sábado, 31 de maio de 2014

O Melro




Sorrateiramente, pé ante pé, descia a barreira das últimas estevas e debicava, junto da levada, os vermes que catavam a terra húmida enquanto espreitavam a luz e calor do sol para se desenvolverem.

O melro entrava em cena e cada vez que um daqueles bichitos se mostrava ia juntar-se aos outros que já enchiam o papo do passarão. 

Depois de saciado, beberricava e satisfazia a sede com aquela água cristalina e cacarejante que seguia levada abaixo para as hortas lá do fundo do Lavadouro.

O ti’Manel Cortiço deliciava-se a contemplar as habilidades do bicho fino. 

Desde pequeno que tinha um fraquinho especial pelos melros e as carriças que, não tendo nada a ver uns com os outros, são todos filhos de Deus e se cá foram postas é porque interessa que cá estejam. 

São criaturas como quaisquer outras e não há-de ser por mim que alguma coisa lhes há-de correr mal. Se pudesse ajudava a criá-los e todas as boízes, costelas e outras esparrelas que lhes armem, serão partidas por mim. Tudo tem direito à vida…

Estes monólogos sonoros, ilustrados com gestos teatrais, foram muitas vezes as delícias das minhas espreitas, no meio do milharal do chão de cima, quando o velho Cortiço regava na horta da borda da ribeira. 

Para ele, qualquer ser vivo, era uma criatura de Deus e tinha sido criado como nós criamos um filho; nada, nem ninguém, tinha o direito de molestá-lo. 

E, sozinho, filosofava: aos homens, que são capazes de ser maus, sou capaz de lhe assentar duas ripadas no lombo; já aos bichos, aos pássaros e às crianças, não!... Não fazem mal a ninguém, não têm culpa de ter nascido e são a alegria das nossas tristezas. Bendito seja quem os criou e abençoado seja quem os proteger.

Estou a vê-lo, sentado na parede da horta, à sombra da figueira regal, junto da videira Fernão Pires, deliciando-se a ver os passaritos debicarem nos figos madurinhos, ou enchendo o papo de uvas amarelinhas. 

Ficava como que em transe, imóvel e silencioso, apreciando os pássaros a comerem-lhe as novidades. 

E depois, ia apanhar os restos dos figos, ou os bagos que sobravam dos cachos vindimados pelos melros e outras aves.

Também nos pequenos pegos da ribeira o ti’Cortiço se sentava na relva fresca, nas tardes de fim de Verão, a desfazer bocaditos de pão para juntar os peixitos que quase lhe vinham comer à mão.

Não tinha qualquer sensibilidade apurada para a música; não era capaz de trautear a mais elementar das melodias, nunca conseguiu aprender a assobiar e por mais que tentasse nunca lhe saiu direita qualquer imitação de voz de animal. 

Nunca percebi, por isso, as razões do seu silêncio e atenção sempre que um rouxinol das canas, um pintassilgo ou um verdilhão lançavam ao ar os seus trinados, muitas vezes em conjugação com os vizinhos, qual sinfonia pastoral, ou banda de música natural.

E, mistério dos mistérios: será que não conseguindo alinhar duas notas de música, tinha sensibilidade para ouvir e perceber todos aqueles trinados e chilreados, tocados a primor pelas diversas aves da natureza? 

Pelo modo como ouvia, inebriado, toda aquela passarada, arrisco-me a admitir que, embora não sendo capaz de executar, era possível que percebesse todos aqueles acordes e melodias. 

Uma coisa é certa: distinguia e associava o canto de qualquer ave ao seu emissor. E mais; pelas vozes dos diferentes animais, conseguia saber as horas do dia.

Mas voltemos ao melro que originou este conjunto de cogitações e a lembrança do ti’Cortiço. 

Porém, vejamos os epítetos com que o velhote mimava aquele pássaro preto, de bico amarelo, mais corpulento que a maioria das aves campestres e ribeirinhas: bicho fino, esperto e ladino, diligente e habilidoso a procurar a comida, manhoso e dissimulado, forte e bem adaptado ao meio em que vive. 

Grande maroto, não sei porquê, consegues ser o pássaro de que eu gosto mais, dizia várias vezes, de si para si, o ti’ Cortiço! 

E vigiava os locais em que os melros faziam os ninhos para que nenhum predador, humano ou selvagem, tivesse a possibilidade de os encontrar ou danificar. 

Já no tempo dos taralhões, as costelas armadas nas suas hortas eram encontradas desarmadas, sobre os terreiros, e com as agúdias mortas. 

