quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O salto



Os tempos medianos do século passado, especialmente no segundo terço, correspondentes a antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, pediram ao povo, sobretudo aos de mais fracos recursos, sacrifícios incalculáveis e deixaram marcas físicas e psicológicas, indescritíveis. 

Os países da Europa, desde os que estiveram directamente envolvidos na beligerância, aos que não entraram nos mais mortíferos e exterminadores combates da História, impuseram às suas populações custos inestimáveis e imprevisíveis, quer em vidas, quer em meios.

Portugal, ao tempo governado pelo auto-denominado Estado Novo, fortemente tutelado pelo regime Salazarista, não tendo entrado, directamente, nos mortíferos combates, nem tendo sofrido destruições maciças de equipamentos, usou a sua neutralidade, bastante ambígua, para fortalecer as reservas de ouro nos seus cofres e controlou o desenvolvimento das gentes, quer limitando ao mínimo as liberdades, quer cultivando a política definida pela trilogia de “Deus, Pátria e Família”. 

Finda a Guerra, enquanto por essa Europa se rasgavam novos horizontes, floresciam indústrias, cresciam escolas e universidades, em Portugal continuou a defender-se, até ao último folgo do então já anquilosado ditador, a cultura da casinha, do porquinho e da hortita, para criar os filhos e sobreviver. 

Até que, como seria inevitável, o país foi, inesperadamente, varrido por movimentos de libertação – classificados de terroristas, pelo Governo –, nos diversos territórios ultramarinos. 

Nos começos dos anos sessenta, os nossos jovens foram chamados às fileiras e enviados, “rapidamente e em força”, para os diversos teatros de operações. 

Mas uns quantos que dispunham de meios, conhecimentos ou motivações contrárias, recusaram a chamada e exilaram-se, por esse mundo fora. 

Os partidos, até então amorfos, terminaram a letargia e começaram a desenvolver a sua acção, quer ajudando na fuga dos que queriam escapar-se a uma guerra com que não estavam de acordo, quer começando a cativar a militância da juventude sempre generosa e ávida de novidade e aventura. 

Paralelamente a chamada para os países onde se começava a ganhar bem, onde era desejada a nossa mão-de-obra não qualificada, nomeadamente a França, Alemanha e Luxemburgo, falou cada vez mais alto e, houve regiões onde, no espaço de uma década, a população activa ficou reduzida a pouco mais de metade. 

No regresso das guerras coloniais eram pouco encorajadoras as oportunidades com que se deparavam os ex-militares. 

Restava, na maior parte dos casos a saída para outras terras, outras economias, outro estado de desenvolvimento mais compatível com o mundo novo que a recém iniciada rede de televisão ia espalhando por toda a parte, acabando por mexer com todo o “status quo” anterior. 

Mais uma vez, o que o regime sempre se recusou a admitir e não se preocupou em prevenir, aconteceu. 

Nos finais de Abril de meados dos anos setenta, a pressão do esforço das guerras, o descontentamento dos que tinham que ir ganhar a vida para outras terras e os ideais correntes que, desde Maio de sessenta e oito, em seis anos, portanto, tinham já invadido o país, mas não tinham conseguido vencer a blindagem do palácio de S. Bento, sede do Governo, que mesmo após a morte de Salazar, não deu sinais suficientes de preocupação com a angústia das populações. 

Uma “revolução sui generis” trouxe, finalmente, a nova esperança a muitos portugueses. 

De crise em crise, com percalços resultantes da falta de gente preparada para as tarefas da governação, com o regresso de centenas de milhares de portugueses, das guerras, dos territórios abandonados pelas forças armadas e de alguns que andavam exilados, passaram-se trinta e cinco anos e, qual ciclo menos brilhante, vão-se avolumando os problemas que as parcerias com sociedades mais evoluídas, as carências estruturais de meio século de hermetismo, as aberturas de fronteiras e a elevação dos níveis de instrução, teimam em fazer perpetuar-se por cá. 

Chegámos a níveis de confiança, de auto-estima, de tranquilidade e de bem-estar muito abaixo do que seria justo esperar, ainda há poucos anos. 

