O Lameiro dos Barroquinhos, na encosta avesseira que sobe do Noeme até ao Monte Margarida, era dos lugares mais aprazíveis de todos os assentos daquela margem direita da ribeira que vai correndo para o Côa.
Virado a norte, frente ao Rochoso que acomodado no pequeno morro do Calvário, era todas as manhãs acordado pelo silvo do trama que, vindo de Vilar Formoso, se detinha no apeadeiro para apanhar as pessoas que se dirigiam à cidade da Guarda.
Acompanhado do Zé Lines, passei por lá horas esquecidas; umas vezes vendo despontar o sol, sobre a Senhora do Monte, depois de rasgar a maresia que nos finais de Agosto se entretinha a dar um último retoque nas castanhas do Abrunhal.
Faltavam apenas dois meses para o São Martinho e a novidade ainda não estava bem composta.
Na Rasinha, já se divisava o caminho velho da Cerdeira, por entre as vedações dos lameiros onde os vivos, pachorrentamente, tosavam as ervas.
Pouco depois dos primeiros raios de sol, já a buzina do padeiro de Almeida percorria as ruas da aldeia e aviava as freguesas antes de irem para a missa.
Também nos dias em que os ventos não sopravam, ou estavam de feição, chegavam as badaladas dos chocalhos e os balidos das crias atrás das mães, sugando o leite fresco da primeira refeição da manhã.
Mais ao longe, lá para a folha da Senhora do Monte, um "Serra da Estrela", guardião do rebanho dos Moitas, atroava os ares com o ladrar profundo e medonho; provavelmente provocado pelo cheiro deixado por algum lobo que por ali se tivesse cruzado durante a noite.
Dos assentos da Sapateira, até aos barrocos que, emoldurando as Fontainhas, parecem querer guardar a aldeia pelo lado norte, já se regavam as águas das represas e se colhiam uns mimos que iriam dar o tom verde ao caldo, nas panelas com o almoço.
Pelo lado sul, junto aos lameiros do Enchido divisavam-se os vivos que esperavam avidamente para meter o dente nas ervas tenras.
Junto ao apeadeiro movimentavam-se os passageiros que aguardavam o trama, depois de ouvir o apito, uns minutos antes, à saída da estação da Cerdeira.
Os caçadores de taralhões – o professor e o amigo Zé Lines -, há duas horas que percorriam as redondezas da ribeira, espalhando, por baixo das árvores, as costelas, com as formigas de asas bem presas nos agudieiros e brilhando ao sol para atrair os passaritos à sua última refeição.
Descansavam então, com uns metros de sol acima do horizonte, esperando que a passarada acordasse e se agitasse em procura da bicharada que iria satisfazer o apetite matinal e, para alguns, seria o encontro com as costelas – na aldeia chamadas costilos – e o fim de vida.
Uma meia hora depois, dirigir-se-iam para o princípio da área de caça e começariam a primeira caçada, visitando todas as costelas para retirar as presas e repor as agúdias que morreram, ou foram comidas sem provocar o disparo da armadilha.
Tinham então lugar as conversas do costume. O professor era curioso e o amigo muito solícito. O Zé Lines ia dando as novidades e regando as dentadas nas sandes de pão espanhol e chouriço com a garrafita de tinto, que o amigo nunca esquecia.
Depois, ansiosos, começavam na tapada do moinho da ribeira e, durante perto de uma hora, visitavam todas as árvores onde estavam as armadilhas.
Finda a caçada, seriam retiradas duas dúzias taralhões e deixadas, outra vez armadas, as oitenta e quatro costelas, que, duas horas depois, seriam de novo visitadas e levantadas.
No intervalo entre as voltas pelas armadilhas, como já era costume, quedavam-se ali pelo lameiro dos Barroquinhos, sentados no cômoro da levada que distribuía a água por aquele e pelos outros lameiros daquela folha.
Satisfazendo a curiosidade do professor sobre as artes do contrabando, o Zé Lines não se cansava de contar histórias, metendo as galgas e as fantasias habituais.
O professor ouvia com toda a atenção e tomava notas num cadernito que trazia sempre consigo.
Nesse dia, pelo fim da tarde, o grupo do Ti’Cabano da Parada tinha “faina”, pelo que, logo depois do pôr-do-sol, todos os “maquinados” deviam juntar-se no sítio número três e aguardar ordens.