Aliás quem sabia daquele procedimento do ti’Cortiço nem se dava ao trabalho de armar, fosse o que fosse, na horta do velhote e quando fazia as caçadas, em que retirava os passaritos das costelas, passava ao largo, ou escondia os trofeus de caça, para não ouvir os impropérios e ameaças da boca daquela criatura que nunca se alterava a não ser quando defendia os pássaros.

Outro dos encantos do ti’Manuel Marques Lopes – nome de baptismo do ti’Cortiço – eram as abelhas. 

Tinha apenas duas colmeias e chegava a perguntar às abelhas que esvoaçavam de flor em flor, lá na horta, se moravam na sua colmeia da horta de cima, junto do palheiro. 

Com cortiços feitos de uma só peça unida lateralmente por pregos de madeira e cobertos com lajes de pedra, ligeiramente inclinadas para norte e colocadas sobre uma base de pedra, com menos de um palmo de altura. Por trás, a uns dois palmos de uma barreira cortada a pique, e encimada com tufos de estevas e tojos, o local era inacessível e a ranhura por onde entravam e saíam as meninas – como lhes chamava o ti’Cortiço – ficava num nível praticamente fora do alcance de lagartos e outros predadores rastejantes. 

Os cortiços das colmeias estavam impecavelmente limpos e todas as ranhuras devidamente calafetadas com excremento de vaca misturado com barro. 

O sol batia na porta das colmeias desde o meio da manhã até quase ao fim do dia e do local podia ver-se todo o vale da ribeira para cima e para baixo.

Segundo a filosofia do velhote não devia roubar-se o alimento às abelhas que tanto trabalho tiveram para consegui-lo. 

Mas quando a colmeia tem os favos todos cheios é importante que se creste uma parte para que as obreiras não se tornem preguiçosas. 

Este equilíbrio era uma das grandes preocupações do velhote que varria e limpava, todas as semanas, a entrada das casas das amigas abelhas e inspeccionava cuidadosamente as imediações a ver se havia algum sinal de preocupações.

Quando tinha necessidade de abrir alguma colmeia ou quando retirava alguns favos para crestar, nunca se protegia com máscaras ou com fumos. 

As meninas conhecem-me e sabem que sou seu amigo; não me farão mal e, uma ou outra ferroada não chega para me fazer zangar com elas.

Todo o tempo do ano era passado na horta e, depois de viúvo, a maior parte das noites dormia lá no palheiro. 

Desde que a minha Amélia se foi embora, nem os pássaros cantam tão bem, nem as plantas medram da mesma maneira; até as abelhas perceberam que me falta a alegria de viver, mas cá me vou animando e talvez me faltasse tudo se estes amigos todos deixassem de me acompanhar. 

É como se estivesse na missa: fico mais calado, mais pensador, mais metido comigo mesmo e acabo resignado. 

Sei que compreendem que não tenho a vivacidade com que os acompanhava, e desculpo-os por também cantarem menos e se sentirem mal com a minha solidão. Coitados, hão-de compreender que não sou um grande homem e quando o inferno por aqui passou, há duas semanas, foi o pior dia da minha vida – não porque nunca tivesse visto estas cinzas que são os restos de tudo o que aqui havia – mas porque os meus amigos se foram embora, pois não têm que comer. 

E não sei se quando este preto voltar a ser verde ainda aqui haverá olhos para ver. 

Assim, com mais tempo para dormir, sinto-me com mais sono e sei que os melros devem andar por aí; eu é que tenho dificuldade em vê-los, porque se confundem com as cinzas que cobrem tudo e estão, aos poucos, a escurecer-me a alma.

Menos de quinze dias depois, no dia da Senhora de Agosto, depois de ir à horta fazer as necessidades, limpou cuidadosamente o palheiro e as imediações das colmeias, vestiu a melhor roupa que tinha e estendendo-se sobre a enxerga, com as mãos abertas e voltadas para cima, em sinal de dádiva, fechou os olhos e adormeceu, para não mais voltar a acordar. 

Foi encontrado, com um sorriso nos lábios e uma postura de total serenidade, nessa tarde quando alguém deu por falta dele na missa e foi à horta ver o que se passava. 

E a história virou lenda: diz-se que ainda é visto e ouvido por pássaros, peixes e abelhas que nunca mais tiveram a mesma alegria e que em certos dias do ano há reuniões anormais desses amigos, que fazendo silêncio esperam o ti’Cortiço lá na horta, sentado na parede, esperando que a figueira desaparecida volte a dar figos e as abelhas voltem a ter casas junto do palheiro.

sábado, 24 de maio de 2014

As correntes…


Se tivesse tido mais equilíbrio e bom-senso, fazendo o que lhe mandavam e não o que achava melhor, seguindo os exemplos dos ascetas e santos e não os dos livros de filósofos e intelectuais que faziam da dúvida a fonte do seu saber e a base da sua acção, mostrar-se-ia mais dócil, mais temente e mais talhado para Ministro de Deus.

