quarta-feira, 16 de maio de 2012

O lobão dos Bandos



Constava, entre os pastores dos Santos, que o maior lobo dos Bandos ia, todos os dias, beber água ao Casal dos Brejos, porque aquela água o tinha curado de um envenenamento, provocado por uma armadilha em que tinha caído, para os lados da serra do Caratão. 

Combinaram que haviam de se certificar sobre os hábitos do lobão – assim chamado por ser a maior fera em todas as serras dos Bandos e o autêntico rei daqueles predadores em todo o centro do País -. 

Foi escolhido o Zé de Aldeia de Eiras, mais velho dos pastores das redondezas, para analisar os locais, hábitos, cuidados a ter, horas e rotinas e tudo o mais que pudesse saber, com vista à elaboração de um plano para capturar a fera e eliminá-la, pois, só nos primeiros quatro meses desse ano, a sua matilha já tinha dado cabo de nove ovelhas, três cabras e meia dúzia de cabritos. 

Para o ajudar, no estudo do inimigo, o Zé escolheria três pastores. 

Também cinco cães tinham ficado inutilizados e outros tantos apanharam tais receios que fugiam a sete pés, sempre que andasse fera por perto. 

E os pastores não confessavam, mas tremiam de terror só de ouvir falar no lobão. 

O grupo, chefiado pelo Zé, incluía um pastor dos altos do Castelo, outro dos Santos e um terceiro do Caratão. 

O encontro seria meia hora depois do por do sol, atrás da capela do Castelo. 

Podiam levar arma para legítima defesa, se necessário, cajado com moca ferrada e faca de mato. Nada de cães. 

No primeiro dia, foram subindo no monte de forma a chegarem às vistas da represa dos Brejos já depois de escondida a lua e, sob orientação do Zé pastor. 

Como o vento, embora suave, soprasse de norte, fizeram a aproximação pelo lado sul, evitando assim o cheiro de bicho homem que a fera lobo apanhava a quilómetros de distância. 

Colocaram-se numa roda, de costas uns para os outros, espreitando as redondezas e de ouvido alerta para averiguarem tudo o que mexesse nas proximidades do Casal e da represa. 

Até ao romper da manhã não houve qualquer movimento nas áreas vigiadas. 

Quando o Sete-estrelo se escondeu, desceram para o local de partida e cada um foi para sua casa, combinando para meia hora depois do sol-posto novo encontro, para mais uma noite de vigília. 

Na segunda jornada, aí pela meia-noite, ouviram uivos em diversos picos distantes; não era muito de acreditar que viesse alguma coisa, mas havia que esperar. 

Olharam uns para os outros e o pastor dos Santos identificou a origem dos uivos que desencadearam as respostas, como partidos dos lados do Caratão, ou mesmo Vale do Grou e um último uivo teria sido emitido ali perto, por trás do Bando dos Santos. 

Depois, por volta das duas horas, um casal de rapositas, envolvidas em derriços, andaram por ali, calmamente. 

Mau sinal, disse o Zé; andarem tão à vontade é sinal de que não andam ali feras; vamos ter outra noite sem ver nada. 

Voltaremos amanhã e tantos amanhãs quantos forem preciso, pois a terra há-de dá-los. 

Ouviram dizer que ontem fizeram razia em dois rebanhos: um de Domingos da Vinha e outro de Alvisquer? E, pelos sinais, deve ter sido a nossa fera e a sua matilha. 

Na terceira noite, soprava uma brisa forte, dos lados do mar, mesmo ali por baixo de onde o sol se escondera. 

Redobraram de cuidados na aproximação e logo depois do lusco-fusco ouviram uivos de chamamento não longe dos cimos que vigiavam. 

Esfregaram as mãos de contentamento e, uma boa hora depois, desciam dois lobos, de orelhas muito arrebitadas e andar cauteloso. 

Estariam a uns quinhentos metros, da represa dos Brejos, do outro lado do grupo. 

O Zé de Aldeia de Eiras, fez sinal de silêncio e mostrou esperança de que atrás da guarda avançada viesse o lobão, que anda sempre bem guardado. 

Mais uns dez ou quinze minutos e, depois daqueles dois beberem uma barrigada de água, se não derem sinal, estou que irá beber o chefão. 

Servem de batedores e, ao mesmo tempo, de provadores da água, por causa dos venenos. É que o machacaz já ia indo desta para melhor e agora só bebe pelo seguro; é finório. É, com certeza, mais esperto que muitos de nós, que por aí andam. 

O lobão com um aspecto imponente, foi, finalmente, avistado pelos quatro pastores. 

Nunca imaginaram que houvesse uma fera daquele tamanho, com uma cabeçorra descomunal e uma bocarra que metia, seguramente, de uma só vez, uma rês de umas duas arrobas. 

