quarta-feira, 9 de abril de 2014

Tristes alegrias da vida



Olá, Ti’Guilherme!... Deus o guarde com saúde!... Então como tem passado?

O velho, dobrado sob o feixito de gravetos que levava às costas, levantou ligeiramente os olhos, na direcção das vozes que ouvira e disse:

Guilherme da Costa sim, sou eu, desde que me conheço, vai para noventa e cinco anos, e, na graça do Senhor, vou bem, obrigado. 

Mas, antes que mal pergunte, quem me falou? 

É que nem tudo funciona como os meus ouvidos que, por enquanto caçam bem o que lhes passa ao alcance; já os olhos mal vêm os vultos, não distinguindo as coisas pequenas, nem quase o claro e o escuro. 

Mas a sua voz, que me perdoe, o meu amigo, não me é familiar. 

Vomecê não é cá da Terra, pois não?!

Sou, sim senhor! Quero eu dizer: sou filhote de cá, mas pouco tempo por cá tenho passado. 

Sou o filho mais velho do Amorim e da Carmelinda. E há uns bons pares de anos que não tem calhado vê-lo, quando por cá venho.

Perdoe-me as palavras; Porque não diz antes o neto do Zé Lourinho?

Era rapaz do meu tempo e falava muito comigo. 

Dei muitas jornas na vossa casa e sempre lá fui bem recebido e pago a tempo e horas. 

Vivi parte das suas alegrias quando se orgulhava de ter mandado estudar os netos e nos dizia que valera bem a pena pois iria ter, se Deus quisesse o primeiro Professor nado na nossa Terra. 

Nunca esquecerei aqueles olhos, a marujar quando se referia aos netos e aquilo que esperava deles. 

Um grande homem, o Zé Lourinho!...

Bem-vindo e bons ouvidos o oiçam. 

É o professor, não é? O primeiro que esta aldeia deu e que, pelo que me tem chegado, continua a estudar. 

Desejo-lhe toda a sorte que a minha gente não teve; nem eu próprio que, num só ano, acabei por ficar sozinho no mundo, como saberá: 

A mulher foi-se-me em Fevereiro, o filho, em Julho, lá ficou pela guerra e a minha mais nova, dizem-me que está para a Austrália, ou lá que diabo seja, mas vai para vinte anos que não tenho notícias dela. 

Conservo a triste alegria de lembrar-me do pouco de bom que tive; Isso, graças a Deus, ainda se me não varreu da memória. 

Mas magoa-me muito não saber nada: Estará viva? Terei netos? 

E quando as tristes alegrias da vida não passam de dúvidas, de lembranças, voltamo-nos para trás e que vemos?

Vazio! Até a memória nos vai faltando. 

Às vezes pergunto por pessoas que me foram chegadas e há dúzias de anos que se foram embora. 

Talvez por isso poucos são os que me procuram aqui neste fim de mundo. Chegam a passar e talvez pensando que dormito nem a salvação me dão!...

Olhe Senhor Professor, já hoje falei mais que nos últimos quatro ou cinco anos e, estou admirado, pois consigo lembrar-me perfeitamente da vossa casa, da adega onde bebi umas pinguitas, das vossas hortas, da felicidade do seu avô, quando falava de vocês. 

Eram alegrias verdadeiras que todos sentíamos. 

O Professor não é do ti’Zé Lourinho, do Amorim e da Carmelinda; É de todos nós, é nosso, da nossa Terra, da Serra. 

Não me leve a mal, mas quem sabe se hoje me deu uma das últimas verdadeiras alegrias da minha vida.

Vou passando o tempo aqui pela Figueira Regal, com os meus bichos: um bacorito, duas galinhas e um gato. Por enquanto levanto-me todos os dias e mais pelo tacto que pela visão, vou até ali ao meio dos pinheiros apanhar uns gravetos, ou alguma pernada que cai, as pinhas e umas mãos cheias de caruma que servem de acendalha do lume que me aquece. 

A minha sobrinha Conceição lava-me a roupita, e traz-me umas malgas de caldo para aquecer as tripas. 

Há anos que não vou às vendas nem à igreja.

Mas olhe que percebo perfeitamente quando o milho da tapada está na altura de desembandeirar, quando as batatas estão na altura de serem arrancadas, quando os figos, as maçãs, as cerejas, as ameixas estão maduras. 

Corto os cavacos todos com pouco mais de um palmo, tenho o canto da lenha sempre bem arrumado para não se pegar lá o lume e a lareira sempre bem varrida. 

Estes pequenos cuidados são as minhas tristes alegrias.

Ah! Deus tenha em bom lugar o maior homem que esta terra deu!... 

E ficou-se a rezar, fazendo-me um gesto de adeus, pois a voz estava embargada.

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