Assim, depois das lutas de uns e paciência de outros, foi perdendo apoiantes e, apenas o Conselheiro Espiritual votou, vencido, quando decidiram que o aluno Ricardo Mendes não servia para o serviço da Igreja e no fim do ano, que se aproximava, seguiria para férias, sem retorno. 

Chegavam ao fim os cinco anos que vivera no Seminário.

A decisão não lhe agradou, ou desagradou, sobremaneira; mas foi, todavia um contratempo de peso. 

Ainda não tinha estudos suficientes para usar na vida laica como equivalências; seria mal recebido pela família que apostava na sua Ordenação como padre; não teria meios para ir estudar para qualquer liceu ou colégio; e não se resignaria a ir cavar, de sol a sol, como os pais e irmãos, suportando o estigma de “padreca falhado”. 

Iria, por isso, apesar dos seus dezassete anos, lutar com a vida e, por ela, venceria.

Foram muito penosos os primeiros meses na aldeia. Naqueles tempos, embora fosse muito difícil a vida nas instituições religiosas, era um verdadeiro privilégio em relação ao viver dos trabalhadores rurais, a que o Ricardo parecia estar condenado. 

Foi vivendo como pôde, mas nunca perdeu os hábitos de leitura e aproveitou todos os contactos com os operários da Terra que andavam por fora, sobretudo em Lisboa, nos duros trabalhos da estiva e da construção civil. 

Apenas alguns padres, que ainda não acreditavam que o Ricardo desistisse de se Ordenar, se prontificaram a ceder-lhe livros para, pelo menos, se ir entretendo e mantendo alguma ligação com a Igreja.

Mas a cabeça do rapaz já andava por outras paragens e, à primeira oportunidade, com o pouco dinheiro que tinha – pouco mais que o do bilhete de combóio -, seguiu para Lisboa, ao encontro dos que por lá trabalhavam. 

Chegou à cidade grande na semana antes de completar dezoito anos, nos princípios de Outubro, dum ano frio e chuvoso. 

Do Rossio ao Campo Pequeno, com uma pequena malita de cartão na mão, absorto por toda a fantasia que constituía uma cidade tão grande, subiu a pé. 

Chegado lá, e dado que era domingo, conseguiu avistar-se com alguns homens e rapazes da aldeia. 

Comeu um bocado de pão com queijo que levava na mala e começou à procura de lugar para dormir e para trabalhar. 

Foi então que o seu anjo protector, como dizia: é que nem todos ficaram zangados comigo; houve um, cujo nome ignoro, que sempre me acompanhou e protegeu – talvez o único que percebesse que se me tivessem acompanhado mais, teriam feito de mim o que queriam – um padre e, estou seguro que se tal tivesse acontecido, não teriam que se arrepender, pois seria, no mínimo, tão bom como os outros -.

Mas voltemos ao anjo. 

O Ti’ Serras, pedreiro bem conceituado no meio, e Encarregado nas obras de construção do Hospital de Santa Maria, olhou para o rapaz e perguntou-lhe: 

Porque estás aqui? Os teus pais sabem de ti? Ainda não tens dezoito anos, ou já? Afinal o que queres? 

Depois de responder a todas as perguntas, com calma e segurança, gaguejou um pouco quanto ao seu querer. Afinal era muito simples: queria carinho e ajuda, pois força tinha ele para o que desse e viesse. 

Não o quiseram no Seminário nem o acarinharam na aldeia. Só um anjo, cujo nome ignorava, ainda o acompanhava. E, Ti’Serras, espero apenas que me abra o caminho; pois que andá-lo será comigo e como eu aprendi, serei eu a fazê-lo, caminhando. 

Quero três coisas: lugar para dormir, trabalhar e poder continuar a estudar.

Vais dormir no nosso “hotel”, lá junto da obra do hospital de Santa Maria, com os restantes. 

Amanhã às oito, em ponto, apresentas-te ao Manel Alves para começares a dar serventia e, às cinco, quando acabares, juntas-te com um rapaz que temos lá, estudante, para te dizer tudo o que quiseres saber quanto a essa matéria. 

Tenho outra tarefa para ti, mas daqui a dois, ou três meses, falaremos nisso. Para já veremos as tuas capacidades e até onde podes chegar, no nosso meio.

Ao segundo mês chamaram pelo Ricardo para lhe entregarem o salário e, louvado na frente dos colegas, foi convidado a passar aos escritórios para ficar a ajudar o fiel de armazém do estaleiro. 

