Quando a água minguava na ribeira do Verdigal, o Ti’Ricardo aproveitava o vento na portela da Calhameira e moía os cereais dos fregueses, durante todo o ano.
Já o Ti’Tiauga, o outro moleiro da terra, não podia trabalhar a tempo inteiro, uma vez que a partir de meados da Primavera a água da ribeira mal chegava, como ele dizia, para as rãs e os sapos matarem a sede.
O “faísca” e o “carocho” eram os burritos que serviam, respectivamente, havia muitos anos, o Ti’Ricardo e o Ti’Tiauga. Só na cor mais clara e na espinha já deformada pelas cargas de taleigos, se distinguia o que conhecia tão bem como o dono, o carreiro até à azenha do Verdigal e os caminhos da Serra, das Lercas e do moinho da Calhameira.
Na idade, segundo as palavras do meu avô, quando o Tiauga for velho o cunhado Ricardo não há-de ser novo, uma vez que o foi tirar ao quartel de Abrantes, quando assentou praça. Parece que chegou a ser cabo, lá na Artilharia, onde tratava as bestas.
Nos copos, se bem que não fossem homens de taberna, não enjeitavam o mata-bicho de algum freguês e não ficavam sem convidar quem os obsequiava.
No Zé Maia, ou no Silvestre, eram muitas vezes acompanhados pelo Pimpão, o outro maquiador, como dizia, pois não faltava a uma safra nos lagares de azeite, onde era mestre. E, estando os três juntos, logo vinham as histórias.
Nestes encontros, uma coisa os distinguia: O Ti’Ricardo era homem de poucas conversas e menos prosas; O Ti’Tiauga tinha sempre troco preparado para uma chalaça; o Pimpão atacava sempre que podia, ainda que tivesse idade para ser filho dos amigos moleiros.
Davam-se muito bem uns com os outros: quando sobrava taleigos ao Ti’Tiauga, ia ter com o colega e dava-lhe o serviço. O Pimpão era sobrinho e freguês do Ti’Ricardo.
O moinho da Calhameira, lá no cimo da Lameira Cimeira, estava ali no limite das terras de Penhascoso; era lá, segundo dizia o moleiro, quando os caixões rodavam meia volta, que os mortos se voltavam para o outeiro de S. José, onde haviam de ir morar para sempre, deixando a sua terra.
Um dia, contava ele, seguia quase toda a aldeia a acompanhar um dos maiores forretas que se criaram na Queixoperra.
Ao chegar junto do moinho, já a vistas para a do Isidoro, levantou-se tamanho pojino que pegou nas velas do moinho que rodava lentamente e parecia que ia tudo rebentar: as mós faiscavam uma na outra e só a poder de colher os panos e travar tudo o que pude, a coisa serenou.
Diz quem viu que o caixão do morto estremeceu; a besta que puxava a carroça, eriçou-se toda e só depois do responso que as pessoas em boa hora rezaram, a coisa lá acalmou e o cortejo fúnebre pôde continuar viagem.
No fim, entre estouros e rangidos, lembrei-me de rezar o Pai-nosso e, quando terminei e disse Ámen, veio uma calma tão grande que nem havia vento suficiente para rodar as velas.
Fui à porta do moinho e vi, na portelita, um sujeito aos pinotes, rodeado de sombras que se estendiam pelos ares, e dança animada na poeirada.
Fiz o sinal da cruz, encomendei o morto que já ia lá à frente, e quando reabri os olhos quase não me lembrava de nada.
Quando acabou de ouvir a história, o Pimpão perguntou:
Oh! Ti’Ricardo e o morto não seria algum moleiro? É que as contas dos moleiros são muito boas de fazer em vida, mas muito complicadas de acertar depois de mortos.
Até se costuma dizer que uma das penas que recebem é andar com uma saca de milho às costas, a correr as casas dos fregueses e deixar uma mão cheia em cada casa, para desconto do que maquiaram a mais.
Olha lá, oh! Pimpão, não estarás enganado quando te referes aos moleiros?!...
É que sempre ouvi dizer que os mestres lagareiros, como tu, é que são condenados a encherem as lamparinas do Santíssimo, nas igrejas, com o azeite que maquiaram a mais, aos fregueses dos lagares onde trabalharam.
E têm de percorrer pelo menos sete igrejas matrizes cada noite, até se acabar o azeite.
E olha lá homem, os moleiros, se por vezes se podem enganar, é para eles; agora os mestres lagareiros, trabalham para os outros e daí que o Diabo se encarregue dessa gente estúpida que nem para si soube ser boa.
Deite lá mais uns copos, Ti’Marília, que este diabo quer conversa!...