Por cima dos armazéns de tapetes e alcatifados da CUF, num prédio antes da R. de Santa Justa, subindo de S. Nicolau para a Praça da Figueira, abria-se a porta nº 150, da R. dos Douradores; e pela escada larga e pouco iluminada, mesmo em pleno dia, subia-se até ao quinto andar, direito, onde se situava a pensão da dona Prazeres.
A “família” era formada pelos sete hóspedes com dormida, tratamento de roupa, banho semanal, jantar e pequeno-almoço; seis comensais para almoço; duas criadas; a patroa e o sr. Cardoso, contramestre numa alfaiataria da rua de S. Nicolau, especializada em fardamentos de gala, para os três ramos das forças armadas.
Este sr. Cardoso, era o homem da casa, desde que Estefânia Prazeres deixara o ti’Manel Rocha, artista calceteiro dos belos passeios da Lisboa desse tempo, e escolhera este snob, empertigado e exemplar de todos os ricos atributos do verdadeiro “chulo”, que ostentava o relógio com pulseira de ouro, o trancelim no colete de fantasia e uma grande “cachucho” no dedo, junto da aliança e, no mindinho da mão direita, um anel com brasão, comprado num qualquer antiquário e empenhado por alguém que, mais necessitado de dinheiro que de pergaminhos, se desfizera da nobreza.
Escrevemos dona Prazeres, com letra minúscula, embora tenhamos a certeza que o sr. Cardoso já não poderá ler estas linhas e, se pudesse, já não teria aquela arrogância que o caracterizava, do alto dos seus cinquenta e muitos, naqueles anos sessenta do séc. passado, para exigir tal tratamento para “sua mulher”.
Caso contrário, em defesa da sua “dama”, era capaz de armar escândalo de todo o tamanho, se não exigir que, por faltar ao respeito, fosse dispensado lá de casa.
A dona Prazeres que, vinda dos lados de Penalva do Castelo, serviu casas de muito boas famílias, casou com o ti’Manel Rocha, de quem não teve filhos, talvez com dúvidas na sua paternidade, e conseguiu, um dia, ficar com aquela casa de hóspedes de uma velha patroa, que se finou, num dia de Todos-os-Santos e nunca mais deixou de lhe merecer uma mão cheia de flores no cemitério do Alto se S. João, e uma missa em S. Nicolau, em cada ano que passava. Chamava-lhe madrinha.
Até que numa bela ocasião, como ela orgulhosamente contava, encontrou “o seu homem”, muito fino e de muito boas famílias, mas sozinho.
Resolveram fazer vida a dois; que, nem ela nem o seu homem precisavam nada daquilo, mas, gostos são gostos e o destino assim o quisera.
E, enlevada, perguntava se estava a gostar dos charutos, pois o sr. Barata, da casa Havanesa, mandou-os com muitas reservas, porque “a marca que fumava habitualmente tinha-se esgotado e, por uns dias, fazia todo o gosto em oferecer, ao senhor, aquela caixa, para, também, saber a sua opinião”.
Com a maior das afectações e o snobismo que o caracterizava, o sr. Cardoso disse que mandasse a criada dizer que “o senhor, por uma vez sem exemplo, aceitava a substituição, mas esperava que fizesse tudo, para conseguir os habituais charutos”.
Durante cerca de um ano lá na casa de hóspedes, nunca vimos sair o “casal”; pois o sr. Cardoso saía todas as noites, para um cabaret ali atrás do teatro Dona Maria e, ao cair da meia-noite, mandava chamar um táxi para percorrer os menos de duzentos metros que o separavam de casa.
Com os hóspedes, era muito reservado, e apenas os professores e os irmãos Galvão, Joaquim e Carlitos, lhe mereciam alguma atenção.
O hóspede mais antigo da casa era o Fernando, que respondia pela alcunha de Pimentel e trabalhava, como empregado de balcão, num armazém de tecidos junto do cinema Lis, ali aos Anjos.
Homem na casa dos trinta e muitos, natural do Porto, era dos que mais sabia sobre o senhor; seria o único que conhecera o Ti’Manel Rocha, a rondar a casa, antes de se aboletar lá António Santos Cardoso, chegado com uma malita de roupa e, como ele gostava de dizer, “sem ter onde cair morto e comendo que nem um alarve, para compensar fomes antigas; … quem o viu e quem o vê; por certo já se esqueceu que ainda lhe cheguei a emprestar, duas ou três vezes, vinte paus!...”
