domingo, 18 de dezembro de 2011

Os sons do mar




O dr. Jorge Ventinhas escolheu para tema do seu doutoramento em Veterinária, "os sons das ondas do mar". 

Talvez, vá-se lá saber ao certo, por ter visto o mar, pela primeira vez, aos onze anos e pelas muitas vezes que, antes e depois disso, passou horas a contemplar as messes ondulantes, lá no Monte onde nasceu, nos fundos do Alentejo.

Certo, certo, é que recordava, perfeitamente, a imagem daquele chão todo lisinho e azul-escuro, para lá do grande campo coberto de areia e um ror de pessoas que, talvez por falta de água em casa, ali se lavavam, entrando e saindo na água, que, por causa disso, até fazia ondas ali ao princípio.

Como nas searas lá dos Montes, andavam no ar uns passarões, maiores que os que comiam as espigas do trigo e até talvez quase como as cegonhas.

Deviam ter muito calor, pois, de vez em quando, mergulhavam na água azul e voltavam para o céu, onde se passeavam. Ah! E eram barulhentos. Mas não sabiam cantar! 

Lá mais ao fundo, onde já não alcançava bem, viu uns homens a puxar umas casinhas para dentro da água e depois saírem por lá adiante, até se sumirem da vista.

Disse-lhe a prima Adelaide que eram os pescadores que saíam para a pesca. Assim, como assim, ficou a saber o mesmo; mas o bichinho da curiosidade ficou lá e daí a uns dias quando o primo Abílio. que fazia dois dele e estava quase a ir às sortes, estava deitado no areal, chamou-o e foram lá a baixo ver os tais barcos e os pescadores. Gostou. 

Os tempos passaram, o senhor Lavrador, seu padrinho, tinha prometido ao seu pai, abegão lá do Monte: "se o moço tiver jeito e cabeça, hei-de mandá-lo educar, até onde for capaz de ir".

O moço era eu, e a cabeça, felizmente, foi capaz de ir até ao cimo; aos vinte e quatro anos, chegou um dia à estação de Santa Eulália, onde era esperado pelo pai, o senhor dr. Jorge do Carmo Ventinhas, com um canudo na bagagem, onde se conferia que tinha terminado o curso de Medicina Veterinária. 

Abraçaram-se e, depois de quebrada a curiosidade sobre as coisas e as gentes do Monte, seguiram, quase uma hora, em silêncio, ou com meias palavras de permeio, até à Herdade.

A carroça rolava por entre as searas ondulantes e a passarada levantava-se com o barulho dos guizos da mula e o estalar do chicote para apressar a marcha. 

De vez em quando, o pai olhava pelo canto do olho, em silêncio, traído pelos pensamentos que, de certeza, lhe enchiam a cabeça, a pontos de nem as palavras lhe saírem direitas.

No portão da entrada da Herdade, já às vistas do Monte, sentado à sombra da velha azinheira, estava o Alfredo, com os bolsos das calças cheios de bolotas que ia comendo, enquanto esperava.

Quando deu pela aproximação do carro, correu caminho adiante para ser o primeiro a ver o seu grande amigo que, como já lhe tinham dito, devia agora tratar por senhor doutor. 

Ao ver o homem a correr a besta parou e, de um salto, já o Alfredo estava ao lado do grande amigo, abraçado a ele e segredando-lhe ao ouvido: então agora tenho de tratar-te por senhor doutor, ou posso continuar a chamar-te Jorge? Jorginho, se quiseres! E afastando-se do amigo, para vê-lo melhor, foi todo o resto do caminho a procurar as diferenças que faziam um doutor. 

