domingo, 25 de março de 2012

O Ti’Manel dos Arcos



No beco, por trás de uma arcada, abria portas, todos os dias, a tasca do Ti’Jaquim das Iscas, que, nos anos sessenta do século passado, chegou a ser um dos locais de passagem obrigatória, na cidade de Faro.

Ali se juntavam os jornalistas, vendedores, delegados de propaganda médica e outros viajantes, atrás duma cataplana de amêijoas, duma caldeirada, ou dos petiscos de ocasião de que o “chefe Fernando” era artífice experimentado e reconhecido. 

Depois do jantar que quase sempre descaía em ceia, passava-se no armazém do Ti’Manel dos Arcos que ocupava os baixos de duas ou três casas, no bairro antigo de Faro, a poucos metros da tasca do Ti’Jaquim das Iscas. 

Faziam-se as compras de amêndoas, figos secos, mel e medronheira – simples, da serra do Caldeirão, ou com mel, de um qualquer armazenista de Loulé –. 

O Ti’Manel propagandeava a mercadoria e ia servindo rodadas, aos circunstantes e, sempre que reconhecia alguma cara nova no grupo, procedia ao ritual da iniciação do neófito. 

Se o novato respondia, a contento do Ti’Manel, a despesa era por conta da casa; se não passava no exame, preparava vinte ou trinta escudos e recebia a alforria e, consequentemente, estava admitido como confrade. 

As perguntas iniciáticas eram sempre as mesmas: 

Qual é a toalha do mel? 

O que quer dizer uma pistola sobre um saco de cimento? 

O que é que pode ser mais burro que um burro? 

As respostas, muitos simples: A água; cimento armado e, mais burro que um burro, só outro burro, não importa de que espécie. 

O Ti’Manel fazia sempre a festa; ou por ter encontrado alguém com finos dotes, ou por conseguir ensinar alguma coisa. 

E, talvez, porque encaixava mais uns escudos, ainda que, algumas vezes, os iniciados já fossem prevenidos e passassem no teste. 

Para aquele "montanheiro", que conhecia a serra tão bem como as suas mãos, nunca se acabavam as histórias. 

É claro que todas elas envolviam o macho “judas”, o cão “farrusco” e o dono dos dois, que, em caso de aperto, faziam o que tinham a fazer. 

Somos um grupo de comandos, onde ninguém falha e, até hoje, há-de aparecer o primeiro que nos venha pôr cuspinho no nariz. 

Depois, como protagonista: 

Olhem, meus amigos, mentiroso sou eu, mas na hora de falar verdade também sei fazê-lo!

 Então vamos a ver se consigo contar o caso que se passou ali perto de Salir, quase às vistas de Loulé. 

Tinha comprado umas arrobas de amêndoa, dois cantaritos de mel e uma meia alcofa de figos secos a um parente de Alte. 

O judas vinha ajoujado debaixo dos alforges e o farrusco toscava, na frente, a limpeza do caminho. 

Por trás duma curva, sai-me um marafado da sombra duma alfarrobeira e, logo adiante estavam mais dois, sentados na beira do caminho, com ar de poucos amigos. 

O da alfarrobeira, com falas mansas, disse-me: 

Olá, tiozinho!... Então o que leva aí para nós?... 

A vida tem corrido mal e temos precisão de qualquer coisa!... 

E, por azar dele, foi-se chegando ao alcance do farrusco, mostrando a faca com que cortava um bocadito de pau, enquanto um outro, de boina, se aproximava da traseira do macho. 

O meu assobio de comando, na altura própria e já o “farrusco” filava o braço do chefe, deitando-o a terra. 

Um coice do “judas” e o segundo ficava com um joelho desmanchado. 

Quanto ao terceiro, pernas para que te quero e sumiu-se pelo mato dentro, seguido pelo chefe que conseguiu soltar-se do farrusco, deixando-lhe, nos dentes, um bocado da manga do gibão. 

O do joelho avariado lá ficou a gemer e nós os três, seguimos caminho. 

É que cá no nosso grupo, cada um tem as suas manias: 

O farrusco fica como louco logo que vê facas e onde põe a boca é seu.