Era trabalho mais limpo e melhor remunerado. E, antes de iniciar a nova actividade foi agradecer ao Ti’Manel Alves, chamando-o de seu anjo da guarda. 

Em resposta ouviu o que mais desejava:

A empresa – uma das maiores construtoras do país – despachara, positivamente, um adiantamento sobre salários até ao equivalente a meio ano, destinado ao pagamento de inscrições, matrículas, livros e até alguma roupa. 

Estavam atribuídos seis desses prémios a outros tantos jovens que se sabia quererem estudar e terem dificuldades. O Ricardo era um desses beneficiados. 

Mas, para saberem o resto, deviam passar pelos escritórios daí a dois dias, onde o próprio patrão lhes diria o resto, antes de ser comunicado a todos os trabalhadores da construtora. 

Começava a institucionalização dos benefícios sociais na construtora, que viria a fazer história naquela área.

Com um muito obrigado ao Encarregado, o Ricardo retomou o trabalho, despedindo-se dos colegas e agradecimento da ajuda que tinha recebido. 

No dia seguinte apresentou-se no escritório e foi de imediato enviado aos estaleiros, onde o Fiel – sr. Jacinto, de seu nome -, disse já o conhecer e ter pedido a sua ajuda naquele trabalho. 

Indicou-lhe uma secretária, mostrou-lhe os arquivos de materiais, as fichas de controlo e os preçários para valorização das requisições e folhas de obra. 

E, a partir dali, todos os dias iriam passar por uma das áreas de materiais para que aprendesse tudo o que se usava, para que servia e como era registado. 

Eram centenas ou milhares de nomes que teria que decorar, mas tinha a certeza que tinha capacidade para isso e muito mais.

Findo o primeiro mês, numa visita de um dos engenheiros da empresa, acompanhado pelo patrão, foi admirado e louvado o trabalho do estaleiro. 

Da arrumação à limpeza, mais parecia um armazém limpo e bem organizado do que um estaleiro de obras. 

E o sr. Jacinto não poupou palavras para enaltecer a competência, dedicação e zelo do seu ajudante Ricardo.

Entretanto, numa reunião entre a Gerência e quadros principais, até ao nível de Encarregados, foi comunicada a instituição de um prémio a atribuir ao trabalhador estudante que mais se distinguisse em cada ano. 

Um júri determinaria o vencedor, que receberia, nos anos seguintes, até à conclusão do curso, uma gratificação mensal igual à remuneração mensal; isto é, ordenado dobrado enquanto estudasse e mantivesse os critérios de aproveitamento e dedicação ao trabalho. 

Seriam, ainda concedidas horas de dispensa aos estudantes que comprovassem necessidades de tempo para preparação de exames, ou trabalhos escolares especiais.

Saltemos no tempo – é nosso privilégio fazê-lo – e acrescentemos que passados trinta anos, nos quadros superiores da Empresa figuravam quatro Engenheiros, dois Advogados, um Contabilista e dois Arquitetos, que tinham sido operários nas obras da Empresa, que entretanto tinham aproveitado as ajudas e facilidades dadas aos trabalhadores estudantes. 

Acrescente-se que nenhuma obrigação ligava um trabalhador estudante à Empresa; depois de licenciado, ou concorria, como qualquer outro, às vagas abertas, fazendo carreira na Empresa, ou era livre para ir trabalhar para onde quisesse.

O Ricardo, na sua altura, foi cumprir serviço militar. 

Esteve sempre em Lisboa e ligado à Empresa, onde colaborava em todos os tempos livres da Escoa Prática de Administração Militar. 

Continuou a receber salário durante todo o tempo de serviço militar e, durante esse período foi dispensado do pagamento do adiantamento que recebera.

Juntamente com três colegas, ajudados pela Empresa e coordenados por um professor da escola primária, o Ricardo criou aulas nocturnas para que os operários, que quisessem, tirassem o exame da quarta classe. 

Nada teriam que pagar – desde os livros e cadernos ao diploma, tudo era oferecido pela Empresa – e, com essa habilitação poderiam partir para outras vidas: Contínuos, Polícias, Carris, Telefones, Motoristas, foram, entre muitas outras, algumas das actividades que se abriram aos ex-operários da Construtora. 

Muitos, porém, foram reformados nos mais variados postos da hierarquia da Empresa. 

Curiosa era a maneira como a gerência chamava a todos os que tinham passado pela Empresa: Os nossos embaixadores!...

Um desses ex-operários, cansou-se de ser jurista e reformou-se aos sessenta anos. 

Este dr. Ricardo, voltou para a aldeia que deixara mais de quarenta anos antes, mas nunca esquecera. Solteirão inveterado, viveu os últimos anos numa casa, que restaurou, lá nos altos da Terra, onde veio a falecer, já depois dos oitenta anos.