Parecia meio desconjuntado de quartos traseiros, mas também não precisaria de fazer grandes corridas, pois trazia sempre protecção e seria muito difícil cair em esparrelas. 

Parou, a poucos metros da represa, esteve ao pé dos dois lobos que chegaram antes e chegando-se à água, bebeu durante largos minutos: acho que por várias vezes, comentou o Zé. 

Olhe que me fez perder três noites, mas teria perdido outras tantas se soubesse a corpulência do demónio do bicho. 

Não dá para descrever: é imponente; um autêntico rei dos animais, pois não creio que outro bicho seja capaz de se lhe adiantar; aquela bocarra mete respeito. 

Os colegas de vigília, igualmente admirados, só desejavam nunca o ter cara a cara. 

Depois de beber, bateu com o focinho nos outros dois, que estavam ali mirando tudo em redor e se puseram a andar até uma portelita ali perto. 

Foi a vez do lobão se deitar, aí a uns quarenta ou cinquenta metros e chegarem depois os restantes dois que, até então, ainda não se tinham mostrado. 

Aproximaram-se da represa e foram beber também; um de cada vez e sempre vigiando a área. 

Terminado o abastecimento ficaram por ali, afastados e de protecção ao rei que parecia estar dormitando. 

Aí umas duas horas depois, o lobão ergueu-se, uivou, prolongadamente e ouviu as respostas vindas dos cumes vizinhos, parecendo que estava tudo calmo. 

Sempre a passo, com os dois mais pequenos na frente e os dois mais encorpados na retaguarda, desceram a encosta, atravessaram a linha de água e caminharam encosta acima rumo ao topo do Bando dos Santos, onde, segundo consta estão as grutas que lhes servem de esconderijo, durante o dia e quando pressentem perigo, ou não têm necessidade de ir caçar. 

Estava agora definido o caminho de aproximação à represa dos Brejos e a volta para os refúgios algures lá nos altos das penedias do cume dos Bandos; a organização das guardas e a protecção do lobão. 

Mas não se pense que andavam escondidos ou com ares de receios: marchavam lentamente, paravam nos altinhos para observarem tudo em volta, contactavam uns com os outros. 

Até parecia uma patrulha como as que o Zé fizera na tropa, em Abrantes. 

Não se afigurava fácil apanhar de surpresa o lobão; antes de chegar a ele haveria de se encontrar as guardas avançadas, ou a cobertura de retaguarda. 

Mesmo em ataque, a matilha nunca se expunha toda ao mesmo tempo e retirava com ordem, como qualquer organização inteligente. 

Lá em cima, nos penedos do Côxo, sítio mais elevado e agreste destes Bandos daqui, há grutas onde as feras se reúnem e onde são distribuídas as missões de caça, de vigia, de protecção ao Lobão e até se combinam os acasalamentos entre as várias crias, enquanto estas crescem. 

Diz-se que, há muitos anos atrás, um homem viveu largos anos entre as feras que um dia o encontraram caído na serra, bêbedo e sem sentidos. 

Como os lobos raramente atacam os humanos, acabaram por levar o pobre infeliz para as suas grutas e ali lhe lamberam e curaram as feridas, lhe deram sempre carne fresca da boa e da melhor e acabaram por entender a linguagem gestual do homem e também fazer-se entender. 

O pior foi quando o homem, restabeleceu as forças e, cansado de viver entre os lobos, tentou ir-se embora. 

A uns quinhentos metros da toca onde estava guardado, um dos lobos que sempre o acompanhava, apercebeu-se que ele se preparava para partir e colocando-se à frente dele impediu-o de fugir, fazendo uivos de pedido de socorro, até que dois lobos lhe pegaram pelos restos de trapos que o cobriam e o levaram para as tocas. 

Só uns anos mais tarde, na confusão de uma batida, o homem conseguiu fugir. 

Porém, sempre que contava a sua história, acabava por se mostrar arrependido; estava bem melhor no meio dos bichos que aqui no meio dos homens! 

E depois das lendas, seguem-se as histórias: 

Dizem, os mais antigos, que o Senhor Doutor Samuel que tantas vezes atravessou os Bandos, montado no seu cavalo, para ir tratar os seus doentes por essas aldeias fora, foi socorrido pelos lobos dos Bandos, quando uma noite caiu do cavalo e ficou gravemente ferido. 

Foi aquecido e reanimado pelas feras e arrastado para local visível e de tal forma foram sentidos os uivos que as buscas acabaram por dar rapidamente com o médico e conseguiram salvá-lo. 

O Senhor Doutor Samuel sempre alegou que não se lembrava bem do que se passou, mas admitia que não tinha qualquer receio dos lobos; porque esses, dizia, não nos fazem mal! 

E rematava, sempre: 

Não há memória de um lobo ter feito mal a uma criatura humana.