segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O Ti’Artur


Ao tempo, o Ti’Artur tinha trinta e poucos anos e morava no Carvoeiro, onde sempre viveu, até que, prematuramente, traído pelo fígado, se foi embora, ainda que vivendo mais que os anos que por cá andou.

Casou com a Ti’Conceição, que namorou e conseguiu trazer dos lados de Proença, duma aldeia chamada Galisteu. 

Regente escolar, deixou tudo para se dedicar ao marido e filhos, que começaram a surgir logo após o casamento. 

Primeiro uma menina, a seguir o Manelito, que ainda estou a ver, muito ranhoso e choroso, atrás da mãe, que se desdobrava a tratar dele e a aviar os fregueses da loja, nos baixos da casa, onde moravam e davam dormida ao motorista da camioneta da carreira e outros passantes.

Homem de sete ofícios e amigo de toda a gente, podia amedrontar quem o não conhecesse. 

Estava farto de perseguições de polícias e fiscais, que seguiam de perto o contrabando, em que se ocupava o Ti’Artur. 

Por trás de um imponente bigode, escondia-se um coração de enorme grandeza. 

No primeiro o Ti’Artur tinha muito orgulho, no segundo, como aliás no resto do corpo, nem pensava. 

E acabou por pagar muito caro por essa segunda atitude.

Com o seu ar de “ciganão”, negociava em tudo. 

Não escondia de ninguém a sua atracção por tudo que cheirasse a risco e a aventura. 

Tinha enorme prazer em vender “à socapa” cortes de bombazina, garrafas de Domecq, perfumes Tabu e cartas espanholas. 

Também nunca faltavam caramelos de “nuestros hermanos”. 

Gozava mais que lucrava com essas actividades.

Era o taxista da terra e nunca recusava um serviço, salvo se estivesse ausente, ou tivesse abusado da bebida e já se encontrasse no seu “estado normal”. 

Tinha respeito pelos clientes – bêbedo, não conduzia o táxi –, mas nunca se coibia de andar de mota, quer estivesse sóbrio, quer bem carregado.

A “Triumph” era um dos seus encantos. Era uma das coisas que mais estimava, que lhe dava um gosto indescritível. 

Fazia gala de percorrer a estrada, desde o Vale de Santiago até à Sanguinheira, nos fins de tarde, com escape quase livre, camisa aberta e satisfação estampada no rosto. 

Toda a gente abria caminho, à mota do Artur.

Nas várias férias que passei no Carvoeiro, tive o privilégio de ser mais um dos amigos do Ti’Artur, como eu, carinhosamente, lhe chamava; ao que ele retribuía, apresentando-me como o “sobrinho Zeca”. 

Demos muitos passeios, na mota, e nunca tivemos percalços, de maior. 

Com companhia, era cauteloso; para além de ser um excelente condutor.

A casa do velho Cavaco, onde eu ficava aboletado, era próxima da loja e um pouco ao lado da estação dos correios, onde a Zita – hóspede da casa do Ti’Artur – era encarregada. 

O meu tempo dividia-se, entre a loja e os correios.

A respeito dos dois pólos de atracção dos meus dias, o velho Cavaco, que ganhara a vida de terra em terra, como capador, tinha as suas prosas e dava as suas recomendações: 

Vais para casa do Artur namorar a filha do “Zaranza da Feteira”; é das coisas mais bonitas que por aí se encontram, mas tanto quanto sei, é dois ou três anos mais velha e sabe muito mais que tu – todo o cuidado é pouco!... 

O Artur é um homem bom, muito habilidoso nos negócios, mas com a pinga, perde-se!... Isso é mau, além de que perde o respeito por si próprio e até pelos que lhe são mais chegados: mulher e filhos.

Vai com ele para onde quiseres; és bem formado e estou seguro que nada de mal te poderá acontecer. 

Porém, não andes com ele bêbedo em cima daquela mota e evita pegar em qualquer coisa de menos legal, que tenha em casa. 

Sempre fez gala de brincar com guardas e fiscais, mas um dia queima-se – e pode chamuscar alguém –.

Na altura pareceram-me duros e até injustos, os conselhos do Ti’Cavaco; todavia, à distância dos anos e dos factos, é com o maior carinho e gratidão que relembro cada palavra, de sabedoria, dum velho amigo. 

Nunca me arrependi de ser amigo do Ti’Artur e das muitas horas de prosa que tive com a Maria Luísa, dos correios – a Zita –, mas nada posso criticar nas recomendações do meu velho hospedeiro.

Nos meses de Agosto, o Carvoeiro era um autêntico entreposto de muitas e variadas gentes, pois tinha gente emigrada em todos os pontos do mundo: no Brasil, Venezuela, América, África do Sul, Congo Belga, colónias e Europa. 

Ao ouvi-los, na loja do Ti’Artur, sentia um enorme gosto e imensa curiosidade, escutando as histórias de cada um – aventuras e desventuras, sucessos e azares, verdades e mentiras. 

Verdadeiras histórias de gente simples, tão do meu agrado e, feitos os descontos inerentes, carregadas de sabedoria.

O Ti’Artur reparou no interesse e sofreguidão com que eu escutava e perguntava tudo o que dissesse respeito ao longínquo, as considerações que fazia, baseado nos estudos da Geografia e a maneira como aguentava conversas com quem eu nunca vira, sobre ambientes onde nunca estivera.

Um dia convidou-me para uma pescaria, nuns pegos da ribeira do Aziral, no termo de Envendos, a vistas das terras de Proença. 

Iríamos de mota até à Venda Nova e dali em diante, seguiríamos, a corta mato, até à ribeira. 

Saíamos ao romper da manhã e íamos encontrar o resto do grupo, ao nascer do sol.

Conhecia apenas o Ti’Artur; fiquei a conhecer umas trinta e tantas pessoas, que faziam a sua vida em doze países diferentes. 

Devo ter feito milhares de perguntas, posso ter sido muito maçador, não cheguei a lançar o anzol à água, mas comi muito peixe frito, grelhado e em caldeirada.

Ao anoitecer, voltámos até junto da mota e, quando chegámos ao Carvoeiro, o Ti’Artur pôs-se na minha frente, e disse-me: Zeca vê que hoje, ao contrário do habitual, não estou bêbedo. 

Queria, melhor, fazia todo o empenho em arranjar uma coisa que lhe causasse o maior prazer. 

Sei que gosta muito dos convívios, como o de hoje, e fiquei encantado com a maneira como se comportou no meio de tanta gente, de tão diferentes meios e com tantas coisas difíceis de aturar e, para mim, muito difíceis de localizar. 

Agora quero ir consigo, junto do velho Cavaco, dar-lhe nota da maneira como o Zeca se tornou na atracção do convívio, o que muito me honrou; para além de poder mostrar-lhe que não estou sempre bêbedo.

Depois dessas férias, abracei o Ti’Artur três ou quatro vezes; normalmente fazíamo-lo em silêncio e com grande cumplicidade. 

Tive um choque enorme, quando soube que foi traído pelo fígado, embora não fosse, para mim, grande surpresa. 

Não voltei ao Carvoeiro; passei por lá, mas não entrei na casa dele.

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