Quando já não estavam longe do Monte, pulou da carroça e desatou numa louca correria para ser o primeiro a anunciar a chegada do menino Jorge, seu melhor amigo e para quem era preciso dobrar a língua, a partir de então: senhor doutor Jorge! E gritou, como nunca se lhe tinha ouvido:

O senhor doutor chegou. Venham todos vê-lo! Viva o meu amigo Jorge! E, nessa altura, todos repararam que aquela figura apatetada, meio tola e apoucada, chorava de comoção, que depois justificou por nunca ter pensado vir a ter um amigo doutor... que já o tinha autorizado a continuar a chamar Jorginho. E até já lhe tinha prometido que um dia o havia de levar à cidade, para ver o sítio onde se aprende para doutor, casas muito grandes e o mar. Foram estas as coisas que lhe pedira e que o amigo já lhe tinha prometido. 

O Alfredo sempre foi aluado, meio tonto, tolo e telhudo. Numa palavra: apoucado, que um bom Alentejano chamará de poucachinho. Tudo o que se lhe dissesse não o incomodava, pois não era pessoa para se zangar com ninguém, nem consigo próprio.

Também nunca ninguém se zangava com ele; a todos acabava por conquistar, com o seu espírito prestável, a sua delicadeza e bonomia.

Não fazia mal a uma mosca e exibia, regularmente, um sorriso simples e ameno. Não era dali do Monte do Vale da Lameira, nem ninguém sabia, ao certo, onde teria nascido.

Fora deixado debaixo da azinheira grande, à entrada da Herdade, embrulhado numa trouxita, ao que se crê por uns ciganos que ali estiveram acampados e desde o dia em que deixaram a encomendinha nunca mais voltaram aqueles sítios, nem ninguém mais deu por eles, nas redondezas e feiras mais chegadas. 

Tinha uns meses a menos que o Jorge e fora recolhido pelo abegão, que ao entrar na Herdade ouviu chorar e apeando-se deu com o menino embrulhado nuns panitos brancos.

Levou-o para casa, onde a mulher ainda amamentava o filho e, com o consentimento do senhor Lavrador, foi criado lá pelo Monte.

Registado como filho de pais incógnitos, nascido em parte incerta e encontrado no Monte do Vale da Lameira, aos dezanove dias do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e três, foi-lhe dado o nome de Alfredo Azinheira. Nas notas da Cédula constava: Sexo masculino, sem defeitos físicos e de raça cigana.

Na gíria era conhecido pelo "cigano papa-açorda", não tanto pelas qualidades já descritas, mas por um velho hábito de andar sempre de boca aberta. Aliás era por este nome que respondia, normalmente, às chamadas.

Depois de recolhido foi alimentado pela mãe do Jorge que aproveitou os últimos tempos de mama do filho e repartiu o leite com o achado do marido.

Depois, uma pastora que tinha perdido um anjinho, deu o peito ao Alfredito que, por essas razões, dizia que era muito mais rico que a maior parte dos amigos: tive três mães: a que me pariu e, não tendo que me dar, me deixou para que alguém me apanhasse; a mãe Deolinda, mulher do pai António, que me deu leite e criou, enquanto esteve entre os vivos, e a pastora Amélia que me acabou de criar, quando se acabou o leite da mãe Deolinda. E agora até tenho, como maior amigo, um senhor doutor.

Podem chamar-me de papa-açorda e podem continuar certos de que ainda está para nascer quem goste mais da gente deste Monte que o Alfredo Azinheira. Mas, enquanto por cá estiver o meu amigo doutor, não quero compromissos com ninguém; estou cá para o que ele precisar. Para ele e para o pai António!

O doutor Jorge Ventinhas concorreu ao lugar de Veterinário da Câmara de Elvas e foi lá colocado. Abriu um consultório de veterinária em Santa Eulália e arranjou uma vasta clientela entre as herdades da região.

Alguns anos depois, já passados os trinta, casou com a filha do senhor Lavrador, e única herdeira da Herdade da Azinheira e passou a ter além do trabalho na Câmara e no consultório, a gestão de uma grande casa agrícola, cuja cabeça era a Herdade e o Monte do Vale da Lameira. 

