terça-feira, 29 de maio de 2012

A folhinha das luas


Depois da ceia e das orações que a terminavam, o meu avô subia os três degraus entre a cozinha e a casa de cima, abria a porta da rua, rodando a aldrava, e ao canto do portão que dava para a tapada, fazia a sua última necessidade do dia, em pleno monturo que, naqueles tempos, revestia as ruas da aldeia. 

Voltava para a porta e, antes de entrar, mirava o céu, fixava-se no cata-vento da torre da capela do Sr. dos Aflitos – orago da terra – e voltava a entrar em casa, encostando a porta de cima, que sempre ficou no trinco, e descia até à lareira, onde, sobre a fogueira, fervia o caldeiro das viandas dos porcos. 

Chegado ao seu lugar, ao canto esquerdo da lareira, esticava a mão e retirava de um prego espetado na parede por baixo do vão da chaminé, a “folhinha das luas”, para dar ao neto que estivesse mais perto e perguntar como ia estar o tempo no dia seguinte. 

Depois de ouvir o que lhe liam, concordava ou discordava, segundo o que tivesse visto na observação do cata-vento e combinava com o meu pai os trabalhos para o outro dia. 

Os meus pais iam para a casa-nova, lá nas oliveiras da Horta Velha, passando antes pela taberna para avisar alguém sobre os trabalhos do dia seguinte, ou iam mesmo dar o recado, quando havia alterações ao combinado, às pessoas que habitualmente trabalhavam lá em casa. 

Nós os três – eu e meus irmãos – dormíamos na casa do Casal, com os avós e, normalmente ficávamos mais um pouco ao lume, pelo menos até se acabarem os madeiros, ou as chapotas, debaixo do caldeiro. 

A minha avó, rezava o terço e pendia, sendo mandada frequentemente para a cama, pelo meu avô, que aproveitava para contar umas histórias, ou dizer umas décimas de alguma cantiga de que mais gostasse. 

Era um excelente contador de contos e histórias, mas nunca o ouvi cantar uma cantiga, nem sequer assobiar uma moda. 

Já o meu pai, assobiava maravilhosamente, tinha entoação e gosto. 

No serviço militar, apresentou-se em Abrantes e não passou despercebida a sua queda para a música, tendo sido ensinado a tocar clarim, sem saber ler, sem conhecer uma nota de música e tendo apenas tocado o pífaro, de cana, atrás do gado. 

Por toda a vida teve, na sua especialidade da tropa – soldado clarim -, uma das suas coroas de glória.

E, orgulhosamente, acrescentava que aprendeu de cor os cento e cinquenta e três toques – na altura usava-se o clarim para tudo – e nunca foi castigado, ou chamado à atenção, por se ter enganado. Só não foi cabo clarim, porque não sabia ler, nem escrever. 

Meu avô, era um homem de estatura abaixo da média e franzino, de compleição física; dizia que passou dos dezoito para os dezanove anos por milagre, pois as maleitas que naquela época levaram muitos outros, mais valentes que ele, achacaram-no bastante, mas não o suficiente para o derrubar. 

Curou-se, mas na altura das sortes ainda ninguém dava nada por ele e por isso andou uns vinte anos a pagar a taxa militar, pois ficou livre. 

Desde então sempre teve saúde e a única coisa que o afligiu muito foi uma dor ciática que acabou por ser curada por um senhor de Chão de Mação, que lhe queimou um nervo dentro da orelha e foi remédio santo. 

Foi para lá de carroça, a contorcer-se com dores e veio de lá ao lado do carro, a andar normalmente. O teu pai é testemunha!... 

Santo homem aquele que nunca me cansei de recomendar a quem via com a maldita dor e sempre abençoei os dez mil réis que me levou pelo tratamento. Ainda me lembro que me pareceu assim como uma ferroada de abelha a morder na orelha, depois, quando dei por mim, nem me lembrava já da ciática. 

O meu avô contava muitas histórias e tinha muita habilidade para arranjar cenários e casos, quando queria ensinar alguma coisa. 

Preferia essa técnica a dar a entender que estava a dar uma lição – dizia que de muitas coisas nós já sabíamos mais do que ele e essas ele não podia aprender; de outras poderia ele ensinar-nos, assim nós quiséssemos aproveitar. E olhem que muitas dessas não vêm nos vossos livros. 

Detestava e não perdia muito tempo com fala-baratos e com quem se gabava muito de teres, sem explicar haveres; preferia mostrar dez e ter cem, que ter cinco e passar por senhor de duzentos; quem o enganasse uma vez, podia mudar de caminho, pois dali não levava mais nada. 

Mas recordo-me que ressalvava, sempre, um dito do povo com que discordava: “valem mais cinco de tarimba que dez de Coimbra”. 

Não estou de acordo porque uma coisa não substitui a outra e são as duas importantes na vida. Devemos respeitar a experiência de cada um, mas em Coimbra aprendem-se coisas que a experiência não é capaz de nos dar. 

Não direi que assim falam os filósofos, mas o meu avô também tinha a sua filosofia. 

Estas eram algumas das práticas que ia metendo nas conversas, mas sempre forjando personagens para dar corpo às suas doutrinas. 

Era um homem sereno, analfabeto, razoável em memória, bom nas contas de cabeça mais elementares, sério e confiado e, acima de tudo, meticuloso, calculista, programador de tudo o que fazia e mandava fazer. 

Ouvia antes de decidir: o meu pai, os homens que o acompanhavam nos trabalhos lá de casa, os netos quando vinham do colégio, e, se não ouvia mais, pelo menos publicamente, as mulheres de casa é porque talvez não estivessem ao seu nível. 

