quarta-feira, 18 de abril de 2012

A azenha da Renda




O Joaquim Caldaça era filhote da Ribeira das Caldeiras, mas foi muito cedo para a Quinta das Gaias, no termo de Sardoal, junto do ramal da estrada da Venda Nova, a vistas do convento. 


Os pais, caseiros na Quinta de Arcês, mudaram-se lá para cima, por ordem do senhor das terras e porque a Adelaide – mãe do Joaquim – era jeitosa para o amanho dos mimos e muito habilidosa para vender, na praça da vila, as novidades que arranjava na horta. 

O pai, cavador, tanto fazia num lado como no outro. 

Na Quinta das Gaias estava mais perto das tabernas, o que não deixava de ser uma grande preocupação para a pobre mulher. 

O casal tinha quatro filhos, um dos quais – o Joaquim – ainda garoto, que não jogava com o baralho todo – como dizia o pai –, desde que caíra, na ribeira, e batera com a cabeça no chão. 

Na escola primária do Convento, ali à entrada do Sardoal, onde o garoto foi matriculado aos sete anos, mostrou dificuldades, até que, já com catorze anos, fez o exame da quarta classe. 

A partir daí, acompanhava o pai nos trabalhos do campo. 

Porém, dada a frágil compleição física, começou a ajudar os pastores e, sempre que se podia escapar, era vê-lo na taberna, perto de casa, onde passava horas a ouvir histórias de passantes: candongueiros, almocreves, pedintes e gentes dos lugarejos vizinhos, que ali petiscavam e bebiam uns copos, antes de entrarem na vila, onde iam pagar a décima, aviarem uns remédios, ou comprar mercearia. 

Aos baldões, cresceu e fez-se homem. 

Foi-se acentuando o tique no olho esquerdo, que piscava, com intermitência e a claudicação da perna, do mesmo lado, que eram tanto mais notórios quando já estava com um grão na asa. 

Ainda assentou praça, em Abrantes, mas não passou de básico, acabando licenciado, e mandado para casa. 

Numa visita do senhor doutor Simão – um dos genros do patrão –, a Adelaide pediu-lhe que desse um jeito à vida do filho Joaquim. 

A sua grande preocupação era o que haveria de ser do rapaz, quando ela um dia faltasse! 

O doutor prometeu que trataria do assunto e não se esqueceu; procurou um velho amigo – o José Rodrigues – que era o delegado da Hidráulica do Tejo, no concelho de Sardoal e falou-lhe das preocupações da empregada lá de casa, quanto ao filho. 

Sabia que não era muito esperto, mas serviço que se lhe entregasse havia de ser cumprido, custasse o que custasse. 

Óptimo, caro doutor, disse o Rodrigues. Temos aí um lugar de guarda-rios no cantão da ribeira da Serra de Mação e posso propô-lo para lá, se assim quiser. 

Depois o director da Zona aprova e é tudo. 

São uns seiscentos mil réis por mês, mais abonos e uns tostões de deslocações e ajudas, mas também o trabalho não é muito. É um lugar disputado, pode crer. 

Combinou-se que o Joaquim iria à delegação da Hidráulica, na semana seguinte, para preparar o processo e ser elucidado sobre o serviço; começaria também a acompanhar um colega, com quem aprenderia a ser guarda-rios. 

O doutor Simão informou a Adelaide do que se passava e chamou o Joaquim para lhe dizer o que teria de fazer. 

A mãe, lavada em lágrimas, agradeceu como sabia, deixando o patrão muito sensibilizado; o Joaquim, garantiu que o senhor doutor poderia ficar descansado que, pela parte dele, nunca ficaria mal. 

Na segunda -feira seguinte, às nove horas, apresentou-se, ao chefe da delegação da Hidráulica do Tejo, no Sardoal, o Joaquim Caldaça, candidato ao lugar de guarda-rios. 

Às perguntas do costume, o Joaquim respondeu, naturalmente e, no fim, ouviu a explicação do chefe sobre o Cantão, o serviço, os deveres e regalias com que iria contar e aceitou tudo, sem pestanejar. 

Voltaria, dali a duas semanas para saber qual o Despacho do Senhor Director, de Santarém, ou receberia recado, lá na Quinta. 

O “cantão”da ribeira da Serra era dos mais pobres do concelho; ribeira pouco caudalosa, sem obras de arte nem engenhos, dignos de registo. 

As povoações que servia pertenciam a Mação e Sardoal e não havia problemas com o anterior guarda-rios – o sr. Grácio – que deixara de trabalhar, havia três meses, por se ter reformado. 

O serviço consistia em acompanhar os proprietários das margens da ribeira, desde a Lameira da Serra, passando pela Saramaga e Pisco, até ao Pisão. 

Dali em diante era outro Cantão – ribeira de Arcês e, depois, das Caldeiras. 

O leito da ribeira deve andar sempre limpo, as licenças dos açudes, em dia, e a meia dúzia de azenhas, visitadas, de vez em quando. 

O Cantão é percorrido todos os meses – usará a bicicleta do serviço e as pernas, pois a maior parte do serviço é feito a pé. 

