terça-feira, 6 de novembro de 2012

Ditos e Tradições



Estava aí o Domingo de Ramos e a Páscoa não tardava; era preciso preparar o obséquio para o senhor padre e acompanhantes da visita pascal. 

Embora raramente comessem alguma coisa era uso que as casas tivessem a mesa posta quando fossem visitadas. 

E, nestas coisas, ninguém, do mais humilde ao mais abastado, queria fazer má figura; ninguém queria ficar nas bocas do povo. 

De uma maneira geral punha-se uma toalha de cerimónia numa mesa, e sobre ela, um açafate de pão de trigo, cozido em casa, queijo, uma malga de azeitonas, um naco de presunto e além das passas de figos, um prato de tremoços. Uma garrafa de vinho ou abafado e os respectivos copos. 

É que mesmo que ninguém comesse ou bebesse, sempre se fazia a bênção do que estava exposto e do resto que houvesse em casa. 

Era uma tradição que já tinham encontrado os meus avós e que haviam de deixar aos que viessem a seguir a eles. 

E o meu avô dizia-me depois, quando eu lhe fazia perguntas: sabes, há coisas em que nem se pensa se são de acreditar ou não, mas se cá as achámos, cá as havemos de deixar. 


Já se sentia na aldeia o cheirinho do pão de trigo acabado de cozer e ainda os moleiros andavam a entregar os últimos taleigos de farinha aos mais atrasados, que não queriam deixar de cumprir as tradições: uma fornada de pão trigo, umas capeludas e uma maceira de bolos com erva doce, cozidos sobre umas folhas de figueira. 

Todas as semanas, iam à aldeia três moleiros, em dias desencontrados: O Ti´Luis Mestre, da Louriceira, ia todas as terças-feiras, falhando só o dia de Entrudo e, fazendo algumas visitas de reforço, quando tinha encomenda especial – para casamentos, baptizados ou outras cerimónias especiais, sem esquecer malhas, matanças e festas. 

O Ti´Manel Fernandes, vinha lá dos fundos do Pisão, na ribeira de Arcês, onde tinha os engenhos, e, quer chovesse quer fizesse sol, logo ao romper de cada quinta-feira, estava à porta dos seus clientes, entregando os taleigos da farinha e carregando, no burro, os sacos de grão para moer até à próxima semana. 

O moleiro da terra – o Ti´Balejo -, recebia os sacos que as freguesas levavam à cabeça até lá a casa, e entregava os taleigos da farinha. 

Raramente se juntavam os três, mas às vezes calhava e aproveitavam para beber uns copitos na do Manel Miguel e trocarem umas prosas. 

Homens de vida muito solitária que adormecem com o barulho das pedras das azenhas e acordam com o silêncio, se alguma coisa corre mal no trabalho, gostavam de prosear quando se viam, pois além de cada um ter a sua freguesia e trabalhar como sabia e podia, não deixavam de ser amigos. 

Cada um tinha a sua especialidade e, no que tocava a trigo, o mestre era o Ti´Fernandes: tinha melhores engenhos, águas mais fortes e não era menos artista. 

Isto era a sentença do concorrente Luís Mestre, que não deixava de ter os seus fregueses para o trigo. 

Dizia-me, com visível contentamento, quando por vezes nos cruzámos: a vossa casa não dá o trigo a mais ninguém, sou eu que o moo todo. 

Naquela vez, quando entraram na taberna, já lá estavam os mestres da safra do lagar, que tinham acabado a campanha havia pouco tempo. 

Palavra puxa palavra e o Ti´Balejo, que gostava de atirar as suas pachouvadas e era, além de inconveniente, no mínimo desbocado, cumprimentou os lagareiros e atirou: 

É raro juntarmo-nos aqui todos, moleiros e lagareiros. E logo três de cada arte. Só faltam os três escrivões!...É que, se assim fosse , cumpria-se a sentença do meu avô, que com graça e, sabe-se lá, alguma sabedoria, dizia: 

Três moleiros, três lagareiros e três “escrivões”, fazem a conta de nove ladrões. 

Salta de lá o Ti’Luis Mestre, homem de poucas, mas sábias falas: estamos cá, de facto, três moleiros e, pelos vistos o Ti´Luis Mendes e o compadre Manuel, têm um especialista também lagareiro. Mas não estou pelos ajustes e não concordo com a sua prosa, mesmo que ela tenha sido ditada por alguém que Deus já lá tenha. 

Sabe compadre Balejo, há coisas que nem a brincar se dizem e vou dizer-lhe que poderiam vir os escrivões, porque não ficavam juntos os nove ladrões. 

E, ao que me parece, só um é tratado pelo povo sabedor pela alcunha do “alma do Diabo”, se bem que continue a achar mal, mas se o povo o baptizou… 

O Ti´Manuel Fernandes, homem pacífico e nada dado a encrencas, ditou: 

Oh! Ti´Manel, deite lá mais uma rodada e não se esqueça aí dos nossos amigos lagareiros. 

Estou de acordo com o amigo Luís Mestre; se alguma coisa prezo é a honra e vergonha, coisas que nem a brincar se podem enxovalhar. 

Parece que o amigo Manuel Balejo, ainda não aprendeu com os sopapos que toda a gente diz que já tem levado, por se meter com quem não deve. 

Mas, o meu bisavô que me ensinou a arte de moleiro, além de sempre me recomendar que nunca me enganasse nas maquias, dizia, muitas vezes: mesmo fazendo tudo muito direito, da fama de desonestos não se livrarão os moleiros. 

E sabes qual é o remédio? Só um, Manel: palavras loucas, ouvidos moucos!... 

Ah! Só mais uma parábola do meu avô: o ditado do Divino Mestre para os moleiros dizia: cada moleiro será condenado a percorrer as casas dos fregueses com sacos de milho às costas, espalhando os bagos que tiver tirado a mais nas maquias, até ao fim dos tempos. 

Há anos que ando pelos caminhos das casas dos fregueses dos meus avós e nunca encontrei nenhum deles, nem vi milho por aí espalhado. 

E estou sossegado que também não receberei tal condenação. Mas, não demos importância ao que a não tem. Vamos à vida. 

Um dos lagareiros ainda se chegou ao pé dos dois moleiros de fora da terra, dizendo que desculpassem e seguissem o conselho sábio do avô do Ti’Fernandes: palavras loucas… 

E lá foram continuar o resto das voltas pelos clientes, enquanto o Ti’Balejo se lamentava para o taberneiro: 

Então já nem uma graça se pode dizer. Aqueles demónios a fazer-se de santos. Que diabo de mal tem um ditado que se diz desde que o mundo é mundo? 

O Manel, para o acalmar lá foi dizendo: Olhe lá, oh! Ti´Manel, quantos taberneiros é que se livram da fama de deitarem água no vinho? Conhece algum? 

O moleiro mais animado, sentenciou: 

Isso é verdade; não conheço porque não há. Mas isso é uma obra de misericórdia; se não fosse assim mais bêbedos haveria e mais desgraças aconteceriam. 

Porque é que com os moleiros e os outros, há-de ser diferente? Que raio de coisa esta. 

E, a cambalear e aproveitando as paredes de um e outro dos lados do caminho lá foi carregar o macho para ir até à ribeira, ver se fazia mais alguma coisa e ir ganhando a vida. 

Mal as pedras rolaram, na azenha, já o moleiro dormia a sono solto, recostado no seu catre de palha.