Isso não o desgostou, todavia jamais perceberia bem, porquê.
Levava nos pés o par de botas que calçara, pela primeira vez, no dia do exame.
No enxoval, que o acompanhava, iam algumas peças de roupa nova e muitas outras, feitas com aproveitamentos das fatiotas dos irmãos mais velhos.
Deixava para trás o que nunca esqueceria: a guarda do gado, a apanha das batatas e das castanhas e os outros servicitos, com que ajudava a mãe, Narcisa do Vale, mulher piedosa e temente a Deus, que conseguia gerir, como ninguém, os parcos proventos, resultantes da venda dos ovos de meia dúzia de galinhas e dos queijos de meia dúzia de ovelhas.
Dali tirava os tostões com que mercava, na “venda”, os quilitos de mercearia, as barras de sabão macaco, para a barrela da roupa, e uns metros de cotim ou de chita, com que fazia calças para os homens e saias, ou blusas, para ela.
O pai, homem de poucas palavras, trabalhava no campo, dando jornais às casas mais remediadas e cuidava de uma pequena leira, junto da ribeira, de onde vinham as batatas e os mimos da casa.
Ali e em dois pequenos lameiros alimentava as cabeças de gado e uma vaquita que iam dando leite, para fazer uns queijos e no fim do ano umas crias para vender na feira do gado.
O irmão mais velho, já servente de pedreiro, andava a iniciar-se na arte e o outro, com mais dois anos que o Jerónimo, malhava ferro, no ferreiro da aldeia, que era exímio a calçar uma ferramenta, ou a tratar os cascos e ferrar uma besta.
Viria a ser o ferrador da terra; ofício com que ganharia bem, a vida.
No Seminário teve, desde o primeiro dia – que recordou sempre com muita saudade, como fazia questão de repetir –, um comportamento exemplar.
Estabeleceu três metas, em planos diferentes: educação, instrução e formação.
Estava disposto a ir o mais longe possível em cada um destes objectivos.
Bebeu, com a maior avidez, todos os princípios e boas-maneiras que caracterizam um homem de sociedade; estudou e aprendeu quanto pôde e as suas notas eram das melhores: “barra” em Matemática e Latim, muito interessado em História e Geografia e com alguma dificuldade na Língua Materna e Retórica.
No plano da formação pode dizer-se que, ao fim de cinco anos de Seminário, estava um homem – compenetrado das suas obrigações e dedicado a todos os que o contactavam.
Em férias, na aldeia, era respeitado e acarinhado por todos, que diziam estar ali um futuro padre; não como muitos que nem sempre põem os interesses dos semelhantes acima dos seus, mas o verdadeiro exemplo de pessoa bem formada e talhada para aquilo que se propunha.
Não passou despercebido à Maria Luísa, moçoila um ano mais velha, que desde os bancos da escola o olhava de maneira especial e diferente das outras colegas.
Lembrava o rosto cândido e sereno, que mostrava sinais de barba, embora mantivesse muita serenidade e paz de espírito.
Mas não o via padre...
Nunca se soube bem porquê, nem por que forças, encontraram-se, num dia de Verão, à tardinha, junto à fonte.
Anos mais tarde, a Maria Luísa viria a confidenciar que se fazia encontrada, mas tinha sempre a sensação que o Jerónimo não estava para aí virado, nem entendia os seus propósitos.
Cruzaram olhares, trocaram duas ou três palavras de circunstância e separaram-se; mas ficaram, ambos, com uma mesma certeza: nem a moçoila ficaria solteira, nem o seminarista havia de ser padre.
Como dois vulcões, em plena erupção, separaram-se no final das férias, indo o rapaz para o quinto ano, no Seminário, e a menina para a Escola do Magistério.
Passado um ano, de grandes e penosas lutas interiores, o Jerónimo completava o quinto ano e anunciava ao Vice-reitor que não transitaria para o Seminário Maior, pois já informara o seu director espiritual que não seria ordenado padre.
A Maria Luísa ia para o segundo ano e concluiria o curso no final do ano.