Recebia muita gente – uns conhecidos e familiares da aldeia, outros nunca vistos por aquelas paragens -. Um vínculo os unia: a Empresa onde, cada um à sua maneira tinha sido feliz. 

O doutor Ricardo dizia que acabou por fazer o seu apostolado e – talvez, acrescentava ele – melhor que alguns dos que um dia decidiram, arbitrariamente, que o rapaz não prestava para ministro da Igreja.

Era particular amigo e orientador dos estudantes da Terra, tinha as comodidades possíveis naqueles tempos, numa aldeia beirã, e estimava particularmente os seus livros que acabou por oferecer à escola, para começo de uma biblioteca. 

Foi um dos principais impulsionadores e beneméritos da Associação da aldeia e, ao falecer, serenamente, tinha a seu lado uma carta que não chegou a concluir.

Estava ao lado de um grande rolo de escritos que tinha por fora a designação de Caderno Diário – Coisas de Gente Simples. 

Era um "conjunto de Provérbios, Profecias, Parábolas, e Ditos que ouvi da Gente Simples minha conterrânea". 

O acervo foi entregue ao Presidente da Associação e, anos mais tarde, foi mostrada por um primo, visita do doutor, uma folha de papel, envelhecida que, de memória, passarei a citar: 

Parábola das correntes…

- O filho pergunta ao pai: Quem foi S.?

- Meu filho, esse foi um miserável qualquer que, durante muitos anos, andou a pôr correntes aos Portugueses!

- Volta o filho: E quem foi M.S.?

- Esse, meu filho, foi o que gastou o seu tempo a tirar essas correntes aos Portugueses!

- Oh! Pai! E que são correntes?

- Então filho, são aquelas coisas de ouro que o teu avô traz no colete para prender o relógio!...

Nota: Qualquer conotação do S. e do M. S. com ex-governantes do nosso país, pode ser mais que isso; pode ajudar a decifrar a parábola; depende do seu critério, caro leitor!...

domingo, 18 de maio de 2014

O conto do vigário


Depois de quatro anos na escola da aldeia, onde a opinião das três Professoras que o ensinaram era unânime – temos aqui uma força da Natureza e uma inteligência muito acima da média -, alguém, da casa senhorial da vila, foi a casa do João Alves e obteve o acordo dos pais para levar o rapaz ao Seminário fazer exames vocacionais com vista a uma possível matrícula naquela instituição religiosa.

O pai do João, não sendo muito de missas nem de padres, era homem temente a Deus, respeitador e honrado. 

Trabalhava, quanto podia, para proporcionar, à mulher e cinco filhos, o sustento e bem-estar possíveis. 

Porém, desde sempre, fora tido como homem ponderado, amigo de saber, competente nos trabalhos que fazia, bom falador e melhor ouvinte, na convivência e no dia-a-dia.

A mãe, Maria dos Anjos, pouco mais tinha que tempo para cuidar da casa, dos filhos e do marido. 

Tinha pais idosos que precisavam também da sua ajuda diária e como morava perto da capela era uma das suas habituais zeladoras.

Nunca lhe passara pela cabeça ter, um dia, um filho padre – isso era para quem tivesse meios, ou influências, que não a sua casa, ou família. 

Mas, não esquecia nas suas conversas com Deus e os santos da sua devoção, de deixar um pedido: que alguém olhasse por algum dos seus filhos e fizesse dele…

No dia em que o capataz da casa senhorial foi lá a casa falar acerca do João, a Maria dos Anjos percebeu que as suas preces tinham sido ouvidas e sentiu uma das maiores alegrias da sua vida. 

Já o Manuel, ficou menos eufórico e, talvez por lhe faltar o suporte da fé, encolheu os ombros e seguiu em frente. Esperemos, mas não acreditemos muito, pois há muito boa gente a empenhar-se noutras crianças. Porque haveriam de escolher o nosso João, dizia ele à mulher?

Na altura própria o processo avançou, o rapaz fez todas as provas e passados quinze dias no Seminário, vieram trazê-lo, dizendo que, se assim concordassem, o João passava a ser um dos protegidos da casa senhorial e no mês de Setembro seguinte entraria no Seminário, para fazer o curso e vir a ser, se Deus assim o quisesse, ordenado padre.

Toda a aldeia rejubilou e não faltaram os parabéns a todos: aos pais, ao João e à casa dos senhores lavradores – nunca tinham puxado por nenhum rapaz da terra -.

As coisas correram bem, lá pelo Seminário, onde esteve cinco anos. 

