segunda-feira, 7 de maio de 2012

O cabeço do loureiro


Um cabeço não está virado para coisa nenhuma; é um cabeço, elevado, acima das terras das redondezas, sobressaindo-lhes e projectando uma sombra maior sobre as terras avesseiras e as ribeiras que, de um modo geral lhe correm nas faldas, onde se situam as terras mais férteis e por vezes, lameiras de boas pastagens e hortas de terras de regadio.


O cabeço do loureiro, impunha-se, como uma barreira intransponível, como que a esconder as terras de Vila de Rei e os acessos mais facilitados pelo norte, acabavam por implicar uma boa hora de caminho, para chegar ao local de melhor aproximação.

Isto para quem se lhe chegava pelo Nascente, terras finais do concelho de Mação e termos da Serra e Alcaravela. 

Ainda se não vislumbrava sinal de sol no penedo da Lameira, Vale da Mata e Eirinhas e já o coruto do cabeço do loureiro, reflectia a luz que lhe chegava mais temporã.

Um desperdício, dizia o velho Tonho Roçador; lá, onde até os melros, tordos e perdizes se vão esconder, porque não aparece vivalma, já está quentinho. Aqui onde até os dedos se nos enregelam, com o codo das manhãs frias, só daqui a uma boa meia hora virão, a medo, as primeiras réstias de sol.

E ainda se diz que o Criador fez tudo bem feito! 

Eu, que já levo calcorreadas muitas milhas deste mundo, que já fiz de tudo um pouco, esgravatando o sustento para mim e algum para trazer para os meus, não tenho nada a não ser a força do meu trabalho; outros, nada fizeram, nem fazem e têm tanto que nem sabem o que é seu.

Está tudo bem feito, está! Para eles, pela certa; para mim, acho que não, e parece-me que sempre mereceria um pouco mais.

É verdade que nos quatro anos que andei na escola, eram mais os dias em que fugia para a ribeira, ou para a galderice, que aqueles que dedicava ao único trabalho que tinha na altura. Mas, era uma criança! 

E, de conclusão em conclusão, lá ia roçando o mato; trabalho que fazia com desembaraço e pelo qual era pago com dois ou três escudos acima dos outros ganhões contratados para o mesmo efeito.

Quando endireitava as costas para acigarrar, ou para urinar atrás de um pinheiro, encarava com o cabeço loureiro e dizia: até tu foste desenhado, pela Natureza, maior que os outros. E para quê, se ainda acabas por valer menos! Sim, que lá nos teus altos, onde já subi uma vez, o vento e o frio não deixam vingar nada e pouco mais lá vi que ervas rasteiras e água fresca. 

Entretanto, já com a encosta bem coberta de sol, e umas boas de dezenas de paveias de mato e carquejas roçadas pelo Tonho, chegava o Ti’Abílio da Júlia, com o almoço de pão, azeitonas, queijo e um naco de toucinho, para servir de repasto a meio da manhã e fazer o lastro para o palhinhas de três litros de vinho da produção da casa.

Antes porém, apertava os safões, metia as dedeiras de canas nos dedos da mão esquerda, tirava a roçadoira da saca e alinhava junto do Tonho, até que as sombras diminuíssem e chegassem as horas de almoço.

O Ti’Abílio, marcou um terço do corte para si e deixou os outros dois para o companheiro. E mesmo assim, passado algum tempo já a linha do corte ia avançada do lado do Tonho e atrasada uns metros do lado do patrão. 

O almoço caiu bem, a pinga foi gabada pelos dois e, como era hábito, lá vieram as tiradas do Tonho:

Oh! Ti’Abílio, vomecê também acha que a Natureza está toda bem feita? Estive, esta manhã, a olhar além para o cabeço do loureiro e, enquanto eu aqui cheguei a ter de esfregar as mãos que o codo eriçava o mato e arrefecia demais os ossos, lá, onde só algum pássaro ou qualquer outro bicho se encontraria, já o sol brilhava e, certamente, aquecia. 

E quem seria o gajo que inventou o dinheiro? Se não foi um grande lorpa há-de ter-se aviado bem! Mas os que a seguir o dividiram é que devem ter sido uns bons asnos: uns, nem sabem o que lhe hão-de fazer e outros, mal o vêem já lhe deram o destino.

Que lhe parece Ti’Abílio? 

Olha Tonho, em muitas coisas terás razão. Trabalhas de sol a sol e não sais da cepa torta.

Eu, que tive pais e sogros que me deixaram alguma coisa, trabalho tanto como tu e o que te parece? Achas que nado em abundância?

Às vezes basta uma aragem fora de tempo, umas chuvadas mal caídas, ou uma moléstia no gado e lá vai tudo por água abaixo.

Andamos aqui os dois a roçar mato, tu, és o melhor neste trabalho e não tens um dia sequer para descansar e ganhas mais que os teus camaradas que igualmente trabalham.

Ao fim do dia levas a tua soldada e eu? Se passar por aí o lume, se me vierem roubar o mato já roçado, se a terra não produzir, o que apuro ao fim de tudo? 

Não é que estejas, ao fim e ao cabo, melhor que eu. Levantaste-te mais cedo, sentiste o codo e aqui, nesta chapada, o taró que vem além dos lados de Vila de Rei é muito pouco amigo.

Mas tens saúde, vives honradamente, és livre, respeitado e… há por aí muitos mais desgraçados! Que isso não és, nem nunca foste! Graças ao teu trabalho e à tua honra e dignidade de homem. 

Quanto a tudo ter sido bem feito ou não, nem sei que te hei-de dizer? Já tenho a minha quantidade de histórias e por mais que pense, ainda não cheguei a nenhuma conclusão.

Mas, duma coisa tenho a certeza: se cada um fizesse as coisas como entendesse, então é que a desgraça seria total. Disso não me resta dúvida nenhuma. 

Olha, acabo por olhar para o cabeço do loureiro e ver que apesar do frio e do vento, andam por lá os passaritos e crescem lá ervas e flores.

Um dia, num sermão da Quaresma, ouvi um pregador dizer:

Olhai os lírios do campo, ninguém os semeia, rega ou alimenta e crescem lindos e maravilhosos!

E as aves dos céus, não semeiam nem colhem e têm sempre a mesa posta e a comida na mesa!... 

E recordo também aquele pastor que deitado à sombra duma azinheira, olhou para cima e pensou com os seus botões: como é que se pode dizer que a Natureza fez tudo bem feito! Uma árvore tão grande com frutitas tão pequenas – as bolotas – e além, aquela aboboreira, tão insignificante que nem é capaz de se erguer, com frutos daquele tamanhão - as abóboras -.

Afinal há muitas coisas, na criação que não fazem lá muito sentido.

E, mergulhado nos seus pensamentos, adormeceu…

Porém, passado um bom bocado, acordou estremunhado com uma bolota que se desprendeu da árvore e lhe acertou na testa, fazendo-lhe um pequeno galo.

Esfregou os olhos, olhou para a bolota que caíra, voltou-se para a abóbora que ali estava na horta e penitenciou-se de ter feito reparos à obra do Criador!

Olha se fosse como eu queria e as abóboras fossem geradas lá nos ramos das azinheiras!

E, ao levantar os olhos, reparou na atenção que o Tonho tinha dado a todas as suas palavras.