O meu Luís Manuel – para nós o “manecas” – nem parece filho de quem é: o nosso pai era um homenzarrão, sanhudo e possante; a nossa mãe, avantajada de corpo e rija que nem um penedo.
Nem um nem outro utilizaram muito os dotes físicos que a natureza lhes deu, pois, felizmente, não precisaram de trabalhar muito para governarem a vida.
Assim caracterizado pela irmã “Vangelina”, o Ti’Luis Manuel, sempre viveu lá por Abrantes, na companhia de uns primos, para aprender a arte de barbeiro e cabeleireiro, com uns senhores que tinham lá um “salão”.
De compleição física próxima do raquítico, sempre adoentado, com problemas de respiração e erupções na pele, desde cedo começou a claudicar das pernas, derivado à má circulação do sangue.
Era o diagnóstico que o meu avô fazia do homem que ainda cheguei a conhecer e que hoje é base da personagem central desta história.
Quanto ao ofício que lhe mandaram ensinar, mal empregado tempo e dinheiro; nunca tirou um freguês que fosse aos mestres que o ensinaram e mesmo aqui na terra, contra os ciganos e o Alberto que foi curioso lá na tropa, também não convenceu ninguém – homens, é claro; pois mulheres que cortem o cabelo cá na nossa terra só a dele, enquanto foi viva. E quando por aqui passava uns dias, não era o homem que lhe fazia a permanente; ia a Mação ao cabeleireiro!...
Talvez porque não gostasse daquela família, o meu avô rematava assim a sua descrição do que ele baptizara de “cantecas”: Minava-se por andar atrás da música, lá da Chainça, e ainda andou a aprender a tocar qualquer coisa.
Trouxe, para aí, restos de uma viola pequenita, que ele toca com uma fita esticada num arco de ferro; uma outra guitarrinha, parecida com os cavaquinhos que se ouviam pelos arraiais e feiras, a que ele chama de “banjo” agrada-me mais, mas o que nós queríamos era que se ajeitasse com a concertina que nunca deu uma moda completa, nas mãos dele.
Com a morte da mulher, acabou por vir para aí, para a casa que foi dos pais, lá no Cimo do Casal e que nunca partiu com a irmã que sempre viveu por fora.
Na cidade não deixou saudades: homem bom, inofensivo e apagado, para satisfazer os caprichos da mulher foi vendendo, uma atrás de outra, até à última, as courelas herdadas dos pais. Quando ficou só e ninguém quis saber dele, recolheu-se aqui.
Sempre achacado e de humor muito fraco, também nunca foi ajudado pela minha cunhada, dizia a “Vangelina”, quando falava, para alguém, do irmão.
Ela, a única coisa que sabia fazer era luxar e, em casa, não mexia uma palha; coitado do meu irmão não teve a sorte que merecia e, agora que o que ele tinha a fazer era juntar-se a nós, prefere passar mal, lá na terra, onde nem sequer tem quem lhe lave a roupita.
Nestes comentários está ela enganada, dizia o meu avô, pois tem quem lhe lave a roupa e lhe aqueça os pés e a irmã que se cuide, pois o catatau que ela queria fazer a alguma coisa que ele ainda tem, já outra o terá feito.
E olha que aqueles que nunca trataram dele e se mostram agora tão caridosos é por verem que se arriscam a ficar sem nada do que é dele.
A “Chica” pode parecer apoucada, mas está bem aconselhada e não vai deixar lã pelos outeiros. Há-de pagar-se bem pelas suas mãos; já alguém tratou de tudo.
A princípio ainda abriu a salita na varanda do Ti’Manel e montou lá a cadeira que trouxe de Abrantes.
Tinha as navalhas bem afiadas e a máquina de cortar o cabelo sempre bem oleada e sem arrepelar nada.
Mas, levava dez tostões por cortar a barba e dois mil réis por fazer a tijelada ao cabelo.
O Alberto cobrava cinco tostões pela barba e quinze pelo cabelo.
O barbeiro não tinha freguesia; ia tudo ao curioso!... Só a parentes próximos, ou em vésperas de festas fazia uns servicitos.
No resto dos dias, metia a cabeça entre as mãos, horas a fio; depois ia até à fonte encostado ao cajadito que lhe aliviava as pernas e, ainda com sol, recolhia a casa.
E por que lhe chamam “cantecas”, avô?
Isso não tem grande história. Em pequeno a família, chamava-lhe “manecas”, derivado ao nome dele – Luís Manel.
Aquela gente sempre puxou para a alta; o avô dele passava o tempo nas tabernas, nas festas e a vender jogo branco; o pai não deixou nem metade do dote que recebeu e a vender landum ninguém lhe ganhava; ele, coitado, fez o que pôde e, como os seus, acaba por não acrescentar nada ao que lhe deixaram.
Mas a ele ainda podemos justificá-lo: nem a saúde, nem a mulher o ajudaram; já os outros podiam ter juntado uma das melhores casas da terra e, nada!
Mas vamos à alcunha: Em rapaz parece que tinha queda para a música. Acho que chegou a aprender lá na Filarmónica da Chainça.
Quando por aqui se fixou e ainda tinha alguma alegria de viver e se podia mexer melhor, sanfonava horas seguidas nos instrumentos que trouxe. Às vezes até cantava algumas modas.
E, vai daí, o povo tem destas coisas, houve um qualquer que lhe terá chamado “manecas cantecas”, depois era mais simples só “cantecas” e assim ficou!..
Cá por mim, não é parvo de todo e bem aproveitado até penso que poderia ter tocado qualquer instrumento. Às vezes esta gente do povo tem entoação e bem ensinados sabem aprender.
Mas ninguém nasce ensinado e há-de morrer mais uma vocação escondida, pois o padre João já disse que ele até sabe muitas coisas de música; parece que conhece as notas, mas não foi puxado.
Acabou por ficar entrevado, aos cuidados da “Chica” que o amparou nos seus dias e sofrimentos. Manteve sempre boas maneiras e conversa muito atinada.
Lembro-me de um dia o meu avô me dizer, quando fui a casa num feriado do colégio:
Quem está mal é o Ti’Cantecas; qualquer dia ainda faz alguma asneira, pois o homem está a sofrer muito. Ando a ver se lhe vou dar uma palavrinha.
Não chegou a tempo; dois dias depois, a “Chica” encontrou-o pendurado numa corda, num dos barrotes da loja.