segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Os “travancas”

O “Ti’Manel Balejo” descia da aldeia até às azenhas do Vale do Corisco a qualquer hora do dia, ou da noite, durante todo o ano. 

Medo era palavra que nunca conhecera, segunda a sua própria expressão.

Pouco mais fazia do que moer o pão da aldeia e beber copos de vinho, nas tabernas. 

Não tinha, nem nunca procurara, fregueses de fora da terra, e ainda repartia o serviço com três moleiros que vinham buscar os taleigos dos fregueses; farinha mais fina, para uns bolos, ou uns caldos, para as filhós do Natal, para um casamento ou baptizado, não saía das mós das azenhas dele.

A alcunha vinha-lhe dos antepassados e aplicava-se só a três dos oito irmãos – nunca conseguimos apurar nada relacionado com tal designação –. 

O sobrenome e apelido, verdadeiros, eram Marques Morcego. Pela quantidade de vezes que dizia para o macho: anda lá, alma do diabo!... era conhecido pelo... "alma do diabo"!...

O animal, que transportava os taleigos, era, nas palavras do dono, mais manso e menos bruto que ele.

 As raparigas, e muitas mulheres casadas, não passavam, junto do moleiro, sem uma chalaça:

Cortaste o cabelo para ficares mais bonita?!... “Atão” porque não ficaste?!... Tens dois filhos?!... “Atão” o teu “home” não é capaz de te fazer mais?!... E assim por diante, neste género de prosas, muitas vezes bastante inconvenientes.

Até já tinha experimentado, no focinho, as costas de muitas mãos, como comentavam as mulheres mais ousadas, na fonte, ou na lavagem da roupa.

Um dia, na taberna da terra, juntou-se com um caldeireiro que passava muitas vezes pela aldeia e, no meio de uns copos, entraram de chalaça. 

Na conversa, o moleiro atirou ao Manel da Rosa: 

Olha lá, não passaste ali na ladeira das Taliscas, a caminho de Alcaravela, na noite de anteontem?!... 

Eu não, Ti’Manel Balejo, não sou como os morcegos, nem como os moleiros; a essas horas estou na malhada, com a minha Rosa, a fazer o que não encomendo aos outros.

Pois olha que passaram, bem na minha frente, uns “travancas” que faziam uma restolhada dos diabos, cheiravam mal que tresandavam, ladravam como cães e iam com uma pressa maior que a que levam os condenados para o Inferno. 

Desapareceram, para os lados de Alcaravela. Lembrei-me de ti!....

Olhe, Ti’Manel, sempre ouvi dizer que essas almas penadas são, normalmente de alguém que tem de prestar contas pelo que tirou aos fregueses.

Uns têm que amassar o pão ao Diabo, outros, têm de visitar sete vilas acasteladas, por noite, e outros, encarnam bichos malcheirosos e muito mal recebidos pelos cães das aldeias.

Pode crer que nunca vi nada dessas coisas, nem acredito nelas, mas se o povo o diz, quem sou eu para não o aceitar.

Fazes bem, homem. 

Olha que se o meu macho falasse, poderia dizer que não é homem, nem animal manso, que aceita um diabo daqueles no corpo; aquilo é coisa do outro mundo, que nos deixa sem pinga de sangue, desaparece, tal como apareceu, e pronto!

Olhe, Ti’Manel, os cães do Luís Matos e os do seu sobrinho, Joaquim, apareceram, ontem, junto de casa, logo pela manhã, todos mordidos e arranhados?!... 

E o Augusto Macedo ao chegar à horta do Valdeira, deparou-se com um cenário dos diabos: o milho todo arrasado, a terra toda remexida e a própria represa furada! 

Não lhe foi muito difícil verificar que havia muitas pegadas de javardos e de cães e que ali houve luta da grossa. 

Pelas pegadas e estado das plantas, via-se, perfeitamente, que os estragos já datavam de algumas horas atrás!

Aquilo, Ti’Manel, era um tropel de cães, javardos e crias, que andavam todos engalfinhados e o lume que deixavam no ar, mais não era que o luzir dos olhos em plena escuridão. 

Certamente o seu macho teve menos medo que “vomecê” e, também estava menos bêbedo, o que o terá ajudado a compreender que a luta a que assistia, não era dele. 

A si, na altura, só lhe cheirou mal; ao macho foi o fedor que o ajudou a perceber o que se passava.

Bem, desta vez és capaz de ter razão. 

Mas olha que uma noite, entraram-me pela porta da azenha, numa restolhada medonha: havia mesmo gritos e ais, no meio de grande alarido. 

Pouco depois era lume por todo o lado e até conseguiram travar as pedras e pararem os engenhos, ao mesmo tempo que faziam desaparecer todo o cereal da maceira. 

Coisa dos demónios; como tal nunca tinha visto e, de repente, tudo ficou calmo e voltou ao normal.

Oh! Ti’Manel Balejo, sou caldeireiro e também me engrosso, às vezes. 

Mas olhe que nunca me esqueci de encher a tremonha da azenha de grão, porque não tenho azenha, nem tenho grão. 

Porém, não é o seu caso, Ti’Manel. 

Nessa noite, bebeu uns golitos a mais da pinga da cabaça; encostou-se, no catre, sem encher a maceira de grão e acordou estremunhado, com as pedras a roçarem uma na outra, sem grão de permeio, a alta velocidade e faiscando, por todos os cantos e lados... teve sorte em não se lhe ter incendiado a manta com que se cobre.... 

Os “travancas”, estão, há muitos anos, na sua cabeça.

 Nas histórias da sua infância.

Já agora, o Ti’Manel pague lá mais um copito e tenha cuidado quando descer hoje a ladeira das Taliscas; choveu e o barro apegadiço está muito escorregadio, pelo que deve ter cuidado com o macho, não o carregando muito. 

Passe pelas brasas, antes de se fazer ao caminho, pois se já tiver a coisa curtida, não vai encontrar travancas, nem bruxas, nem lobisomens, ou almas do outro mundo. 

Faça o caminho, devagar, assobiando, acompanhado pelo seu Jeremias, que nada mais quer que caçar um ou outro coelho, mais desprevenido, ou alguma ratazana, lá nos contornos da azenha.

No outro dia, procurou o caldeireiro, para lhe agradecer os sonhos que tinha tido, no catre e dizer-lhe que os copitos do dia anterior foram bem empregados. 

Mas o caldeireiro já partira, errando, de aldeia em aldeia e bebendo aqui com uns, além com outros!...

Seguiu a sua vida…

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