O judas acha que a menos de um metro da sua traseira só se chega o dono e coice que acerte é para partir. 

Se o inimigo vier de frente, cada dentada sua traz bocado. 

Eu, coordeno as operações, com a fosca no bolso e, com um pau, faço bem a minha parte. 

Ainda está para nascer o malandro que nos faça frente, mesmo que, traiçoeiramente, venha à falsa fé. 

Aliás, o merecimento dos nossos valores tem fama por toda a Serra e tem-nos aberto muitos caminhos por todo esse Caldeirão.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A mina do Souto



Garantiam as vozes mais acreditadas que na mina do Souto, para lá das hortas do Passeiro, a dois passos da cerejeira grande, não longe do caminho que da Serra se dirige até à Lameira, estava sentado um homem que, imóvel, fumava uma cigarrada, todas as tardes, antes do pôr-do-sol.

Homem de idade avançada, com a cabeleira farta e branca, os olhos encovados e o olhar fixo na boca da mina, permanecia imóvel, se bem que abrisse e fechasse os olhos, de vez em quando. 

A conversa que corria, em surdina, de boca em boca, chegou aos ouvidos do padre João, que, calmamente, se manteve tranquilo, esperando que mais vozes lhe trouxessem a notícia. 

Quando lhe pareceu adequado falou e, com toda a serenidade do mundo, explicou os factos, como eles eram, aproveitando, pedagogicamente, o falatório que corria. Disse: 

Começo por lhes dizer que, acompanhado por vários de entre vós, estive a observar a mina do Souto e a única coisa que adiantei, como aliás já esperava, foi beber uma boa barrigada de água e beneficiar da paz e sossego que, felizmente, reinam no local. 

Todavia, deste lugar sagrado, quero tecer alguns comentários, pois está em causa a dignidade e respeito que devemos aos nossos mortos e, em caso algum, podemos tecer acusações e cair em falso testemunho. Que descansem em paz, as suas almas!... 

O Ti’Chico da Ladeira, que ainda conheci e, reconheço, não terá sido um exemplo de virtudes, fez das suas, como toda a gente sabe e alguns sofreram na pele. 

Ao longo da estrada da Lameira ele e o seu bando não ajudaram ninguém e prejudicaram muita gente, sem, todavia, atentar contra vidas ou molestar fisicamente as suas vítimas. 

Além de pequenos furtos e acções de amedrontamento, nunca exerceram violência gratuita sobre nenhum dos presentes, ao que julgo saber. 

Deus é Pai e, como tal, profundamente tolerante. Nós, mortais, muitas vezes levianamente, acusamos esta ou aquela alma de sofrer o castigo de Deus e não contentes com o juízo, ditamos a sentença: penar na terra e expiar as faltas cometidas até poder entrar no reino dos céus. 

Até, neste caso, condenamos a alma encarnada do pobre Chico a estar ali dentro de uma mina. 

É bem simples o que se observa na mina e absolutamente naturais todas as reacções de cada um dos que afirmam ter visto isto, ou aquilo. 

Ao fim da tarde, entra mais luz do sol pela boca da mina. 

Esta luz, reflectida pela água, como se de um espelho se tratasse, dirige-se para dentro da mina. 

A poucos metros de entrada, há várias raízes que na busca de água pendem do tecto e dos lados da mina. 

Essas raízes tomam feitios caprichosos e projectam sombras, parecendo verdadeiras formas de figuras humanas. 

Por algumas dessas dessas raízes escorrem fios de água, que ao cabo de muitos anos formam corpos sólidos, esbranquiçados ou avermelhados, permanentemente húmidos. 

Quando um raio de sol, reflectido pela água da represa, acerta numa dessas estalactites ou estalagmites – estes são os nomes dessas formas calcárias que se formam –, parecem olhos a brilhar que, de repente, ou porque a água se moveu, ou porque o raio de sol foi interrompido, se apagam. 

Nada mais que isto se passa na mina; podem beber descansados e aproveitem para ver com muita atenção tudo o que acabo de lhes descrever. 