Um dia perguntei-lhe porque mandava sempre comprar a “folhinha das luas”. Se nem sequer sabia ler, para que lhe servia? E como nós não estávamos em casa, e as pessoas com quem andava todos os dias também não sabiam ler… 

Explicou-me então, com uma limpidez de raciocínio e uma coerência tal, que nunca mais me esqueci daquelas palavras: 

Talvez por causa da folhinha é que vocês tenham ido para o colégio. Todas as cabeças cá da terra me aconselharam o contrário e com razões que teriam convencido muitos; continuo convencido que estavam a ser honestos, pois, segundo me diziam, porque havia de deixar ir embora as pessoas que tinham uma das melhores casas da terra para se governar, não devia nada a ninguém e todos os anos ia mercando, aqui e ali, uma nova courela. 

Para quê ir meter-se em despesas que talvez levassem mesmo a ter de desfazer-se do que tinha adquirido? 

E para quê fazer dos netos aquilo que ele nunca tinha sido? 

Que pegasse num rapaz e o mandasse para o Seminário, ainda vá lá, podia compreender-se!..Agora para colégios, deixe-se disso compadre, dizia o teu padrinho!... 

Ora aqui é que entra a “folhinha das luas”, ao lado de muitas outras ideias que me vêm enchendo a cabeça há muitos anos: desde que tu nasceste. 

Depois sem dar a entender, segui sempre os teus trabalhos na escola. Até mandei saber como te tinhas portado num ano em que foste para casa dos teus avós, na Queixoperra, fazer a segunda classe. 

Em silêncio fui ouvindo e muito contente, porque as três professoras que te ensinaram disseram-me que podes ir longe; que gostavam de te ver professor, talvez para ensinares o avô a ler!... 

Olhava para a folhinha e ficava com ela na mão, horas a fio. Fazia uns riscos num papel por cada pinheiro que contava. Tinha umas pedras para não esquecer alguns dinheiritos que trazíamos por aí a juros…

Até que, um dia, na Serra do Corvo, a roçar mato, levantei-me e disse ao teu pai: 

Oh! Amorim, hás-de ir ali à Queixoperra e perguntar, ao compadre Armindo Pereira, tudo sobre o colégio do Mação. O Zé está a acabar a escola e temos de decidir o que vai ser dos teus filhos. De caminho passa também pela Maria Baleja e pergunta tudo sobre o colégio das Mouriscas, onde anda o dela. 

Como a tarde não ia longe do fim e os chuviscos não paravam, meu pai, arrumou a roçadora, tirou as dedeiras de cana, desapertou as polainas, pôs a saca às costas e preparou-se para partir. Então vou já! Esperem-me para a ceia!... 

Vejo que estás de acordo. Mas pede segredo nos dois lados; não é que precisemos disso, mas não quero que o assunto seja comentado, por enquanto. 

Mesmo lá em casa nem a Carmelinda, nem a tua sogra, precisam de saber nada, para já. Quando estiver tudo decidido e combinado, saberão o que se vai passar. Vai já fazendo as contas, vê o que temos, quanto precisamos e não podemos esquecer que onde for um, hão-de ir os outros. 

Não nascemos para luxos, nem somos fidalgos, mas não quero que façam figuras tristes, pois não serão menos que os outros; pelo menos os mais remediados, como nós. À noite, falamos depois da ceia, no palheiro da mula; até lá, nada!... Foste à Queixoperra por causa duma courela que lá vendem!... 

Fique descansado! Nunca cheguei tão depressa dum lado ao outro, nem quando ia namorar! Isso é o que eu penso, mas… sem a sua decisão; afinal é tudo seu. 

Vai e sabe-me tudo direitinho; há muitas coisas a tratar: em Outubro já o Zé há-de andar no colégio, vais ver!... 

Oito anos depois: seis, em Mação, e mais dois em Lisboa, deram-lhe a felicidade, que presumo deve ter sido um gozo e prazer indescritíveis, de ter o seu neto professor. 

Faço ideia da vontade que teria de gritar e chamar burros àqueles que puderam e não mandaram os filhos e netos estudar. Mas, sempre se dirigiu com humildade e bons conselhos a quem lhos pediu sobre o colégio. 

Que me lembre, nunca deixei um ano sem levar da feira de Mação a “folhinha das luas”, que o meu avô não se esquecia de me pedir. 

Depois, mais tarde, quando fui para Lisboa, mandava-a numa carta, até que… quando no serviço militar andei pela Guiné, soube que meu avô perguntava por mim e gostava imenso de ficar horas a ver as fotografias: gostava mais da de Oficial, em farda de gala, com um bonito boné; as outras, pela farda com camuflado e sempre com metralhadora, ou pelos cenários com muitas matas e poucas casas, não lhe agradavam. 

Acho que sofria como sabia e fazia o que podia: rezava. Tinha os dois netos, ao mesmo tempo, na guerra, na Guiné. 

Dois meses depois de eu voltar da Guiné, no dia do meu casamento, morreu um dos maiores homens que nasceu lá na aldeia. 

Não esperou e, tão tranquilamente como viveu, foi-se embora, não sem antes me dizer: não vale a pena marcarem o casamento à pressa, porque eu não hei-de lá chegar, mas já têm a minha bênção e ficarei a olhar por vocês, até ao fim dos tempos. 

Esta é uma história de gente genuína, tão simples quanto a simplicidade permite e que guardei para este Natal de 2009. 

No 42º Natal em que vela por nós, lembramo-lo, com sentida saudade. 

Que descanse em paz, avô Zé Lourinho!...