O Vale das Lousinhas, entre a Chã e o Lavadouro, não passava de um pequeno brejo, com meia dúzia de chãozitos, em socalcos, nos lados da amostra de ribeiro, geralmente seco, onde cresciam as únicas canas que conhecia na área da minha aldeia – Serra-.
Porém, com a sua pequenez e insignificância, era um dos meus locais preferidos nos dias de férias, quando o calor assentava, para me resguardar, para fazer tempo entre as caçadas das costelas que armava aos taralhões e para fazer as leituras dos meus livros.
Na parte mais a nascente havia restos de uma pequena depressão, que fazia lembrar os fundos de uma charca de água ou a confluência de vários regatos e nascentes que ali se juntariam em épocas de chuvas.
Havia pequenas solapas, que chegariam a um metro de profundidade, com os tetos de terra e lousinhas presas por raízes entrelaçadas e pedras em forma de lajes bastante leves.
Eram as minhas cabanas que além de me servirem de abrigos se transformaram em locais de escavações e pesquisas arqueológicas.
Encontrei lá pedras aguçadas, desenhos de restos de plantas e animais gravados nas pedras – fósseis – e bocados de cacos de barro, muito enegrecidos e espalhados.
Andei por lá duas ou três férias, depois estive uns tempos sem lá ir e mais tarde o local era uma bouça de estevas e balças onde coelhos e talvez raposas tivessem os seus covis.
Pela textura da terra e das pedras que escavava, fiquei convencido que se tratava de algumas estruturas de paredes, cheias de terra e daí ter concluído que no local terá havido habitações em tempos muito recuados.
Provavelmente teria sido ali a origem da povoação que mais tarde viria a mudar-se e a concentrar-se uns quinhentos ou seiscentos metros mais a nordeste, junto do actual ribeiro do Freixo, num núcleo chamado Melhim e perto de outro local um pouco mais elevado, onde teria havido uma vetusta ermida que acabaria por servir de base às antepassadas da capela.
Entre os dois núcleos (Melhim e Casal) teriam havido disputas de famílias pela posse das terras, vindo a prevalecer o clã do Casal que veio a ocupar a maior parte da área da actual povoação.
Como base desta suposição está o facto das ligações entre os dois polos não serem diretas; uns quantos metros a sul viria a nascer a ponte do Freixo e outros tantos metros a norte, fixou-se a passagem da Barroca das Couves.
As famílias mais antigas, até onde a nossa memória e os relatos de três ou quatro gerações nos levaram, terão sido os Moreira, os Pardal, Os Mendes e mais recentemente, mas ainda longe no tempo, os Marques e os Alves.
Um apelido parece transversal a todos os anteriores: Serra ou Serras, que o meu avô admitia não ser originário dali, mas vindo de forasteiros das “terras lá de cima” que ali se fixaram pelo casamento.
Ainda segundo a minha principal fonte de informações – o meu avô – em tempos muito remotos o Vale das Lousinhas terá servido de refúgio aos proscritos, castigados e até cemitério da aldeia – é assim como que um local pouco agradável e simpático para as pessoas da terra.
Terá sido adquirido pelos avoengos do Ti’Manel Rosa que, vindos lá dos lados de Vila de Rei não ligaram muito ao que se dizia na terra sobre o lugar e acabaram por ficar com aquilo quase dado, uma vez que da Terra ninguém o quereria comprar.
A barroca do Lavadouro, onde temos aqueles dois bocaditos, era, muitos anos atrás, atravessada, pelo meio, pelo ribeirito que corria de cima, do Vale das Lousinhas.
Não descansaram os nossos, enquanto não mudaram o ribeiro para o poente, pelo meio das estevas abaixo até ao ponto em que, já encanado, o mandaram para a ribeira. Diziam que as águas que vinham do lado de cima da nossa, não prestavam.
Quando por ali andámos, havia uma nespereira, três ou quatro laranjeiras, videiras por cima das paredes e duas ou três figueiras e macieiras.
No meio do brejo, nos cômoros secos do ribeiro, tufos de canas que a fazer fé no desenvolvimento que alcançavam, traziam as raízes perto de água.
Os figos eram bons. Na horta do meio, na figueira abêbra, os figos pretos eram carnudos e davam umas passas maravilhosas que o Ti’Manel Rosa reservava para ajudar o vinho a conseguir o doce suficiente para ferver.
Não importava ao velhote que os pássaros e os miúdos comessem a outra fruta; os figos daquela figueira é que eram sagrados.
A arvorezita cujo tronco carcomido era rodeado por duas vergônteas que suportavam os ramos, estava sempre coberta de espantalhos, moinhos de canas e latas e tudo o que o dono supusesse afugentar a passarada.
Parece que os expedientes não resultavam, porque não se acabavam os pássaros sobre a figueira, debicando nos figos e, nenhum armador de costelas deixaria aquele sítio sem uma armadilha e, raramente, passava uma caçada sem levar dali uma anafada balceira, ou um apetitoso rouxinol.
A coisa melhor do pequeno valado, ainda segundo as palavras do meu avô, seria a encosta soalheira do poente, para poiso de colmeias.
Não havia, nas redondezas, colmeias de mais funda e mesmo já dentro do nosso mato, pois a estrema passava uns vinte passos acima da meia encosta, ainda havia colmeias.
Sempre que havia uma vaga, nos três socalcos em que assentavam outras tantas filas de cortiços, logo alguém ocupava o lugar deixado vago.
Em tempos passou por ali o lume – creio que no último incêndio dos anos noventa – e de então para cá o mato e as estevas assenhorearam-se daquelas paragens.
Hoje os carreiros onde pastores e resineiros passavam, não são mais usados, porque não há pastores nem resineiros. Colmeias também desapareceram dos socalcos e, provavelmente também as abelhas terão descoberto novas paragens.
Descer, por ali, do caminho da Renda para o Lavadouro, será quase impossível, pois estevas, balças e mato, formam um emaranhado impossível de transpor.
Coisas dos tempos.
Quem se lembrará hoje dos figos do Vale das Lousinhas, do sabor do melhor mel da região ou da lapa dos achados e lhe atribuirá alguma relação com o começo de uma aldeia vinda do princípio dos tempos?
Não há descrições conhecidas desta localidade, aninhada ali nos contrafortes de um pequeno monte, cujo nome – Serra - , segundo a lógica, daí derivará, mas que pode não ter tido essa origem, segundo pequenos apontamentos que fomos ouvindo aos nossos avoengos e através deles, às suas memórias.
Segundo os dados que fomos coligindo, sempre foi terra de mais imigração que de emigração.
Continua, na boa tradição de hospitalidade, a receber novos moradores, que ali se têm fixado, definitivamente, ou no regime de segunda habitação.