terça-feira, 24 de julho de 2012

As batatas da Ribeira

Enquanto esperava pela água, de pé sobre o camalhão da levada, entre a nossa horta e a da “Ti’Lexendra”, o meu pai contemplava aquelas leiras de batatas, que não teriam nada parecido nas redondezas mais chegadas. 

Desde que se conhecia já “semeara” muitas arrobas de batatas, de muitas variedades, em muitas terras diferentes, mas novidade como aquela, era a primeira vez que via. 

Os três chãos da Cabeça Gorda – nome de família da nossa horta da Ribeira - estavam, naquele ano, todos “semeados” de batatas: os dois da borda da ribeira com batatas do segundo ano de produção, na nossa casa, e o chão de cima, o maior, com três sacas de “arran-banner”, importadas da Holanda. 

Era este chão de cima que enchia os olhos de quem passava, ou até ia de propósito ver semelhante maravilha: um verdadeiro matagal, todo parelho, em altura de plena floração, de cor branca – rosada. 

Os outros dois, com plantas mais fracotas, também não estavam mal, mas aquelas é que mereciam uma bela fotografia, como dizia meu pai. 

Se a produção fosse em proporção do que estava à vista, teríamos ali para cima de cento e cinquenta sacas de batatas – à roda de seis toneladas –. 

Aquele orgulho silencioso merecia mais atenção; o meu pai, como a maioria das gentes humildes do campo, tinham muito orgulho no que faziam de bom e reviam-se na obra que produziam, independentemente da quantidade e da escala em que labutavam. 

Comprar uma nova horta, receber mais um tostão pelas sangrias dos pinheiros, apresentar um porco desenxovalhado, caiar a testada da casa a rigor, e outras pequenas coisas, eram o orgulho da gente simples das nossas aldeias. 

As grandes coisas não eram para eles. 

Fiquei a saber que aquele chão, depois de lavrado, enterrou mais de quatrocentas paveias de rama dos pinheiros da courela próxima – Pontão –, trazidas por umas cinquenta viagens da carroça da mula. 

Carregadas e descarregadas pelos braços de dois Amorins – meu pai e o “Ti’Amorim Maia” que ajudou a enterrá-las e a pegar-lhes fogo. 

Depois de bem queimada a terra, foram espalhados uns oitenta cestos de esterco, que iam dando cabo do pescoço e das cruzes da tua mãe – dizia o meu pai, carinhosamente. 

Adubo, nem vê-lo. Estas, não têm uma gota e o consumo de casa será todo daqui. As dos chãos de baixo, podem vender-se, se aparecer comprador. 

A propósito, outro dia disseste-me que as batatas não se semeiam; plantam-se. Bem, nisso não quero meter-me, mas então por que raio é que o Governo deixa escrever nas sacas com estas batatas, batata de semente. 

Há aqui qualquer coisa que não se compreende lá muito bem. Olha aqui: sabes que já aprendi as letras e pelo menos isto está ao meu alcance: ba-ta-ta de se-men-te, não é verdade? 

Tem toda a razão; certamente quem autorizou a escrever isso não reparou. Mas não fique com dúvidas, porque as batatas são plantadas e não semeadas. Se continuar a dizer como sempre disse, não comete grande erro, pois a mais não será obrigado. 

Porém, quando ouvir uma pessoa com estudos dizer que as batatas se semeiam, tire as suas conclusões e saiba que se um dia falar com alguém a quem queira mostrar que sabe, deve dizer, andei a plantar as batatas e não a semear as batatas. 

Mas onde íamos nós? 

Ah, depois de plantadas as batatas, tiveram uma semana de tempo húmido mas sem chuva; o suficiente para grelarem e começarem a deitar raízes e, nessa altura vieram umas pingas que chegaram bem para a primeira rega. Tudo corria de feição. 

E, desde então, tem sido um louvar a Deus; isto pode ver-se. 

Quando começou a rebentar a flor, apareceram aí muitos escaravelhos e uma outra praga ameaçadora. 

Fui a casa, fiz uma calda de sulfato de cobre e com três pulverizadores dei-lhe uma primeira passagem. 

Uma grande parte da bicharada, raspou-se, mas ainda lá ficaram muitos. 

Mais três pulverizadores e foi remédio santo; na rama nem um só se via, mas muitos dos piratas esconderam-se na terra e podiam voltar a atacar. 

Estávamos na semana da Paixão e a lua-cheia trouxe duas valentes chuvadas, atrás duma trovoada de respeito. 

Vim logo aqui e o que vi: A bicharada que tinha descido à terra foi morta pela calda que a água da chuva arrastou das folhas e ficou tudo limpinho. O sulfato tratou deles – deu cabo do canastro à praga toda –. 

Só me parece que afinal “plantei” as batatas muito ralas e, se calhar, vão ficar muito grossas. 

Têm menos venda, mas como estas devem ser quase todas para gastos de casa, não tem muita importância. 

Tenho ainda de separar uma ou duas dúzias de saquitos para semente; para casa e para vender, pois isto que está aqui vai valer dinheiro; oh se vai!... 

Nesta altura da conversa já estava quase terminada a rega; meu pai acabava de cortar a água para a quarta das cinco belgas. Mais um quarto de hora e também se acabava a água do açude; os chãos de baixo seriam regados dois dias depois, quando a água voltasse a ser nossa – em partilha de sete dias, tínhamos três –. 

Saídos dali, passámos na azenha a ver se já tinha terminado o pão que tinha ficado a moer e a caminho de casa, ainda pude ver a fila de eucaliptos que meu pai plantou ao longo do caminho aberto pela CM na nossa da Lomba. 

Mais um bom trabalho que, passados anos, depois de evitar a erosão das terras do aterro, viria a render uns bons milhares de escudos, pela venda da madeira. 

Um dia, chamaram-me da alfaiataria do senhor Manuel Diogo, na rua de S. Pedro, em Mação: 

Pelo telefone, meu pai disse-me, orgulhoso: a horta deu 160 sacos de batatas!... Até domingo, se Deus quiser; na próxima semana já vais comer destas belas batatas.