No fim dos anos sessenta, por casamento, tornei-me cidadão adoptivo de uma aldeia da Beira Alta, paredes-meias com Espanha, entre a Guarda e Vilar Formoso. 

A minha actividade de Professor, a família e o gosto por aquelas terras e gentes, bastante diferentes das da minha região da Beira Baixa, levaram-me a passar por lá, bastante tempo de férias. 

Passei a gostar daquelas gentes e dos seus costumes. 

No Rochoso, uma aldeia sede de freguesia, do concelho da Guarda, escondida dos ventos do norte e leste por um pequeno maciço granítico, tinham habitação, ao tempo, umas duas centenas de famílias, se bem que talvez metade lá não estivesse todo o ano – ausentes, principalmente em França e Alemanha. 

Nos meses de Agosto a população ultrapassava o triplo dos residentes habituais. 

Nos tempos que por ali passei, apercebi-me que as principais actividades dos lá residentes, gravitavam entre o levar “a salto” novos trabalhadores para os países da Europa, ou levar e trazer “a salto” o contrabando que, em toda a raia, atingia níveis elevadíssimos e era fonte de subsistência para muitos passadores, que davam o corpo ao manifesto e faziam engordar os verdadeiros contrabandistas. 

Desse modo, “o salto”, era das poucas actividades rentáveis, além do dinamismo que ia resultando do fluxo de dinheiro que chegava regularmente enviado por emigrantes, sobretudo de França. 

Famílias inteiras, desde crianças a velhos, procuraram meios de sustento e dinheiro que na sua terra escasseavam. 

A minha curiosidade, confiança e amizade com contrabandistas e passadores, forneceram-me inúmeras histórias daquela gente simples, tão do meu gosto, e enriqueceram-me com tão aperfeiçoada e elaborada técnica de dissimulação e poder de análise e observação de uma actividade que penso terá existido desde que o mundo é mundo e cujo fim não se prevê. 

Só que os homens, verdadeiros burros de carga, foram trocados por automóveis, camiões, lanchas rápidas e aviões.

Sem entrar no relato das peripécias e jogos do gato e do rato, entre guardas e contrabandistas, pode escrever-se um verdadeiro tratado sobre o conjunto de preceitos que preparam uma acção de transporte de mercadorias através da fronteira. 

Adiante-se que no contrabando, está sempre presente um pacto de sangue: o contrabandista presa a dignidade, a palavra, a audácia e o cumprimento da missão acima de tudo. Não rouba e faz gala da sua dignidade e competência. 

Quase todos terão sido presos, nos calabouços do lado de lá, ou já na nossa terra, mas têm um único comentário: fui preso “n” vezes, mas por roubar…”toque-le”, como me dizia, sempre o Zé Lines. 

Continuo a honrar a memória daquele meu amigo, acreditando em tudo o que me dizia. Vi que o código de honra daqueles homens era o seu bem supremo e, pela sua defesa eram capazes de quase tudo. 

Assisti a encenações de alibis para fugir às acusações de Guardas lá da terra e fiquei convencido do poder de imaginação e da capacidade de dissimulação daquelas gentes. 

Esconder uma carga ou uma pessoa é uma arte e quer contrabandistas quer passadores cultivavam-na até à perfeição, tornando-se exímios artistas...

Naqueles tempos, atravessar a fronteira com uma carga de vinte e cinco quilos representava um encaixe de vinte escudos; perder a carga ou ser apanhado pela Guarda era uma dupla humilhação: deixar de receber a paga, manchar a sua dignidade de contrabandista e muitas vezes deixar de ser convidado para novos trabalhos. Tudo isso aguçava o engenho. 

Já na outra actividade de passador de trabalhadores clandestinos, desde as nossas terras até França, ou Alemanha, os níveis de dignidade eram muito menores. 

A sabotagem, as guerras entre passadores e simples engajadores e o abandono antes do final do serviço eram frequentes. 

Os empréstimos de dinheiros e a cobrança de juros usurários eram o pão-nosso de cada dia. 

Enquanto entre os contrabandistas poucos crimes foram cometidos durante rixas ou deslealdades de “chibos”e “bufos” , acabaram na ponta de muitas navalhas, ou debaixo de agressões fatais, bastantes passadores de emigrantes.