Meu pai e minha mãe na horta dos Brejos
Quase todas as Terras, sobretudo nas nossas Beiras, têm um, ou vários brejos.
Mas, contrariando a etimologia e significado literário da palavra, a maior parte dos brejos não são terrenos baldios e incultos, matagais, pântanos ou lamaçais.
São, de um modo geral, conjuntos de pequenas hortas, onde a água abunda, situadas no cimo dos vales, bem expostos ao sol e bastante arborizados.
Não longe das povoações são os lugares mais apetecíveis para os pequenos canteiros de toda a espécie de legumes, para os mimos das casas e, geralmente bastantes árvores de fruto e, não raro, também, bastante verdura nos valados, com trepadeiras e tapetes de fetos e musgos sobre o solo.
Uma coisa atrai a outra e, assim, facilmente se compreende a grande variedade de passarada, que aproveitando o ambiente para nidificar, acaba por ficar por ali e fazer pela vida, uma vez que abundam os meios de sustento, desde frutos a gramíneas das mais variadas espécies a todo o tipo de pequena fauna, tão propícia à alimentação das diversas aves.
Especialmente na Primavera, é digna de audição a variedade de trinados das aves que, por lá, se atarefam no arranjo dos ninhos.
A avaliar pelo desbaste que davam nas uvas das parreiras que emolduravam a horta dos vimes, deviam andar bem gordos e anafados os melros do cimo dos Brejos.
E nem se davam ao trabalho de catar os bichitos que acabavam por dar cabo da fruta; com o calor, erva até querer, água sempre a correr e a sombra das laranjeiras, estavam nas suas sete quintas, os gafanhotos, grilos, lagartas, e um sem números de pequenos animais que por ali viviam.
Porém, os bagos de uva, cheinhos e reluzentes, eram mais substanciais e, por isso, os eleitos para os bons repastos.
Aquilo é comer e forricar, como dizia o meu avô, lamentando a vindima antecipada daquelas videiras; mas, tudo tem direito a viver e, sempre um ou outro acaba por pagar com a vida e fazer um belo caldo.
Mas são poucos os que se deixam enganar pelas costelas, boízes, laços e pedradas; pousam nos espantalhos e riem-se de nós com um bago no bico.
E já reparaste de que cor são os bicos dos melros?
Bem amarelos!... Sinal de esperteza e malícia.
Quando dão por nós, ali pela horta, dão meia volta, vão até ao cabeço do Lavadouro, ou mesmo até à Lomba e acabam por vir passar a noite aqui debaixo das nossas videiras.
Assim, ainda mal nasce o sol, já os estardalhos têm o papo bem cheio e, na maior parte dos casos, já foram dar uma barrigada aos pequenitos que ainda estão no ninho.
Só temem duas coisas: um gato bravo que por ali se abastece de carnes e as cobras, que também os perseguem.
Já quanto a nós, nunca se viu maior descaramento.
E enquanto comem nem cantam. Parece que aprenderam com o velho ditado da sabedoria popular: ovelha que berra é bocado que perde.
Um dia, vi o meu avô a limpar e consertar uma velha gaiola abandonada lá por casa.
Perguntei-lhe para que queria semelhante coisa, pois ainda devia lembrar-se que, desde que vi os pintassilgos do nosso quintal a envenenar os filhos presos nas gaiolas, jurei, que nunca mais prenderia nenhum passarito. E também não me parecia bem que o meu avô o fizesse.
O bom homem, aproveitou para, mais uma vez, me transmitir toda a sua grande humanidade e respeito pela natureza:
Os passaritos que aqui metias, não eram predadores de carreiras de videiras que deixavam totalmente vindimadas.
Se queres a minha opinião, também não concordo com esta experiência que vou fazer, mas nesta altura aquilo já atinge tamanho de verdadeira praga e, as pragas são prejudiciais e acabam por ser reguladas pela própria Natureza.
Então os gatos que acabam por eliminar alguns ratos e, como te disse, também os pássaros, as cobras, as aves de rapina – nunca viste os milhanos a pairar lá no ar? Que julgas que andam a fazer? – E as raposas não acabam a comer os gatos?
É provável que eu não tenha argumentos para te convencer.
A razão que te levou a por de parte as gaiolas é muito forte e digna de respeito.
Mas, na Natureza, há leis naturais que regulam a conservação das espécies: no mar, há peixes que se alimentam de outros peixes e que são, por sua vez, comidos por outros.
Em terra, há toda uma cadeia de espécies em que os que comem, acabam comidos.
Até com os homens se passam coisas muito estranhas, que condenamos, mas existem, desde que o Mundo é Mundo e sempre hão-de existir: guerras, latrocínios, tiranias, escravatura.
A lei do mais forte, do mais rico, do menos leal, do menos honesto!... E:
Hás-de ver muitos pés pisarem os de baixo – não ponhas o teu!
Hás-de ver muitas faltas de respeito, de dignidade, de honradez – esquece isso!
Hás-de ser tentado a ser pior que o que julgas mau – não desças, recusa o fácil!
Hás-de sentir-te injustiçado e ver subir outros piores que tu – aguarda a tua vez!
Como prova de que ouvi, percebi e aceitei os teus princípios, vamos partir a gaiola!
E, que me conste, nunca mais se fizeram gaiolas lá em casa!....