O Zé Lines sabia ler. Em garoto frequentou a escola lá na terra e completou a quarta classe. Era, pois, com recado escrito que, às vezes, o Lines era convocado e encarregado de passar palavra a um ou outro camarada da terra.
No meio dos episódios do costume e com os piropos que iam mimoseando os guardas-republicanos, da aldeia e os guardas-fiscais de outras localidades, o Zé Lines tirou um papel do bolso das calças e estendeu-mo, dizendo: sei que o senhor professor é de confiança e então leia lá esse recado que recebi a noite passada.
Mas, olhe que isto que estou a fazer só pode ser feito a alguém em quem temos tanta confiança como em nós próprios.
Se precisar de ajuda eu ensino-lhe o que aí está escrito. Essa maneira de falar é a que os contrabandistas usam entre si e também para despistar os guardas, os carabineiros e os espiões.
Dizia o papel:
Amatriz, meia choina, maquinamos totios cangra coime do mercho chingados e assuquidos. Reta francha. Árgio o galhal cada vinte chulos artife chaira e briol chingato. Tramposa, grilo e naifa e terá fuganta tratar esgueirantes. Todo chingato não maquina e cada terá dois tratos. Terá argio o galhas trinta. 2 sacos de paivos e paquete de galletas. Fachos adicam altra ruta. Todos chegatos ergue pinante e diz a Tonio Petesgo: icho, intervo. Maquinamos, chefe é rei.
Algumas palavras não estavam muito perceptíveis e a tradução que se segue poderá não ser rigorosa, mas o sentido é o seguinte:
Amanhã, à meia-noite, todos prontos e preparados, junto da casa do padre, comidos e bebidos. Espanha. Cada um receberá vinte em dinheiro, pão, carne e vinho. Manta, assobio e navalha e terá pistola para tratar os intrusos. Quem estiver bêbedo não está pronto, cada um terá duas cargas. Receberá trinta escudos em dinheiro, dois pacotes de cigarros e um de bolachas. Os guardas serão chamados por outros caminhos. Todo o que chega levanta o braço p’ró Tónio Petesgo: cheguei pronto. Prontos, chefe é rei.
O calão português, usado pelos contrabandistas ao longo das fronteiras variava de região para região e às vezes de chefe para chefe de grupo; porém a maioria dos carregadores conhecia o linguajar e sabia disfarçar mesmo que houvesse infiltrados nos grupos.
Era vulgar haver ex-guardas no contrabando e alguns, no activo, para descobrirem rotas, grupos, fornecedores e tudo o que se relacionasse com contrabando. Se descobertos eram, não raro, eliminados à naifada.
Depois de muitas explicações e as minhas tomadas de notas, acabei por saber que o "contrabandês", era resultado duma mistura de calão português, espanhol e francês, com palavras da gíria das regiões onde era praticado.
Era um linguajar oral, pois a esmagadora maioria dos interessados era analfabeta.
Foi usado, largamente, até aos anos sessenta do século passado; a partir de então, meios de transporte e comunicação alteraram as práticas dos contrabandistas e o trabalho de transporte de cargas acabou por se extinguir.
Restaram algumas pessoas que iam e vinham de comboio, às quitandas junto da raia comprar pão, bolachas, caramelos e alpercatas para vender nos povoados onde moravam.
Todo o contrabandista tinha orgulho no trabalho que fazia, pois no seu conceito não estava a fazer nada de errado.
Fazer contrabando não é pecado nem indigno – não faz mal a ninguém e dá de comer a muita gente -, dizia o Zé Lines, pesaroso, porque rareava, cada vez mais, a chamada para mais umas cargas.
E acrescentava: “Roubar é que não!...Toque-le!...”.
Naqueles tempos, levar, ou trazer uma carga, através da fronteira entre Espanha e Portugal, rendia à roda de vinte escudos, coisa que um homem ganhava durante uma semana a trabalhar no campo. E, mesmo a este preço, havia mais gente que trabalho, nas regiões fronteiriças do interior.
O Zé Lines contava as peripécias que tinha passado atrás das grades da cadeia de Vitigudino e da água com azedas e nabos cozidos, que davam lá aos presos.
Olhe, senhor professor, nunca vi porcos como os espanhóis; tratam a gente como bichos.
Para cá da linha, os “fuscos” nunca me puseram as mãos em cima.