Porém, a vocação do João, apesar de lutas internas e do apoio do Director Espiritual, não resistiu ao derriço que, platonicamente, se foi desenvolvendo, com a Maria da Chã. 

Depois de completar o quinto ano, com aproveitamento excelente, de nada haver a apontar-lhe quanto ao enquadramento religioso, e da luta evidente que travava consigo próprio, o João informou o Senhor Vice-reitor que não seguiria para o Seminário Maior. 

Acrescentou, apenas, que a sua decisão era irreversível, a sua tristeza só a Deus confessaria e, em todo o resto da sua vida, nunca deixaria de agradecer aos seus patronos, ao Seminário, e a toda a Comunidade que ia deixar.

Na aldeia, isolava-se dias a fio. Evitava contactos com tudo e com todos. Falava, de vez em quando, com a Maria da Chã. Pensou ir fazer exames ao liceu para aproveitar na vida civil os estudos do Seminário. 

Mas, nem parecia ele: não mostrava a mais pequena sombra de felicidade…

Os anos passaram e nada do que seria previsível, quando saiu do Seminário, se realizou: não casou – a Maria da Chã, casada com um primo, emigrou para África e era mãe de três filhos -, nunca foi tratar da correspondência dos estudos nem procurou emprego compatível com as habilitações e ainda que fosse regularmente à missa nunca foi além disso nos assuntos da Igreja. 

Ficou-se, pela casa dos pais, onde acabou sozinho depois dos casamentos dos quatro irmãos. Dedicou-se à vida de marchante e, de terra em terra e de mercado em mercado, comprava e vendia gado. 

Começou, também, a beber mais que o suficiente para perder o tino.

Nos negócios era fino e, mesmo com os abusos da bebida, governava-se bem, economicamente. 

Mas todos lhe reconheciam infelicidade; não era exuberante, não comemorava os bons negócios que fazia e isolava-se sempre que podia.

No meio das feiras e mercados começou a ser conhecido pelo vigário, não tanto pelo sentido depreciativo que, por vezes, se dá à palavra, mas, talvez, por ser ex-seminarista. 

Diga-se, todavia, que não se sentia nada incomodado pela alcunha e chegou mesmo a acrescentar, ao seu nome, essa designação, quando combinava alguma coisa com alguém. Dizia: “palavra de João Alves – o vigário –“.

Um dia, numa feira da cidade mais próxima da aldeia, foi abordado por um estranho que lhe propôs a venda de notas falsas de cem mil réis: Tinha vinte notas que lhe venderia a cinquenta mil réis cada uma. Como era material de primeira era uma questão de tempo e calma e seria negócio para ganhar um conto de réis.

O João Alves olhou as notas que lhe eram mostradas de relance e respondeu: material desse nem um cego engana. Qualquer miúdo da escola faz melhor que isso. Mas, para não ser desmancha prazeres, dou dez mil réis por cada nota, ou seja, duzentos mil réis.

O passador ainda contrapôs, mas acabou por aceitar os duzentos mil réis em troca das vinte notas de cem escudos. 

E de passador nem sinais; foi prégar para outra freguesia, pensou o João que, dali foi para a taberna onde normalmente se juntavam os negociantes. Como habitualmente, bebeu e voltou a beber, até começarem a aparecer os colegas.

Chegaram, entretanto, dois irmãos a quem o João devia um conto de réis. 

Sentaram-se e depois de mais uns copos, perguntaram ao João se pensava pagar-lhes a dívida ainda nesse dia. 

O João garantiu que antes da noite iria juntar o resto que lhe faltava e, depois, esperaria por eles, ali na taberna, e pagaria a dívida. 

O João, foi o primeiro a chegar. 

Pouco depois apareceram os irmãos e os três afastaram-se para um canto, mais escuro, da sala. O João confirmou que tinha o dinheiro e perguntou se podia pagar tudo com notas de cinquenta mil réis, pois tinha andado a recolher vários pagamentos de dinheiro miúdo.

Com a concordância dos colegas o João puxou das vinte notas de cem, que tinha comprado ao falsário e começou a dá-las para a mão de um dos irmãos, contando em voz audível, até vinte. 

Depois apanhou as notas, dobrou-as e entregou-as ao outro amigo. 

Os irmãos olharam um para o outro e pensaram: Já está tão bêbado que nem reparou que nos entregou notas de cem em vez de notas de cinquenta. 

Mais uns copos e, às tantas, diz o João “vigário”: 

Para uma quantia destas e como já estamos todos bêbados, é melhor passarem-me um recibo. Eu também tenho um sócio a quem irei prestar contas. 

