segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O penedo da Lameira



Ainda o sol, vindo dos lados do Casalinho, depois de contornar o cabeço do Pião, não banhava o povoado, já o “príncipe” espreitava os primeiros raios, especado no alto da portela da Casinha, ali no cimo dos Brejos. 

Um pouco mais atrás, o Ti’Luís Mestre – moleiro desde que se conhecia e dono de uma das azenhas do ribeiro da Louriceira – seguia o “fadista”, ajoujado sob a carga de taleigos de farinha, com passo lento e cadenciado. 

A aldeia, estendida no sopé de um pequeno relevo – de que herdou o nome, impróprio, de Serra – tinha acordado, há muito. Eram sinais disso, o cantar dos galos, o ladrar dos cães e o barulho de um ou outro chocalho das cabeças de gado que já se dirigiam às hortas. 

O moleiro, que visitava a aldeia todas as semanas, tinha os seus fregueses. Até o “fadista” guiava o dono, parando junto às portas onde ia trocar o taleigo de farinha pelo saco de cereal, que levava para o moinho, trazendo a farinha, depois de moída e maquiada, na semana seguinte. 

Naquele ritual, enquanto parava às portas, o “fadista” ia lançando a boca às verduras, ou outras coisas comestíveis que apanhasse à mão, o que muitas vezes lhe valia uma arrochada no lombo, não tanto como castigo, pelo abuso, mas como sinal de arranque para a próxima paragem. 

O “príncipe”, que todo o caminho se entretivera a correr, a parar de repente, a ir ao dono, a fugir para fora do caminho, perseguindo as lagartixas que passavam ao seu alcance, sentava-se, sobre as patas traseiras, enquanto atendiam os fregueses. 

Não se incomodava com a comida, pois, normalmente, não tinha fome. Os ratos, ratazanas e similares, que pululavam lá nas azenhas, chegavam e sobravam para lhe encher a barriga. 

Daí que os seus maiores inimigos fossem os gatos, que pintavam no terreno, à procura de “caça”. 

O Ti’Luís Mestre, sexagenário baixote e atarracado, vestia, invariavelmente, calças de saragoça, camisa de flanela e um blusão, tipo jaqueta, justo na cintura. 

Calçava botas de cabedal, ensebadas e cobria-se com uma boina escura e esbranquiçada pela farinha. Até as sobrancelhas denunciavam a profissão do moleiro, que, raramente se separava da bengala com que acariciava o lombo do “fadista” e lhe servia de amparo e companhia, nas caminhadas. 

A maquia dos taleigos chegava para lhe dar uma vidinha sem sobressaltos e para criar os quatro filhos que estavam em casa, com a mãe – a Ti’Luísa, uma santa. 

A personalidade e o feitio do moleiro tinham-se adaptado ao ritmo da azenha; dormia, com o barulho das mós, acordava, com o silêncio das paragens. 

Uma manhã, de fins de inverno, ao deitar o nariz fora do casebre, onde funcionava a azenha e onde tinha o catre em que, tal como seus antepassados, estendia os ossos, enquanto o engenho marchava, viu tudo branco – havia, nos campos, uma coisa que nunca vira –. 

Imediatamente lhe veio à ideia que em tempos ouvira falar na neve, que cobre as terras altas e é formada por água gelada, que cai assim do céu. 

Saiu do tugúrio, assobiou ao “príncipe”, que parecia louco, a correr de um lado para o outro e a meter o focinho na neve branca e fofinha. 

Deu uns passos em redor do engenho. A água do ribeirito continuava a correr e tudo marchava, em perfeita ordem e harmonia. 

Nesse dia fazia a volta da Serra, pois era terça-feira e não era dia de Entrudo, nem de Natal – únicas excepções para essa viagem semanal –. 

Ao chegar quase ao cimo do vale, junto ao penedo da Lameira, olhou para o cabeço do Loureiro, nos altos da encosta em frente e viu tudo branco. 

Que delícia, o brilho do sol reflectido pela neve!... 

Parou uns momentos e fez alto ao “fadista”, voltando-se para ele, como que a convidá-lo a admirar aquela paisagem, nunca antes vista e, provavelmente, poucas vezes se repetiria. 

Inopinadamente, um sobressalto agitou o burrito, que soprou, violentamente, pelas narinas; ali perto, o cãozito, andava num frenesim nada habitual – nunca se lhe vira tal agitação –. 

Homem e animais estavam no centro de qualquer coisa; participavam em qualquer cena desconhecida a que a neve dava moldura especial e o espírito calmo e pachorrento do Ti’Luís Mestre não percebia. 

Sentia que o burrito estava hirto e o cãozito todo eriçado, fixados na fresta do penedo. 

Olhou, instintivamente, na mesma direcção, depois de, em milésimos de segundo, lembrar as moiras encantadas, as luzes referidas pelos mais alucinados com a zurrapa que bebiam na tasca do Sebastião e até imaginou a bandeira que, segundo a tradição, ali foi colocada, pelas tropas de Napoleão, marcando o centro de Portugal. 

De repente, acordou, desceu à terra, agitou os pés, sobre a neve, e, junto dos seus companheiros, olhou... esfregou os olhos, para se certificar que não sonhava, e viu uma loba, maior que os maiores cães que já vira, saindo da fenda do penedo, abandonando o covil, acompanhada por três filhotes. 

Depois, dirigiu-se para o mato, sem denotar grande nervosismo, e desapareceu. 

Estava feita luz na cabeça do Ti’Luís Mestre; não lhe falassem de barulhos de moiras encantadas, de luzes na escuridão, ou bailados e reuniões de bruxas... 

No penedo havia sim um covil de lobos, cujos ruídos eram normais e que ao saírem, durante a noite, projectam a luz dos olhos para quem os vê. 

Foi sem receio que continuou a passar no local, pois ao ser interpelado, o ti’Luís limitava-se a galhofar: 

Tenho medo do “bicho homem”, que me pode fazer mal; dos outros, dos verdadeiros bichos, nunca tive medo, porque tenho a certeza que sempre me tratarão como eu os trato: nunca me farão mal.