Só uma vez que trazia dois carregos tive de deixar um, para fugir ao “facho” que me perseguia, quando o achei em jeitos de puxar da “fuganta”.
E fui centos de vezes a “Reta Francha”, com carregos de “alampio, paivos, adoçante, escarchantes, moca, pernantes, chaira e coisas que a gente nem sabia o que era”.
Nas “becas” não se falava, claro.
Havia, sempre, alguém que estava disposto a “adicar aos fachos” e, muitas vezes, iam disfarçar e prender os “jerigos”para a companha passar, à vontade, noutro local.
Sempre fomos mais espertos que os “fachos” que não tinham “murchoila”que se visse. Era como nós dizíamos:
“Se prestassem para alguma coisa não iam para “fuscos”.
Às vezes estávamos dois a “chingar na beca e quando víamos – os adicadores a cuscar – fazíamos cenas todas ao contrário, para depois ir aos nossos levar a ordem de avançar, em segurança.
Nas “tainas e festas”, os “fachos” e os chefes comiam e bebiam connosco, nas horas em que os grupos passavam.
Havia alguns “fuscos” que tinham sido expulsos, ou deixado a guarda, de livre vontade e, mais tarde, andaram nos carregos.
Mas só depois de muito experimentados é que os chefes os levavam e, ainda assim, alguns acabaram na ponta de uma naifa, quando traíram a companha.
Eu andei, quase sempre, durante mais de vinte e cinco anos, com o Ti´Cabano da Parada. O grupo tinha entre dez e doze homens, além do chefe. Só duas ou três vezes perdemos cargas.
Era rijo o Ti’Cabano e sabia deitar a mão a um camarada que estivesse em apertos. Vi-o, muitas vezes, apertar o pescoço aos “fachos”.
Lembro-me duma ocasião em que tivemos que ir mais longe. Foram três noites de viagem – uma, em Portugal e duas, Espanha dentro -.
As cargas, pesadas, eram, ao que nos disseram, muito valiosas. Pensámos nós que se tratasse de açúcar, com outro nome que lhe davam: sacalina, ou lá o que fosse.
O certo é que quase todos levavam duas cargas, no começo da viagem.
O Ti’Cabano, como chefe, ia de reserva e não tomou carga, no início. Ficou com as mãos livres para apalpar o pescoço a algum guarda, ou carabineiro e dar ajuda a algum camarada em apertos.
As vinte cargas iam todas distribuídas: oito levavam duas cargas, cada um e os outros quatro, uma carga.
Os camaradas com duas cargas iam dois a dois, intervalados por um camarada com carga singela.
O Ti´Cabano viajava, constantemente, ao longo da coluna, de trás para a frente e da frente para trás.
Sobre a madrugada do segundo dia, ainda dentro de Espanha, foi dado o sinal de “fuscos na zona” e, de um momento para o outro fez-se a dispersão combinada e até as melgas se ouviam.
Estivemos ali mais de duas horas quedos e mudos, a ser devorados por melgas e mosquitos, até que veio o sinal de avançar e acabámos por não saber o que se tinha passado.
Só anos mais tarde, um dos camaradas, antes de se finar, acabou por confessar que tinha dado alarme falso, porque ia já à beira de cair ao chão de cansaço.
Disse que o chefe sempre soube, mas nunca deu com a língua nos dentes, porque era homem muito direito e soube defender o camarada em dificuldades.
Pedia, por isso, a todos que ajudassem e respeitassem o chefe.
Sabe, senhor professor, era um regime de contrato de sangue.
Seriamos capazes de dar a vida uns pelos outros e até havia alguns na companha que mal conhecíamos.
Mas, a confiança no chefe era tal que, nesses casos, dizíamos: se o chefe os traz é porque confia neles e ai deles se algum dia virem o chefe das avessas.
Contava-se, à boca pequena, que o chefe descobriu, um dia, um “facho” infiltrado no grupo.
Ao contrário do que seria de esperar, não se deu por achado. Até que uma noite de inverno, numa travessia da Côa, lhe tomou a carga e o afogou, isto é, deixou afogar-se, uma vez que quando fingia puxá-lo da água, o empurrava para a corrente, até que desapareceu.
O chefe, lamentando a perda da má rês, pegou na carga dele e mandou avançar.
Tempos duros, próprios de homens de barba rija.
Tempos saudosos, apesar de tudo.
Dizia o Zé Lines, melancolicamente.