O Ti’Joaquim, como o conhecemos, petiscou, na nossa casa, muitas vezes; não tinha grande custo pelo que comia; valia por dois, ou três, no que bebia. 

Depois de jantar, dirigia-se ao local de trabalho – a ribeira – e, numa boa sombra, ferrava o galho, até à tardinha. 

Seguia, depois, ao longo da ribeira; falava aqui com um meeiro que trazia o açude aberto, além com outro que cortava umas balças e, para todos, tinha uma palavra, em geral apreciada. 

Aproveitando as deslocações, como dizia, passou muitas noites em palheiros ou outros cómodos junto das azenhas, onde asilava uns petiscos e acamaradava com os moleiros, ao serão. 

Em casa não tinha ninguém; nunca se casara, a mãe já tinha morrido e o pai andava por casa dos irmãos, passando o resto dos dias. 

O Ti’Amorim, da Serra, – meu pai – era exemplar, como dizia o Caldaça. 

Pagava as licenças dos quatro açudes – uma meia folha de papel selado e quatro mil réis de selos fiscais – sempre na hora, isto é, quando lhe pedia. 

Um dia, meu pai perguntou ao sr. Joaquim – como costumava tratá-lo –, o que era preciso para fazer uma azenha, no cimo da horta da Renda, logo junto do açude. 

Pensou que podia ter ali uma bela horta, pois as maquias que dava aos moleiros nos taleigos para a farinha dos porcos somavam muito, cada ano. 

Parece que estou a ver o ar solene do guarda-rios, sentado connosco à mesa, falando e bebendo, a perguntar ao meu pai que tipo de engenho queria licenciar, que caudal iria utilizar, quais as confrontações da construção, se iria usar alvenaria ou madeira, etc. 

A resposta foi muito simples: uma pequena casinha, aí com três metro por dois, coberta com uma placa de cimento, destinada a moer só para a nossa casa e, evidentemente, quando houvesse água no açude e não fosse época de regas. 

A levada entre o açude e a azenha seria reforçada. 

Bem, não é o que eu estava a imaginar. Sendo um pequeno engenho, construído no que é seu, para uso particular e fora do caudal principal da ribeira, não precisa de grandes coisas: falo com o meu chefe Rodrigues e trato-lhe de tudo. 

Vai demorar uns dias, porque a autorização tem de vir de Santarém, mas é de pouca monta. 

Estão ainda no local as paredes e a placa; no interior havia, até há pouco, uma maceira e outros apetrechos, de madeira, carcomidos. O eixo e o rodízio, foram devorados pela ferrugem. As mós estão, uma sobre a outra, prontas a moer. 

Os ratos, mesmo sem grão, continuam a usar o espaço como habitação e refúgio de predadores. A porta, de madeira está calcinada e reduzida a cinzas. 

Um dos meus gostos seria voltar a pôr a azenha da Renda a moer milho e centeio – só para a “casa “ – que também já não existe. 

O seu arquitecto e construtor não teve olhos para vê-la, nos últimos dos seus noventa e seis anos. 

Todavia perguntava, por vezes, como estava a azenha da Renda, se fora restaurada e ainda poderia moer uns taleigos. Foi um homem zeloso e muito equilibrado, empreendedor quanto baste e bom e zeloso administrador do que havia em casa.

Era ele: 

Meu pai, analfabeto, que, já adulto, ainda aprendeu a fazer o seu nome e a ler e escrever pequenas frases – o suficiente para se fazer entender. 

Meu pai, que, sem saber uma nota de música, foi escolhido para “clarim”, do regimento de Abrantes, onde serviu, como soldado, e, orgulhosamente, se ufanava de saber de cor todos os cento e cinquenta e três toques, que aprendeu, de ouvido. 

Meu pai, que, em sintonia com meu avô – seu sogro –, foi dos primeiros da aldeia a mandar estudar os filhos, “para que fossem mais do que ele”, como orgulhosamente respondia aos seus críticos, lá da terra. 

Meu pai, que, em questões de equilíbrio e bom senso, nada ficaria a dever aos bons gestores da nossa praça: nunca teve grandes meios para administrar, mas aí reside a sua grande sabedoria, fazendo com que nunca faltasse o essencial. 

Meu pai, que tantas noites passou a dormitar ao som da azenha da Renda: que sonhos e projectos não terão tido lugar entre aquelas quatro exíguas paredes! 

Meu pai, que um dia viu partir os dois filhos, em simultâneo, para a Guiné, fazer a guerra. E, com o mesmo coração, que terá sangrado mais de ano e meio, acompanhou, com garbo e orgulho, um deles, num dez de Junho, a Elvas, onde assistiu à condecoração, que lhe foi imposta. 

Meu pai, onde – até aos noventa e seis anos -, esteve a fonte e inspiração das virtudes que defendo e recordo, os princípios que a Sociedade actual teima em esquecer, ou mesmo banir, mas continuam a distinguir e dignificar os homens – sejam eles cultos, sejam analfabetos –.