segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O “João Osso”


                                 
Às vezes, as coisas simples da vida complicam-se e ultrapassam tudo o que a nossa inteligência pode perceber, ou a nossa imaginação admitir. 

Esta foi a sentença com que o velho Tonho Cardina, deu início a mais um modorrento serão de inverno, não longe da lareira, onde o fogo, bem espevitado, devorava as cavacas de pinho e aguentava a fervura, em cachão, no latão da vianda. 

Todos conhecem o João Melrinho, mais conhecido pelo calça-larga. 

Pois só depois de vir da tropa assim começou a ser chamado; até aí sempre foi o João Osso. 

E, não fora o engano do sargento ao distribuir-lhe umas calças três números acima da medida correcta, ainda hoje seria João Osso. 

E saberão, os presentes, o motivo dessa alcunha? 

O nome ficou-lhe desde que a mãe o deu à luz, numa grande aflição, vendo o homem finar-se, porque um osso de perdiz se lhe atravessou na garganta e acabou por cortar-lhe toda a respiração. 

Tentaram salvá-lo, mas sem resultado. 

Pelas contas da comadre Luísa, a Maria da Luz, que estava a fazer uma barriga normalíssima, só na próxima volta da Lua, havia de completar o tempo. 

Porém, os choros e ais que varreram a aldeia, entre gritos de aflição e correrias desenfreadas, chegaram aos ouvidos da Maria, que voltava da horta, com um molhito de couves, à cabeça, e deixaram-na em estado de choque, agarrada à barriga. 

Enquanto até aí todos procuravam o Ti’Manel Luís, barbeiro, desde a tropa, e curandeiro / sangrador, de serviço na terra, para que socorresse o Chico do Outeiro, que tinha um osso na garganta e ameaçava finar-se; logo se repartiram as correrias, à cata da Ti’Luísa, para ir acudir à Maria da Luz, que na aflição de ver o homem nas últimas, parecia ter começado a largar a criança, antes do tempo. 

O curandeiro, esbaforido e cansado, veio da horta, onde andava a regar e, depois de uma rápida descrição dos factos, afastou toda a gente, estendeu um molho de palha na cabana e pediu a dois dos homens mais pujantes que o ajudassem. 

Precisava de gente com força. 

O Chico estava já mais roxo que branco e, erguido no ar, com a cabeça para baixo, não respondeu a duas valentes palmadas nas costas. 

O Ti’Manel pediu, de seguida, uma almotolia de azeite e tapando o nariz do paciente, despejou-lhe, obra de um decilitro, na boca, mas não verificou qualquer reacção. 

Mandou, de novo, levantar a vítima de cabeça para baixo e, nada se passou. 

Meteu os dedos, até onde pôde e nem sinais de vómito. 

Disse ao Joaquim Albardeiro que soprasse, com quanta força pudesse, na boca do Chico, ao mesmo tempo que comprimia e descomprimia a caixa-de-ar do morto. 

O último gesto do Ti’Manel foi pôr um espelho na frente da boca do Chico e verificar que não ficou embaciado. 

Do outro lado da casa veio a notícia de que a Maria da Luz, estava a fazer honras ao seu nome. Já lhe tinham rebentado as águas e estava próxima a vinda da criança. 

Foi assim que, às tantas, todos deixaram o Chico e voltaram as atenções para os lados dos fundos da casa, onde mãe e filho já se faziam ouvir. 

O ganapo berrava a bom berrar, mostrava sinais de perfeitinho e, com os olhitos ainda cerrados, meneava a cabeça, procurando um peito para começar a mamar. 

O Ti’Manel Luís, encarando a criança, disse: 

Ainda bem que o teu pai já está substituído; hás-de ser João, como o teu avô, que Deus tem, e “Osso” como o que nem eu fui capaz de roer. 

E sempre foi João “Osso” o nome do garoto, até que quando voltou da tropa, como que por milagre, raramente se ouviu esse nome e passou a ser o calça-larga, como todos o conhecemos. 

O velho Cardina, aproveitou para fazer o elogio do curandeiro que, sangrou muitos nas aldeias das redondezas, compôs muitos braços e pernas e curou muitas espinhelas caídas, ou tortas. 

Acrescentou, com plena convicção, que ouviu da boca do Ti’Manel Luís, com toda a segurança, que foi chamado tarde de mais para socorrer o Chico do Outeiro e o estado dele – fortemente bêbedo –, também não ajudou nada a reacção do corpo. 

Um homem daqueles, são como um pêro, forte como um touro e a vender saúde, acaba por ser vítima de uma coisa porque ninguém dá nada: engasgado com um osso de perdiz. 

As coisas mais simples da vida que, quando o demónio quer, podem transformar-se em complicações sem remédio. 

Mas, eu cá sempre fiquei a magicar nas palavras do Ti’Manel Luís: Já não havia nada a fazer; quando cheguei ao pé dele, já estava morto. 

Atão um fortalhão daqueles deixa-se ir assim abaixo!? Ná, não me cheira bem!... 

Cá para mim, foi a comida e bebida em demasia que o mataram; Algum diacho de “constão”, ou lá como lhe chamam, que dum momento para o outro manda um maltês desta para melhor. 

E depois, os que estavam com ele também não davam acordo de si, para explicarem o que se passou na verdade. Ficam as dúvidas!... 

Terminada a história, o Ti’Cardina foi ao cabanal verter águas, deu uma espreitadela para o catavento da torre da capela e confirmou o vento norte que começava a rodar para poente e havia de trazer, por aí, chuva. 

Recolheu-se e, como já todos tinham ido para a cama, quando voltou junto da lareira, apagou os restos de lume e pegando na candeia, subiu os degraus para a casa de cima e deitou-se, ao lado da sua Hermínia, que já ressonava sobre a enxerga de camisos.