Ora escreve aí, Fernando, os termos do documento: Nós F… e F…., negociantes de gado, naturais da cidade de A…., recebemos de João Alves, conhecido pelo “vigário”, um conto de réis, em notas de cinquenta mil réis, como pagamento de uma dívida de gado que, em virtude disso, ficou saldada. Aos T… dias do mês de Março, na taberna do “maneta”, já bem comidos e bebidos, na cidade de A…. Os recebedores: assinaturas dos dois.

Despediram-se, com mais uns copos e apertaram as mãos, com desejos de novos e bons negócios. 

Os dois sócios nem acreditavam como tinham recebido dois contos em vez de um. 

Diz o mais velho: afinal o “vigário” não é tão afinado como dizem; mas talvez se tenha enganado, por estar tão bêbado… Mas vamos à vida. Dez notas para ti e estas dez para mim.

No dia seguinte, um dos irmãos quis fazer um pagamento com notas de cem, recebidas no dia anterior, mas, diz-lhe o dono das rezes: 

Eu não quero essas notas. Isso é dinheiro falso. Arranje-me dinheiro bom, ou não temos negócio e isto para não ir queixar-me de si às autoridades. Isto são falsificações tão grosseiras que até um cego vê, homem. Então agora deu nisto?

Ainda fora de si, foi falar ao irmão e também ele lhe disse que já tinha tido problemas com as notas de cem que, de facto, eram falsificações muito grosseiras. 

E combinaram que o melhor era irem procurar o “vigário” e tentar acertar as coisas antes de se queixarem dele.

O vigário mostrou-se muito admirado e disse: eu sei que estávamos todos bêbados, mas não me lembro de ter pago alguma coisa com notas de cem mil réis. 

Paguei-vos, o que vos devia, com notas de cinquenta mil réis, como estas que tenho aqui. Devem estar enganados; devem ter recebido esse dinheiro doutro lado. 

Mas se tiverem dúvidas podem levar o caso às autoridades que ficarão a saber que eu nunca trabalhei com dinheiro falso e estou a ser caluniado por vocês. Eu também ando bêbado às vezes, mas cuido muito bem dos negócios que faço; mas estou a ver que vocês não fazem o mesmo. Quem não é capaz não bebe. 

E, se não têm mais para me dizer, até à próxima, se houver próxima.

Os irmãos nem queriam acreditar e tentaram lembrar-se de tudo o que se passou: 

O “vigário” foi claro e falou alto, quando perguntou se podia pagar tudo com notas de cinquenta escudos. Contou as notas, uma por uma, para a tua mão e depois de dobradas meteste-as no bolso. 

Depois ditou um recibo, que tu escreveste, e nós assinámos os dois. Será que estas notas vieram dele? 

É claro homem, donde diabo haviam de ter vindo estas vinte notas de cem mil réis? 

Não tivemos outro negócio, assim tão grande, pago a dinheiro, nos últimos dias. Vamos fazer queixa dele e o juiz, lá no tribunal, é que há-de apurar se fomos enganados pelo “vigário”.

Começada a audiência diz o Juiz: 

O réu, João Alves, que não constituiu advogado, é acusado de ter dado, a estes senhores, vinte notas falsas, de cem escudos cada uma. Trata-se de um pagamento que o senhor fez a estes senhores no dia … de …, na cidade de A…., no valor de mil escudos. Confirma que fez esse pagamento?

Levanta-se o João Alves e, calma e serenamente diz: 

Confirmo, senhor doutor Juiz, que efectuei o pagamento de um conto de réis, não com notas de cem escudos, mas com vinte notas de cinquenta escudos cada uma. Por isso, nada devo a estes senhores e quanto às notas falsas que referem, não entendo o que querem dizer. 

Competirá a V. Exa registar a calúnia de que sou vítima e tratar os seus autores como a lei mandar. 

Quanto ao valor que os meus acusadores dizem ter recebido a mais – perante este tribunal dizem ter recebido notas de cem escudos cada uma e no recibo que passaram e assinaram, mencionam expressamente vinte notas. 

Receberam, portanto dois contos para pagamento de uma dívida de mil escudos - competirá a este tribunal definir o destino a dar ao valor indevidamente recebido que eu doo a qualquer Instituição de Benemerência a definir por V. Exa..

Acresce, senhor doutor juiz, que não preciso ser eu a afirmar a Vossa Excelência como tudo se passou. 

São eles que o dizem. 

Tenho o recibo da transação. Foi feito na taberna do “maneta”, escrito por um destes senhores, lido em voz alta na presença de muitos outros negociantes e assinado por ambos os meus acusadores e difamadores. E entregou o papel ao doutor Juiz.

…Perante a evidência do que leu, o juiz disse: então os senhores estão a dizer que receberam vinte notas de cem escudos? 

