sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Horizontes



O Lajinhas esgueirava-se por trás da escola e subia o monte, por entre os pinheiros, até ao cume, uns quinhentos metros, acima. Chegado ao cimo, parava, sentava-se e contemplava a paisagem. 

Da escola via todas as casas da aldeia, numa extensão de menos de um quilómetro. 

Junto da nascente da represa, onde se dessedentava, de mergulho, via mais longe, até aos confins da ribeira, lá para perto do Casalinho e as primeiras aldeias de Alcaravela. 

De meia encosta, ao pé do depósito da água, conseguia ver povoações mais distantes e serras bastante altas, de que não sabia o nome nem a localização. 

No cume, extasiava-se!... Olhava tudo sem distinguir nada e, por mais que olhasse, tinha sempre mais alguma coisa para ver. Que bonita era a linha do Tejo, lá ao longe, sempre coberta de névoas e, por perto, a cidade de Abrantes, no cimo do morro. 

Como era alta a serra dos Bandos, sobressaindo por cima de muitos outros montes menores. E para norte, as terras de Aboboreira, ali tão perto e que não podiam ser vistas da aldeia, visto que ficavam por trás da nossa serra. 

A poente, para lá do cabeço Barreiro, serpenteava a estrada, onde ouvia as camionetas carregadas e, duas vezes por dia, a camioneta dos Claras, que fazia carreira entre Abrantes e Chão de Lopes, seguindo depois até Proença-a-Nova. 

Lá longe, mais ou menos na linha do Tejo, via-se, de tempos a tempos, o rolo de fumo dos comboios; contrastando com a aldeia, ali em baixo, a seus pés, onde tudo era calma e sossego, apenas cortados pelo ladrar dos cães, pelo fumo das chaminés e pelo ruído abafado, de sons residuais, não determinados. 

No alto do monte, sentado sobre uma pedra, que tinha sido arrancada na pedreira próxima, o Lajinhas dava aplicação, na prática, ao que aprendera na Geografia. 

A senhora professora tinha dito que horizonte visual é tudo o que a nossa vista abrange, desde o local em que nos encontremos; aumenta à medida que subimos num monte. Quanto mais subimos, maior é o nosso horizonte. E a linha lá no fim do que vemos é curva; parecendo a borda de uma bola grande. 

Até aqui não tinha dúvidas, mas agora choviam em catadupa as perguntas que lhe bombardeavam a cabecita: serão mais felizes os que moram nos altos? Verão melhor os que têm horizonte maior? Quando chegar à linha do horizonte o que poderá ver? Os cegos não têm horizonte? Estas e outras perguntas davam-lhe que pensar e ocupavam horas infindas do seu dia-a-dia. 

Depois via a diferença entre os pequenos morros, os outeiros, os montes, as montanhas. 

Podia localizar montes isolados e, mais além, vários em conjunto, formando as serras. A seus pés, tinha o sopé do monte da Serra, de onde partira, ao pé da escola a encosta, ou vertente, e estava no cimo, ou cume. 

Não lhe passava despercebida a forma curva da linha do horizonte. As coisas que via nessa linha não estavam todas à mesma distância, mas estavam em curva. 

E se subisse muito, chegaria ao limite do horizonte? Poderia ver a curva toda, a volta completa? Era por isso que diziam que a Terra é redonda. 

É redonda e mexe-se; quando ali chegou o sol estava ao fundo do Casalinho e agora já subira e estava por cima do Carvalhal. 

Mas o Sol é uma estrela fixa; a Terra é que tinha rodado, dizia o livro! Neste ponto ficou baralhado e decidiu que pediria à professora uma explicação para estes movimentos. 

Com estas e muitas outras cogitações, nem deu pelo passar do tempo; quando reparou já o sol baixava. 

Desceu a correr pelo monte abaixo e foi para casa. Arrumou o bornal de cotim com os livros, procurou um bocado de pão, que comeu, sem conduto, e foi até à horta onde os pais regavam o milho e tinham presas as duas cabritas, da casa. 

Por ali ficou, até que, ao pôr-do-sol, recolheram todos a casa, cearam e foram dormir. O garoto teve dificuldade em adormecer. Não lhe saíam da cabeça as dúvidas sobre o fim do horizonte. 

Feito o exame da quarta classe, o Lajinhas foi à ceifa, com o pai e os dois irmãos mais velhos, na companha do Ti’Chico Manajeiro. 

Viu, pela primeira vez, o rio Tejo, ao pé de si, pois já muitas vezes o tinha imaginado do alto da serra, onde se refugiava com os seus pensamentos. 

E como era grande toda aquela extensão de água a correr e os terrenos das margens, tão verdes, planos e largos!... Aquilo é que eram terras para fundir bem, pensou ele. 

Logo a seguir outra grande novidade – o comboio – que, pelo seu caminho, rompeu campos adiante, por entre montados e searas até lá ao Alentejo, onde os campos lisinhos estavam todos cobertos do pão que iriam ceifar. Seriam quarenta dias de trabalho forçado. 

Um dia, debaixo duma azinheira, enquanto toda a gente dormia a sesta, sobre uns restos de palha, o Lajinhas pensava, com os seus botões: aqui o horizonte é pequeno; quase nem dá para ver que acaba em curva. 

Afinal a Terra pode ser redonda, mas tem muitos bocados grandes onde é direitinha. O comboio, desde Abrantes, veio sempre em frente e quase não subiu nem desceu; onde está a curvatura da terra? 

Estas e outras conjecturas eram o seu entretém, antes de adormecer, depois de se apagar a luz; enquanto o petromax estava aceso, ia lendo os dois ou três livritos que pedira à professora, na biblioteca da escola, de que continuava a ser o principal leitor. 

Ia já no fim da Colecção Educativa, da Campanha Nacional de Educação de Adultos – estava agora a ler um livro de Júlio Verne: Volta ao Mundo, em oitenta dias. Já decidira que, voltaria a lê-lo. 

Terminada a ceifa, voltou à aldeia. Os seus quinze, dezasseis e dezassete anos foram desperdiçados, segundo o seu conceito, na guarda do gado, ajuda nas sementeiras, regas e colheitas. 

O pai falou-lhe em aprender um ofício, mas desistiu da ideia, pois o Lajinhas não estava ali, tinha outras expectativas, sonhava com outros horizontes. Apenas esperou pelos dezoito anos para se fazer ao Mundo. 

E, tinha planos concretos, meticulosamente elaborados com destinos e rotas, desenhados, em cima de tempos definidos. 

E haveria de cumpri-los!...