Mesmo quem não estudou estes efeitos dos fenómenos da Natureza pode compreendê-los se usar a inteligência e sobretudo souber dar atenção ao que tem diante dos olhos. 

Vamos rezar para que as almas necessitadas, e não apenas a do Ti’Chico, alcancem a graça de Deus e descansem em paz.

quarta-feira, 7 de março de 2012

O homem das flores

                                                                                    Carregueira - vista da portela nascente

No fim das várzeas, por cima da ponte do Coadouro, o vale aperta e estreita-se até às imediações da Carregueira, onde se espraia um pouco, como que a tomar fôlego para continuar viagem. 

Os montes, a nascente, abrandam a inclinação, os cimos afastam-se e vão quase para a Ventosa e a povoação, à partida condenada a encurralar-se ali num esconso a cair para a ribeira, alarga-se, espraia-se e estende-se, encosta acima até aos altos da meia encosta. 

Do norte vem a ribeira da Aboboreira, assim chamada embora nem chegue a lobrigar o povo que lhe dá nome, e é ao encontro da pequena corrente de água, razoável no Inverno, que se estendem as melhores hortas da Carregueira, ainda que os pinheiros dum e outro lado vão quase beber nas poças e pegos que no verão se reduzem a areais e tufos de juncos. 

Pelo poente, a encosta da Ventaneira, barreira natural, protectora dos ventos do norte, limita e reduz muito as áreas cultivadas, sobretudo nas imediações do povoado, onde toda a gente deseja ter o seu bocadinho para mimos. 

Mas a aldeia da Carregueira, viradinha a sul, com a ribeira aos pés, bem protegida de ventos, é por certo um dos lugares mais aprazíveis do nosso concelho de Mação. 

Não tem grandes horizontes mas arrumada no seu cantinho, disposta em cascata, qual presépio, convida ao sossego, paz e tranquilidade dos idílios que cada vez hão-de rarear mais. 

A abertura da estrada para o Vale da Figueira, se bem que facilite as ligações a norte, terá devassado, de alguma forma, uma das aldeias mais próximas da sede do concelho e simultaneamente mais recatada do bulício. Como que fazendo lembrar um fim de linha, onde se vai quando é preciso, pois, caso contrário, é ir e voltar, acabando por parecer longe de tudo, e de mais. 

Porém, uma dúvida nos assalta; é que não se percebe bem porque nunca rasgaram aqueles escassos dois quilómetros que separam a povoação da ponte do Coadouro, na estrada nacional de Mação a Abrantes. 

Não se entenda, todavia esta pergunta como sinal de inquietação, pois nem sequer vemos grande interesse nessa ligação. E, com ligação, ou sem ela, sempre diremos por palavras directas o que temos estado a sugerir: consideramos a Carregueira uma das terras mais simpáticas do nosso concelho. 

Conta-se que, em tempos muito recuados, viveu lá na aldeia um pobre homem que ali chegou um dia, vindo não se sabe de onde, nem quando, nem porquê. 

Foi andando, saindo pelas aldeias das redondezas, esmolando, fazendo uns biscates de caldeireiro, ajudando nos trabalhos comunitários – malhas, ceifas, apanha da azeitona, descamisadas, e sendo sempre dos primeiros a aparecer em casos de aflição, ou grande necessidade de ajuda. 

Dizendo chamar-se Silvestre e ser natural dos lados da Isna de Oleiros, acabou perfilhado e adoptado por todo o povo da Carregueira, a ponto de aos estranhos passar por um dos da terra. 

Começou num palheiro à saída para o Vale e acabou num casebre humilde mas limpinho e arrumado, ao fundo do povo, não longe da ribeira e junto dum terreiro onde vinha desaguar um riacho que descia dos altos da Ventosa. 

Cercada por um canteirito conquistado mais ao ribeiro que ao lado contrário, tinha, paredes meias, uma levada de água que ia tocar uma azenha situada um pouco mais abaixo. 

Dizia-se que nunca ninguém tinha visto aquele canteiro sem flores; mesmo num temporal que arrastou quase toda a casa na corrente, ficou intacta a leirita das flores. 

