terça-feira, 8 de outubro de 2013

Compadres

Cabisbaixo, mãos nos bolsos, blasfemando contra o burrico que, ajoujado sob os taleigos, pedia licença a uma pata para mover a outra, o Ti’Luís assomou-se ao povoado, antes do nascer do sol.

No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões. 

A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, Ti’José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.

Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas. 

Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.

Chegado à porta da igreja, junto da casa do Ti’José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta. 

Veio o Ti’José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:

Ti’José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta. 

Com sua licença passo ao caso: 

Tem o Ti’José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor. Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora. Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...

Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.

Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...

Com certeza, Ti’Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.

É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...

Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer? 

A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..

O que pode saber, Ti’Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!... 

Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça. 

De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa. Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...

É que, Ti’José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente. E sempre se trata da nossa filha, não é?..

Ti’Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.

Mas seja sincero, Ti’José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!

Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre. Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...

Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho. Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.

O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio. 

O Ti’Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc. 

A outra parte, o Ti’José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo: 

Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...

O Ti’Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:

Olhe que já hoje me deu uma boa alegria... Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!... 

E, com sua licença, vou-me andando que a minha ficou lá em casa, em pulgas.

Até mais ver!...

Até mais ver, compadre!... 

Fique com Deus!...

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