações, as contas, as percentagens de descontos, bonificações, transportes, prazos de pagamentos; a cortesia e tom de voz, a hierarquia do pessoal, a postura da vossa presença, a valorização do vosso tempo, etc. são factores que podem ajudar ou dificultar a visita; porém, nunca serão indiferentes ao resultado do vosso trabalho. 

E aquele caso da farmácia Açoreana, que o Chefe me perguntou se era assim que figurava nos carimbos, no papel timbrado, no nome do placar, ou em qualquer outro lado que eu tivesse visto. 

Dizia-me, o Chefe, que uma das piores coisas que se pode fazer é trocar o nome de alguém, quer escrevendo, quer dizendo. 

Em caso de dúvida, perguntar sempre; pois, se perguntarmos o dobro do que nos dizem, o quádruplo do que pensamos e oito vezes mais do que costumamos, acabaremos por diminuir os erros, aumentar o respeito, facilitar o trabalho e ver melhores resultados. 

E acrescentava: 

A forma correcta de escrever o nome da farmácia será Açoriana, mas como se trata de uma firma de longa idade, terá, provavelmente começado a ser assim escrito e, se estiver registado com e, em vez de i, só nos resta respeitar. 

Aí tem um tema para tratar com o sr. Dr. e aproveitar para marcar pontos a seu favor – é nas pequenas atitudes que se granjeia o prestígio! 

É que saber do seu mister, é uma obrigação que não admirará ninguém, já ser discreto, correcto, cuidadoso e delicado, são atributos que ajudarão no desempenho da actividade. 

Quando cheguei a Coimbra, a primeira coisa que fiz foi consultar o dicionário que tinha comprado, por seu conselho. 

Lá estava, preto no branco: açoriano. 

Telefonei-lhe, perguntando se escrevia o nome da farmácia com e, como estava no carimbo da nota de encomenda, ou se escrevia com e, pouco aberto, como se pudesse ser um i a que me esquecera de por a pinta. 

Lembra-se da sua resposta, Chefe? 

Pôr os pontos nos is é um acto que não deve ser descurado. 

Telefonar ao sr. Doutor, pedindo ajuda, para escrever correctamente, é uma atitude aceitável; porém, pôr uma anotação na ficha e abrir a próxima visita com esse tema é, quanto a mim, a forma mais apropriada de marcar pontos junto do cliente, aproveitando o assunto como embalagem para nova venda, mudando assim o historial do cliente, que despertou na encomenda em curso. 

O seu conselho deu origem a um grande louvor do cliente, que no seu sotaque açoriano, me foi dizendo, sentado no seu pequeno escritório, nos interiores da Farmácia, onde passou a receber-me: 

Sabe senhor J.B. é a primeira vez que alguém me põe esse assunto, que, aliás, tem toda a pertinência, pois açoriano escreve-se com i e não com e. 

Mas os meus antepassados fizeram assim o registo e, por respeito por eles, vamos continuar a usar assim o nome da firma: informe os seus serviços que deverão continuar a escrever mal, mas é esse o nome da farmácia Açoreana. 

Desencontrámo-nos nas andanças da vida; eu segui por outras rotas e o J.B. também. 

Encontrámo-nos bastas vezes, como se diz lá pelo Porto e, numa das últimas vezes em que tivemos o mútuo prazer de almoçar juntos, no restaurante Manuel Júlio, nos arredores de Coimbra, reparei que ainda brilhava, no pulso do J.B. o relógio que ganhara ,há perto de quarenta anos, no lançamento de um produto que, segundo todas as previsões, teria uma penetração de 25% nas farmácias da zona centro do país. 

Só que uma cobertura exemplar, por um vendedor excepcional, colocou o teste de gravidez em mais de 80% das farmácias da zona, sendo considerado o melhor trabalho nos diversos países em que foi lançado o produto. 

São centenas de histórias semelhantes a estas que enriquecem e compensam um trabalho de muitos anos, numa actividade rica e apaixonante; são milhares de personagens criadas por todo a país, que tive o privilégio de visitar, acompanhando, também, personagens simples, carregadas de ensinamentos e conhecimentos que tanta confiança me deram. 

Além de gratificante foi, também, profundamente enriquecedora a actividade desenvolvida com tantos colaboradores anónimos, que, salvo raras excepções, são outros tantos amigos, que tenho a honra de guardar, no melhor das minhas recordações. 

Deixo-lhes os agradecimentos, através daquilo que sei fazer; escrevendo, em sua honra e memória. Para todos vós, do amigo de sempre.