Atribuía-se o milagre a uma imagem de uma Senhora que nunca abandonou o Silvestre, desde que, ainda zagaleto, a encontrou numa gruta da Isna e agora a tinha num altarzinho, junto da parede da casa que ficava do lado das flores. 

Seriam poucos os que teriam tido ensejo de ver a imagem. De aspecto tosco, com a maior parte da tinta já desaparecida, a começar a denotar sinais de caruncho, era a imagem de uma santinha, da devoção do Silvestre e que já em muitos apuros o salvara de grandes aflições e também já acedera a pedidos do seu devoto guardião, em favor de terceiros. 

O último que vira a relíquia foi um pastor que um dia ajudou o Silvestre a sair da ribeira, onde estava perto de morrer afogado e, como ele estivesse sem dar acordo de si, foi levá-lo a casa e teve uma visão de um número quando encarou com a imagem. 

No mercado seguinte foi a Mação e comprou duas cautelas de lotaria, oferecendo uma para comprar um altar para a santa e guardando outra para si. E, na vez seguinte que foi à vila rebateu a cautela, recebendo os quinhentos mil réis do prémio. 

Fez uma casa nova, comprou gado, hortas e courelas e ainda lhe sobrou muito dinheiro. 

Porém, ao perguntar ao Silvestre pela cautela, ficou estupefacto quando este lhe disse que a cautela se tinha incendiado quando soprou uma rajada de vento e a cautela estava debaixo da imagem da Senhora. 

O pastor quis repartir o prémio com o Silvestre para que este fizesse uma capela decente para venerarem a imagem da santa, mas o Silvestre recusou, pois a cautela ardeu depois de ter sonhado que andava a fazer uma igreja com um prémio que tinha ganho. E, humildemente agradeceu, dizendo, em tom de oração à imagem da sua devoção: 

Se a minha Senhora quiser que eu faça a igreja para ela há-de dar-me o número da lotaria, em sonhos. Como quando eu teria o dinheiro me queimou a cautela é porque é feliz, comigo, aqui no nosso cantinho e não quer luxos ou devassas de muita gente. 

Agradeço-lhe que continue a ajudar-me e guarde o seu dinheiro, pois a Senhora quis dá-lo a si e achou que eu não precisava dele, como, de facto, não preciso. 

Ela tem três casas e em todas elas se sente bem; aqui está todos os dias, às outras duas, de que só eu sei o local, vai quando me avisa que devo levá-la lá, no dia seguinte e assim há-de ser até ao resto dos meus dias em que não haverá um só que não lhe ofereça flores, do Seu jardim. 

Havia dias que, ao lusco-fusco, o Silvestre saía, com uma saqueta às costas, levada da azenha abaixo. Uns cinquenta metros depois da casota do moleiro, tomava a meia encosta e ao chegar junto de uma boiça de silvas, tojos, estevas e trepadeiras, entrava na boca de uma velha mina e por lá ficava, até perto do romper da manhã. 

Saía, com a sacola às costas, percorria todo o caminho da véspera, em sentido contrário, entrava em casa, fechava a porta e só saía de novo já depois do meio-dia. 

Muitos se tinham aventurado a seguir o Silvestre mas alguns já se tinham dado mal: uns tinham visto o que não queriam, outros tinham escorregado e caído, sem causa que o justificasse. Todos tinham medo e começavam a sentir desconforto e sensações estranhas quando espiavam. 

O Silvestre repetia o ritual para aquela mina e para outra, bastante mais longe, no meio da encosta, já mais perto do Monte João Dias que da Carregueira. 

O ritual era semelhante. Não tinha dias certos para fazer as saídas e havia até ocasiões em que visitava os dois locais numa mesma noite. 

Numa coisa todos os mirones estavam de acordo: quando se davam ao trabalho de espiar o Silvestre havia sempre sinais e avisos de que não estavam a fazer qualquer coisa bem; e os segundos avisos eram, de tal maneira que todos ficavam sem vontade de repetir uma terceira vez. 

Todos ficaram com a sensação de que o Silvestre sabia que estavam a segui-lo, mas o ritual não se alterava um milímetro. 