Pensaram que o pagador estava a enganar-se e não disseram nada, agindo de má fé. 

Passaram um recibo falso, confirmando a má fé, declarando, explicitamente, que tinham recebido notas de cinquenta escudos. 

Afinal, quem é que quis enganar quem? Isto se alguém quis enganar alguém? O que me têm a dizer, sobre isto?

…Nós não queremos enganar ninguém; mas também não queremos ser enganados. Alias não duvidámos nunca, visto que até foi aquele senhor que contou as notas e nós limitámo-nos a aceitar … o conto dele.

… Ah! Ah!...Entendo:

O CONTO DO VIGÁRIO.

Como contava o meu padrinho, estas histórias de gente simples, encerram princípios de moral e mostram que a inteligência não é exclusiva dos cultos; cá no povo aprende-se muito… são os anos de tarimba; versus os de Coimbra; dizia ele.

domingo, 11 de maio de 2014

O Manholas


Ao que se sabe, O “Manholas”lavou os pés, no dia em que foi às sortes; até aí, tinha andado várias vezes dentro de água, mas nunca ninguém o viu lavar-se.

A planta dos pés era mais resistente e dura que sola; pelo menos era muito mais durável. A dele já aguentava, sem se gastar, havia mais de vinte anos. 

Movimentava-se tanto nos caminhos como fora deles, por montes e vales, sobre pedras ou no meio de tojos e balças.

As unhas nunca foram cortadas; os usos que tinham contra todo o tipo de obstáculos, evitavam o crescimento excessivo e serviam de protecção.

Porém, os pés do “Manholas” não andavam muito encardidos; no Inverno passava dias e dias dentro das regueiras dos caminhos, a chafurdar na lama e a atravessar ribeiros e canadas; no Verão deliciava-se nos regos da água, quando alguém andava a regar, ou nas longas caminhadas que fazia ao longo da ribeira, a apanhar peixes.

No dia das sortes, lá foi com os colegas que, como ele, faziam vinte anos, à inspecção militar e, como sempre, descalço. 

Porém ninguém notou, nesse dia, falta de limpeza nos pés do Manuel dos Reis – Manholas –.

Os inspeccionadores perguntaram porque vinha descalço e o “Manholas”respondeu que não tinha sapatos, nem botas. 

Acrescentou que nunca usara tais coisas e não pensava habituar-se e, se não houvesse lá na tropa malta descalça, era melhor não o levarem para lá.

Apesar de apoucado de espírito – “poucochinho”, como diz o povo – o “Manholas”não era tolo. 

Conhecia todos os recantos, todos os buracos e grutas das redondezas da aldeia. 

Apanhava, à mão, todo o tipo de caça, peixes, cobras e lagartos, até se dizia que acamaradava com os lobos, com quem se entendia, perfeitamente. Porém, nunca deve ter visto nenhum!

Quando cruzava com alguém, não deixava de salvar – emitia alguns sons semelhantes a “vá com Deus”; porém andava, habitualmente por fora dos caminhos e gostava muito de ver, sem ser visto. 

Nunca incomodou ninguém, tal como não era importunado por quem quer que fosse. 

Vivia com a mãe, de idade avançada, num casebre da aldeia.

Um dia, vá-se lá saber porquê, o “Manholas” desapareceu. 

Procurou-se, por todo o lado, mas não se encontraram quaisquer sinais dele. 

Passados meses, um pedinte que passava pela aldeia – o “Armando do pífaro” –, disse que tinha tido notícias do “Manholas”, lá para cima, perto de Lamego, de terra em terra.

Mais de trinta anos depois, já tinha morrido a mãe do “Manholas”e no lugar do seu casebre tinha sido construída a casa de um mestre-de-obras, que fizera fortuna em Lisboa e comprara o lugar, apareceu, na aldeia, um mendigo, descalço e com barba e cabelos descomunais.

Era um homem, já ancião, que não mostrou pressa e por ali se foi demorando. 

Ia até à ribeira e fazia longos passeios, parecendo conhecer aqueles locais; movimentava-se, tão bem de noite, como de dia. 

Bebia água nos bons sítios e dormia sestas no fresco dos juncos e carriços dos lameiros da ribeira. 

Comia alguma coisa, se lha davam.

Um dia, sentindo-se mal, foi a casa da Ti’Maria Antónia, que tão bem conhecera noutros tempos, pediu uma tesoura e cortou barbas e cabelos. Lavou a cara e fixou a velhota, bem nos olhos. 

Ouviu-se, de imediato um grito: 

Meu Deus, mas tu és o “Manholas”!...

Quanto caiu em si, a velhota viu o homem estendido no chão, com os olhos esbugalhados. 

Estava morto.