Embora nada de concreto se tivesse passado, ou sido acertado entre ambos, queriam os dois o mesmo.
Nunca o disseram, sendo, com alguma surpresa, que a menina veio a saber, que o Jerónimo decidira abandonar o Seminário.
Quase a completar dezoito anos, o Jerónimo trabalhou na cidade, como marçano e ajudante de cartório, colaborando, activamente em todos os serviços da paróquia, quer acolitando o vigário, quer organizando cerimónias, mas sempre fiel ao rumo que traçara, antes de tomar a decisão, não muito bem aceite pelos pais, de abandonar a carreira eclesiástica e que consistia em fazer exames de equivalência para transição para o ensino oficial e matricular-se na Escola do Magistério, para vir a ser Professor Primário.
Nas férias da Maria Luísa, dado que o Jerónimo já não tinha férias, apenas por duas ou três vezes se encontraram, lá na aldeia.
Num desses fortuitos encontros o rapaz manifestou os seus intentos de que se conjugassem para que fizessem projectos de vida.
Propunha o namoro que os levasse, quando fosse altura disso, ao altar.
A menina agradeceu, ternamente, a primeira prenda do namorado, dizendo apenas que acabava de ter a maior alegria da sua vida.
Disse apenas uma frase: sempre te amei e seremos muito felizes, tenho a certeza; conta comigo!...
A vida ia correndo, de feição; durante o ano seguinte, o rapaz arranjou emprego na biblioteca pública e teve aulas, dadas, graciosamente, por um professor do liceu, com quem costumava trocar impressões e aconselhar-se.
Candidatou-se, no ano seguinte, aos exames do segundo e quinto anos e, sem surpresa, viria a obter dispensa das provas orais, em ambos.
Fez exame de admissão ao Magistério, vindo a ser, dois anos depois, Professor.
A noiva já trabalhara, numa aldeia não distante da cidade, como Professora Agregada e começou a fazer parte dos planos a aproximação do futuro casal, mas o serviço militar reclamava a presença do Jerónimo.
Esteve em Tavira durante seis longos meses, onde teve a instrução de base e foi promovido a cabo miliciano, transitando em seguida para a sua cidade, onde cumpriria dois anos de serviço.
Liberto do serviço militar, combinou o casamento, que viria a ser uma cerimónia íntima e simples, na igreja da aldeia.
No Outubro seguinte eram ambos nomeados para escolas da terra, masculina e feminina, onde, ao abrigo da lei dos cônjuges, seriam colocados como Professores Efectivos.
Durante os oito anos seguintes, tiveram cinco rapazes e uma menina que era o desvelo de pais e irmãos; a Maria da Graça, que vinte e cinco anos mais tarde cursaria medicina e viria a ser uma distinta pediatra.
Três dos cinco irmãos foram padres, sem grande interferência do pai, como fazia questão de salientar o velho Professor Jerónimo.
E acrescentava, com muito orgulho: são vinte e sete ex-alunos, só de minha parte, já que da Maria Luísa foram mais oito, que se ordenaram padres.
Morro em paz; tenho a missão cumprida!...
Ao longo de quarenta e cinco anos de serviço, o casal de Professores iniciou a vida e a carreira de centenas de vultos das letras e da sociedade do País.
Para além dos trinta e cinco padres, que, salvo duas justificadas excepções, estiveram nas cerimónias fúnebres dos mestres, deixaram magistrados, médicos e professores, entre uma plêiade de gente grada e, certamente grata, espalhada por quase todos os continentes.
Em sua memória, numa pequena lápide, colocada junto da fonte, lá na aldeia, o povo escreveu: Homenagem aos Professores Jerónimo e Maria Luísa, que nasceram e viveram nesta terra, onde faleceram em 1968.
PS.: A lápide foi depois completada, pelo desvelo e engenho do Presidente da Junta de Freguesia: “e foram “pais” de nada menos de trinta e cinco padres”.
O povo, claro, passou a dizer a “tabuleta dos 35 padres”.
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