Era essa calma que irritava as pessoas que começaram a criar à volta do homem das flores, da imagem que se sabia ter em casa, mas muito poucos tinham tido privilégio de ver e da espécie de cobertura de que gozava nas deslocações nocturnas, lendas e histórias que eram comentadas à boca pequena e quando chegavam ao Silvestre eram recebidas com indiferença e sem comentários. 

Quando uma ocasião, talvez com um copo a mais foi interpelado, na taberna, ouviu, sorriu-se e respondeu: faço o que tenho que fazer e me mandam fazer; não faço mal a ninguém, não me meto na vida de ninguém. De que me censuram então? Haja o primeiro que prove que faço mal a alguém e, se for essa a vontade de quem me manda, provavelmente irei para outro lado, onde possa ter flores e fazer a minha devoção. 

Mas que raio são lá essas ordens que dizes ter de cumprir? E quem tas dá? Ora, ora, há tantas coisas que decidimos depois de pensar com os nossos botões e quando acabamos por acordar. Sei o que tenho que fazer e para mim isso é o suficiente. Se incomodar alguém, avisem-me, por favor. Até lá deixem-me viver a minha vida, como eu deixo os outros viver a deles, em paz. 

Mas o velho moleiro, também pensava com os seus botões e não era cagarola como muitos dos que já tinham ido atrás do Silvestre e se "sujaram" todos, com medo. 

Pensava que se ele estava tão afoito era porque estava convencido que ninguém teria coragem de ir todos os dias dentro da mina velha e esconder-se lá até o Silvestre chegar, para ver o que se passava a seguir. Mas não devia haver lá nada que comesse um homem! 

Então, depois de muitas noites a pensar naquilo, preparou-se e numa semana, a meio da tarde, foi todos os dias para a mina, escondeu-se num dos ramais que lhe pareceu menos, ou mesmo nada frequentado, e aguardou até uma ou duas horas depois de sol-posto. Ao cabo de sete dias, nada! 

Não desistiu e ao terceiro dia, mal tinha tomado lugar no esconderijo, chegou uma figura, com um pano preto sobre a cabeça e roupa também escura. 

Entrou, virou no segundo ramal à direita, deu mais alguns passos e acendeu uma luz cuja claridade chegava perto do local onde estava o moleiro. Depois, durante uma boa meia hora fez-se silêncio total. 

Até que chegou o Silvestre, com a sacola às costas e se dirigiu para o mesmo local, deixando de dar passos momentos depois. 

O silêncio continuava total, até que o moleiro ouviu claramente a voz do Silvestre, dizendo: está alguém a fazer-nos companhia, dentro da mina. Sinto os avisos da minha Senhora. Vi entrar o moleiro e vim para ajudá-lo; ao pé da casa do engenho anda tudo a arder e lá dentro era uma barulheira que ninguém nunca viu nada igual. Dizem por lá que se deve ter acabado o grão na tremonha e as pedras devem andar a roçar umas nas outras o que deve ter provocado faíscas e incendiado tudo em volta. Estão à espera que ele chegue para ver se põe termo naquilo. 

O moleiro ao ouvir aquilo, escapuliu-se para a porta da mina, mas tinha sido espalhado barro e atravessados garavetos e outros gastalhos que o levaram a cair a todo o comprimento na lama, ficando completamente encharcado e sujo. 

Lá se desenvencilhou e foi a correr para a azenha onde estava à espera apenas uma freguesa para trazer um taleigo e levar a farinha; de resto tudo era calma e serenidade na azenha e nas redondezas. 

Ao ver o moleiro naquela figura a freguesa perguntou se estava bem, se precisava de alguma coisa e que lhe tinha acontecido. 

O moleiro, ficou enrascado e até parecia que tinha acordado dum sonho mau. 

Lavou-se, mudou de roupa, e prometeu a si próprio que nunca mais se meteria na vida dos outros. Inclusivamente acabou por se arrepender de espreitar o Silvestre que, coitado, não fazia mal a uma mosca e já o tinha ajudado em grandes enrascadas no caminho da azenha. 

Esteve a imaginar o que responderia se o Silvestre lhe perguntasse alguma coisa e, por fim, adormeceu. 