Naqueles tempos, eu o meu colega, prof. Agrela, o Fernando e o Américo, do quarto ao lado e o Nogueira, empregado na mercearia fina, Casa Tavares, ao lado da Confeitaria Nacional, na praça da Figueira, percorríamos muitas vezes os cafés da Baixa, as Ginjinhas e os Eduardinhos, as tascas da rua das Pretas, a taberna do Zé da viúva e acabávamos por ver quase todos os filmes dos seis ou sete cinemas das redondezas.
Também os bilhares do Martinho, do Paladium, dos cafés da rua da Prata e da rua 1º de Dezembro, entre outros – e eram tantos os lugares de convívio na Baixa daquele tempo –, eram lugares de passagem e permanência obrigatória.
Por fim, também as mesas daqueles cafés – dos que deixavam estudar, já se vê –, serviram de local de preparação de exames para liceus e faculdades; um dos recursos quando o dinheiro não abundava e juntávamos o útil ao agradável.
Depois, por volta da meia-noite, era chegar à esquina de Santa Justa e chamar o “sereno”, que estivesse mais perto.
Logo ele batia as palmas, com o sinal apropriado para que o colega da nossa zona nos viesse abrir a porta.
Ali nas imediações de Santa Justa, até S. Nicolau, chegavam a juntar-se seis guardas-nocturnos, que acabavam por nos conhecer a todos.
Tudo ia decorrendo normalmente lá pela casa de hóspedes quando eu e o outro professor nos despedimos; eu que dali a dois ou três meses ia para Mafra, fazer o curso de Oficiais Milicianos, arranjei um quarto na calç. da Graça; o meu colega ocupou um quarto disponível nas instalações da escola.
Viemos a saber que houve grande agitação lá pela casa da dona Prazeres, pois o sr. Cardoso tinha chamado a polícia, para revistar tudo e todos, queixando-se que lhe tinham roubado um malão que tinha debaixo da cama, onde dizia guardar avultados valores em dinheiro, peças de ouro, colecção de moedas de prata e ouro.
Ao todo, avaliava o furto em mais de dois mil contos – uma pequena fortuna para a época.
Diligências e mais diligências que nem a polícia, nem nenhum dos hóspedes, nem as criadas e muito menos a dona Prazeres levavam a sério; mas todos colaboravam na farsa de que o autor se mostrava muito compenetrado.
Não era segredo para ninguém que uma tal Lolita, bailarina e “décor-residente” no “Passapoga”, passava os serões com o sr. Cardoso, no cabaret junto do teatro, aumentando, em cada dia a conta do “seu querido Cardoso”.
Das nove à meia-noite, tinham mesa reservada e garrafa de champanhe à disposição; depois a “estampa” ia ganhar a vida, no trabalho, e o “velho” ia para casa, deixando a conta cada vez mais carregada.
Quando as coisas deram para o torto, isto é, a mesada da Prazeres, junto ao ordenado de contramestre da alfaiataria, começaram a não satisfazer as necessidades da companhia do cabaret, começaram a ser regulares as visitas do sr. Cardoso às casas de prego, para arranjar mais dinheiro de suporte para “os pedidos” da espanhola.
Ora sem nada a entrar e com as saídas regulares, não duraram muito tempo as reservas do amante e, sem dinheiro, não havia mais amor.
Restava a encenação do furto para justificar a sublimação dos valores que, com tanto gosto e a princípio ingenuidade, a boa dona Prazeres lhe tinha confiado.
Quando a espanhola deixou de passar lá no cabaret, o “benfeitor” começou a passar os serões em casa, mais conversador com os hóspedes, mais solícito para a patroa e saindo, de vez em quando, para ir ao teatro ou ao cinema com a mulher e, muitas vezes, passando pelos cafés a ler o jornal e tomar a bica como qualquer vulgar cidadão.
Até levava a dona Prazeres ao café! Dizia-me, espantado, o Fernando, que continuou na casa mais uns bons anos e acabou por ser o decifrador de todos os “investimentos” do Cardoso.
Soube, ainda, que mais tarde a dona Prazeres não resistiu à sua angina de peito, ficando o sr. Cardoso, já velho e reformado, a viver o resto dos dias numa modesta casa de hóspedes, que o Fernando “Pimentel” lhe arranjou, lá para os lados dos Anjos, junto da loja onde continuava a trabalhar.