A oliveira, se bem que árvore secundária na zona, ocupava, nos meados do século passado, lugar importante na arboricultura e pesava muito na economia daquelas terras do centro do País.
O azeite “chave dourada”, da região de Mação, era afamado, desde que, em tempos passados, segundo cronistas locais, chegou à mesa do Rei.
Os olivais, lenta mas continuadamente, iam sendo substituídos pelos pinhais, tal como anos antes, no início do século XX, tinham ocupado os soutos de castanheiros, que, ao tempo, estavam, praticamente, extintos.
Nos anos quarenta e cinquenta havia, ainda, muitos lagares de azeite, dispersos nas margens das ribeiras, em locais de difíceis acessos.
Muitos estavam em vias de abandono, porque apertava o rigor das normas de higiene e os métodos ancestrais começavam a ser substituídos por força motriz.
Na Serra, tínhamos restos de um lagar, na ribeira e, dentro do povo, ainda havia uma casa, ao fundo da Carreira, a que se chamava a atafona, por ter sido lagar, noutros tempos.
Para moer a azeitona da terra, recorria-se aos lagares das redondezas: do Ti’Manel da Cruz, na Queixoperra, da Amieira Cova, às vistas da Saramaga, da Aboboreira, junto ao ramal do Vale da Figueira e de Penhascoso, para os lados do Pedrógão.
Fui a todos eles, com meu pai. Era vulgar moer-se, em cada ano, em dois ou três lagares, consoante a proximidade dos locais de recolha da azeitona, que, em nossa casa, estavam dispersos, desde o Carocho, entre a Queixoperra e Penhascoso, às hortas da Ribeira, entre a Serra e a Saramaga.
Cada época íamos várias vezes, ao lagar: começava-se por combinar os serviços e conhecer a tulha que nos era distribuída, depois levava-se a azeitona, ia buscar-se o azeite e o bagaço e, participava-se na tiborna que encerrava a safra.
Comia-se uma boa couvada com bacalhau, temperada com azeite seleccionado para amostra da produção desse ano.
O azeite era, generosamente, derramado nos pratos dos convidados, sobre as couves e o bacalhau, com uma medida de folha, de um ou dois litros.
Tenho, ainda, na memória, aquele gosto de azeite novo.
Foi neste contexto que um dia, depois da ceia, o meu avô e meu pai saíram, dizendo que iam a uma reunião por causa dum lagar.
Não era muito frequente e os que ficámos fomos para a lareira, como de costume.
Pouco tempo depois, ao voltarem, confirmaram que tinha sido formada uma “comprativa” para fazer um lagar e que, das cem acções, a nossa casa ficou com três – uma para cada neto, segundo as palavras do meu avô –.
Assim, como assim, só a facilidade de levar a azeitona e trazer azeite e bagaço, valiam os três contos de réis que se aplicavam; mas havia de vir de lá alguma coisa que compensasse. E, o mais importante, como frisava o meu avô: Nestas coisas, não se deve ficar de fora. É um melhoramento na terra.
Fui ao dicionário, quando cheguei, dias depois, a Mação, ver que raio de coisa seria aquela de “comprativa”. Lá consegui saber que se tratava de uma cooperativa e percebi, em essência, como funcionaria o lagar, que afinal seria feito com o dinheiro de todos os associados e não de um único dono.
De resto em tudo era idêntico aos lagares tradicionais, excepto na força motriz a utilizar e nos equipamentos; uma e outros, modernos e avançados para os tempos que corriam: motor a diesel e prensa hidráulica.
A construção decorreu a tempo de fazer a próxima safra, por sinal um ano de boa produção e boa funda da azeitona. Muito azeite e de boa qualidade, ajudaram a entusiasmar toda a aldeia e o lagar moeu, praticamente toda a azeitona da terra e ainda alguma de fora.
Muito trabalho, bons resultados de maquia e, dado que ainda não havia despesas de manutenção, bom rendimento do dinheiro das quotas de cada cooperante.
Muitos manifestaram arrependimento de não terem entrado de início e quando tentaram comprar quotas, não encontraram vendedores.
Durante vinte ou trinta anos tudo correu bem; depois, com a degradação dos equipamentos, as despesas aumentaram, a quantidade de azeitona diminuiu e as exigências legais quanto a qualidade, asseio, meios técnicos e controlo de produção tornaram o número de associados cada vez mais pequeno.
Veio a ser só de três sócios que acabaram por se desentender, puxando cada um para seu lado. Tinha-se acabado a “comprativa”.
Acabou, por falta de quem dirigisse.
As imposições legais, tratando estas pequenas unidades como sociedades industriais de grande porte, deram a machadada final numa coisa que foi tão bonita e conseguiu vingar, quando, ainda em tempos do Estado Novo, não era muito apoiada e acarinhada qualquer iniciativa de natureza cooperativa. Era um nome que pouco entusiasmava as autoridades.
Não sei como foram os últimos tempos do lagar da Serra. Penso, no entanto, que acabou propriedade de um só dono e que só excepcionalmente laborou, nos últimos anos, deixando de dar lucros.
Mas, o maior prejuízo foi para a Terra, em vez de um serviço ao pé da porta, os moradores voltaram a ter de deslocar-se até aos lagares de outras terras próximas.
A resina e o azeite foram duas das grandes fontes de subsistência daquelas pequenas terras de província.
Não posso ouvir dizer, numa altura em que tanto se fala de desemprego e problemas sociais, que já não é rentável explorar aquelas matérias-primas, com a desculpa de que é mais barato comprar fora que produzir.
E acabo meditando nas palavras do meu avô.
Nunca consegui saber a resposta, ou a frase completa que ele tantas vezes quis dizer-me: adeus mundo, cada vez… Na expressão do meu avô, seria, de certeza, melhor…
É que sempre o vi como um homem muito prudente, seguro de si, ponderado e crente.
Mas também ousado, ambicioso e confiante. E confiava, acima de tudo, na força de vontade e na capacidade humana. Um verdadeiro optimista.
Um homem não muito grande, mas um grande homem, o avô Zé Lourinho.