Na mina o Silvestre e a Maria do Vale fizeram o que sempre faziam, na maior das calmas e com a bênção da Senhora, sem se preocuparem com mais aquele mirone que, certamente, devia ter ficado bem vacinado e tão cedo não voltaria a meter o bedelho onde não fosse chamado.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O Tó “Lixado”


Atarracado, de compleição física bastante débil, o António era, desde pequenito, extremamente atencioso e gostava de ouvir quem falasse bem, isto é, quem dissesse muitas coisas, sem se enganar. 

Por certo, nem perceberia o que diziam; seguro é que gostava de ouvir qualquer orador, leigo ou religioso, político ou não, sabedor ou ignorante. 

Várias vezes se infiltrava na sala de audiências, do tribunal, para ouvir os advogados e os juízes. 

Nas feiras tinha uma predilecção especial pelos propagandistas e leiloeiros, nas festas não perdia um sermão e não faltava a uma pregação religiosa. 

Fez o exame da quarta classe e sabia de cor a maior parte das histórias do Livro de Leituras. 

Nas redacções nunca esgotava o assunto e livrito que lhe chegasse às mãos, era devorado em pouco tempo. 

A única dúvida era acerca do entendimento que teria sobre o que ouvia e lia, dado que não se exprimia com grande facilidade. 

Participou desde muito novo em todas as tarefas próprias da sua idade e do seu meio rural. 

Chegada a altura namorou e casou-se; era um normal chefe de família e zelador das leiras em que angariava o sustento para si e para os seus. 

Mas porquê a alcunha de “Tó Lixado”, que, diga-se, nada o incomodava? 

Numa das pregações da Semana Santa foi anunciado um pregador de grande fama e nomeada. 

Diziam uns que fazia chorar as pedras, outros que só à conta dele já tinham seguido as vocações para cima de vinte padres e religiosas. 

O Tó não mostrava tanto alvoroço há muito tempo; para mais que a pregação seria na igreja de S. Sebastião e ele era muito devoto do “mártir S. Sebastião”. 

Todos ouviam, em silêncio, a dramatização, efectivamente pintada com as cores negras da flagelação do mártir e o pregador descrevia, cuidadosamente, cada seta que lhe fora arremessada. 

No meio do adro, amarrado a um tronco, o mártir levantou os olhos ao céu, quando um dos soldados disparou a primeira seta que lhe acertou nas costelas, disse o pregador. 

Respondeu o Tó, que já se acercara do púlpito, num tom perfeitamente audível por todos os circunstantes e pelo próprio orador: 

Ai!..., meu rico S. Sebastião!... 

Depois, o pregador continuou: 

Um segundo facínora atirou outra seta e acertou-lhe no ventre. O santo apenas gemeu!... 

O Tó, aumentando o tom, exclamou: 

Ai!..., meu pobre S. Sebastião, deve ter doído tanto!... 

O pregador continuou a descrever as setas seguintes, cada vez mais terríveis e perigosas, e também o Tó ia dramatizando os lamentos e apelos de coragem para que a martírio fosse menos pesado ao santo e dizendo-lhe palavras de incentivo para que tudo suportasse. 

Nessa altura a assistência já olhava ora na direcção do pregador, ora na do Tó, para seguir por um lado a descrição do martírio e pelo outro a coragem com que o Tó animava o santo para suportar todas as sevícias. 

A voz do padre era, como convinha, num tom suave e apiedado; a do Tó ia subindo de tom à medida de cada seta e de cada cena. 

À sétima seta, com a assistência em transe, o pregador suspendeu-se e disse: 

Não satisfeito com o sofrimento do santo, o chefe dos guardas, pegou no arco de um deles e disparou uma seta que foi direita ao coração do mártir S. Sebastião, que apenas levantou os olhos… 

Nessa altura, num tom de voz clara e sem qualquer sentimento, o Tó exclamou, de rompante, mas pausadamente: 

Foi … essa…! 

Essa … é … c’o… “lixou”!... 

Alguém começou a chamar-lhe “Tó Lixado”. 

Assim ficou, para o resto dos seus dias.