quarta-feira, 11 de abril de 2012

A cabana do Ti’Zé Maria



À entrada do Ribeiro, onde saía o beco para o fim da azinhaga da Bica, derivando para a casa do Ti’Jerolme Alves, um pouco antes da curva do caminho, estava a cabana do Ti’Zé Maria. Dali seguia-se para a Amarela e Barreirinhas, até à igreja, ou virava-se pela azinhaga acima até à Bica. 

Sempre bem atapetada de palha, com os arreios e a carroça, ao centro e na parede de trás, sobre o arado, a grade e a aguilhada que conduzia e espicaçava os bois, quando puxavam o arado, ou a carroça, era poiso certo do Ti’Zé Coroado que ali exercia a sua arte – cesteiro. 

Quando chegava o Outono e o sol mal saía de riba do outeiro do Pito do Cerro, as águas do ribeiro começavam a engrossar e havia dias em que não se podia sair para os campos. Abria-se o gado e faziam-se trabalhos nas hortas ao pé da porta. 

Era o melhor tempo para o cesteiro começar a fazer as encomendas e ir a casa de alguns fregueses fazer cestas, cestos e canastros, segundo se destinassem a trazer na mão, à cabeça e ao ombro, ou na carroça com as uvas e a azeitona. 

As cestas e os cestos eram feitos de vimes e os canastros de vergônteas de freixo, transformadas em fitas, com o auxílio de uma faca grande montada sobre um suporte de tábuas de pinheiro. Parecia que se estavam a fazer correias, só que eram de madeira branca. 

Havia, na terra o mestre José Coroado e mais dois “curiosos” que ele tinha ensinado. Para cabazes de mão, açafates, peças de mesa e adornos de casa, era sempre chamado o mestre; para peças mais grosseiras e destinadas a transportes servia qualquer dos três. 

O Coroado levava dez mil réis por dia, comidos; os outros levavam sete mil e quinhentos, comidos – dizia o meu avô, que acrescentava: mas vale bem a pena, pois é outro trabalho e outra limpeza, além do desembaraço. Nos vimes cá de casa só deita as mãos o compadre Coroado; obra que faz dura três ou quatro vezes mais que as dos outros trapaceiros. 

E explicava-me o que eu gostava imenso de ouvir: o segredo dum bom trabalho de verga está no começo e no arremate da obra; vês aqui estas guias mais grossas que se cruzam no centro do fundo e só vão acabar já nas asas? E as fitas mais finas que tecem a peça, que nunca começam no mesmo sítio, deixando as ligações desencontradas e não tirando, por isso, a resistência? E a arrematação que mais parece uma corda que uma borda de cesto de vime? É nisto que se distingue o trabalho de quem sabe do daqueles que ainda têm muito que aprender, se lá chegarem. 

Na cabana, ali à volta do cesteiro, juntavam-se os garotos e, se chovia muito, também os homens por lá acantonavam. 

Às tantas, enquanto já corria de mão em mão a pichorra do vinho, que de golada em golada ia ficando vazia, aparecia um açafate de passas pingo de mel e uns bolinhos feitos pela Ti’ Maria Freira que a garotada apreciava sobremaneira. 

Vinham a seguir as adivinhas em que o João do Ribeiro e o Casimiro eram os maiores barras. 

Num canto, em cima do fundo de um cesto virado com a boca para baixo, o Jaime e o Florêncio disputavam uma partida de damas. Eram dois campeões da terra e cada um tinha a sua claque. Porém toda a gente seguia silenciosamente as jogadas, esperando que uma dama comesse quatro ou cinco pedras. 

Do outro lado, sentados nuns mochos, em volta de um tambor de petróleo com a boca para baixo, servindo de mesa, jogava-se uma rija partida de sueca: O Laurindo Machado e o enteado, contra o Zé Lourinho e o pai. No papel pardo, rasgado de um saco de cimento, ia fazendo a escrita, muito compenetrado, o Salvador, dando ênfase especial à letra R, sempre que se fazia uma rapa, também chamada limpa, ou chita. 

No meio da rua, quando não chovia, jogava-se o chinquilho, onde o canhoto Armando era o rival do Ti’Américo que, não só na caça, mas em tudo o que metesse pontaria, era imbatível. Só perdia para o Armando e poucas vezes. 

Mais ao fundo da rua, os candidatos a homens, ou brincavam à saca, ou jogavam à pata – que nalgumas terras se chama jogo da bilharda –. 

Havia ainda uma figura típica que passava algumas vezes e era adorado pela garotada, quer estivesse a contar histórias, quer trouxesse um livro de que lia contos e relatos de aventuras. 

Era o Ti’João Sabino, que ia aproveitando a sua arte para meter pelo meio das histórias, anedotas, adivinhas e leituras, as passagens do Catecismo, pois era o principal ajudante desses trabalhos, lá na capela. 

O homem mais velho da terra era o Ti’Adriano Ventura; dizia-se que havia de andar pelos cento e tal anos, fizera a guerra na França, e muitos anos antes, estivera nas tropas que prenderam o Gungunhana, no norte de Moçambique. 

Via muito pouco e ouvia ainda menos; era uma enciclopédia de histórias e não havia bicho da África que não tivesse morto, ou prendido. 

Até uns lagartos com para aí dois metros de carcaça, que abriam muito a boca, mostrando uma grande fiada de dentes, e fugindo para a água dos rios quando nos chegávamos a eles, tinham ficado esticados pelas balas da sua mauser. 

Elefantes, com dentes de perto de um metro, eram às dúzias. Bem, quando começava a contar as suas grandes aventuras nunca mais se calava e, na maior parte das vezes, era o sobrinho que acabava por chamá-lo, pois o sol já se tinha posto e eram horas de ceia. 

Esta era a terra onde passei um ano, em casa dos meus avós paternos, para fazer a segunda classe. Relembro com saudade e mantenho a admiração pelo que soube, anos mais tarde, ser o espírito de solidariedade e boa vizinhança, muito cultivado na aldeia. 

Ainda hoje, as gentes da Queixoperra são um exemplo de bairrismo, sentido do colectivo, espírito gregário e sentimento de entreajuda. Não conheço outra terra, do nosso concelho, onde esse sentimento seja tão evidente. 

Registo e louvo os que lá vivem e espero que os poderes locais ajudem e incentivem tais costumes.