Tinha casa nos arredores de Lisboa e no Algarve, junto da praia do Alvor. Nunca deixou uma vida cheia de trabalho, no Alentejo, embora a mulher e os três filhos, residissem, normalmente em Lisboa, onde os filhos estudavam. 

O Pai António, abegão até aos últimos dias de vida, tinha já partido, o sogro, senhor Lavrador, vivia numa moradia na linha de Cascais, o doutor, sempre que podia ia dormir ao Monte.

Porém, estivesse onde estivesse, sempre teria, por perto, o seu motorista privativo, como que secretário particular e homem de confiança, senhor Alfredo Azinheira, que desde aquele dia em que recebeu o senhor doutor, lá no caminho de Santa Eulália e foi a correr ao Monte anunciar a sua chegada, poucos dias terá o sol alumiado a terra sem que o Alfredo não estivesse por perto do amigo, quase irmão e, mais que isso, seu grande mestre, pela vida fora.

O Alfredo nunca casou; era impossível tirar algum minuto ao seu patrão para assuntos pessoais. Aprendeu a arte de boas maneiras, teve lições não só de cultura geral, mas de administração de negócios, elementos de contabilidade, ajuda nas actividades profissionais do senhor doutor veterinário, compras e vendas de maquinarias, sementes e bens da terra, produzidos nas propriedades da casa agrícola. 

Aprendeu a cavalgar, conhecia os rudimentos das principais maleitas dos gados, as febres mais vulgares, mas, principalmente, banhava-se, barbeava-se e vestia roupa lavada todos os dias. Tanto entrava numa tasca como num casino, acompanhando o patrão. Tratava de assuntos com gerentes bancários, comprava e vendia, dispondo a seu belo prazer. Porém, num ponto, nunca cedeu:

Caro amigo, doutor, irmão, ou lá o que quiser: a mim ninguém me quis, salvo o Pai António e a Mãe Deolinda. Eu também nunca quis mais família e um ponto fica assente, entre nós: não quero ter nada de meu. Quero ter tudo o que tenho, quando precisar e mais nada.

Não há ordenados; nunca, até aos vinte e cinco anos, quando andaste a estudar os tive, nem precisei deles. Depois disso muito menos. Espero morrer antes de ti, mas se isso não acontecer deixa as tuas ordens de forma que, quando eu não te tiver por perto, tenha o que precise e quando me for embora nada tenha que interesse seja a quem for.

Ainda viveram bastantes anos. O doutor Jorge, na sua actividade de Veterinário, deslocou-se várias vezes ao estrangeiro e ganhou muito dinheiro.

Nas casas agrícolas das suas herdades, graças aos bons negócios e administração correcta do feitor - chamemos-lhe assim - Alfredo, também se gerava bom pecúlio. 

As avultadas heranças do sogro e do pai foram boas ajudas. Tudo somado era o suficiente para que, sem qualquer exagero, fosse classificado como um rico património, mais que suficiente para a família viver faustosamente.

Porém o doutor Jorge nunca tomava grandes decisões sem consultar o conselheiro e também a esposa se habituara a passar primeiro pelo aval do senhor Alfredo quando precisava de alguma coisa para si, ou para os filhos.

O senhor doutor foi primeiro e quando o Alfredo foi perguntar à senhora quais eram as ordens, ouviu em resposta: o senhor continuará junto de nós, na minha casa e de meus filhos, com as mesmas funções que tinha em vida do senhor doutor.

Isto se não quiser ir para sua casa, no Monte do Vale da Lameira, conforme explica meu marido nas suas últimas vontades. 

E estendeu uma carta ditada pelo marido, no notário, com as suas determinações:

O Alfredo Azinheira ficará ao serviço de minha mulher e nossos filhos, como sempre esteve. 

Residirá onde achar melhor. 

Tem posse e usufruto, até à morte, do Monte do Vale da Lameira e ser-lhe-ão dados todos os meios de que necessite. 

Um abraço, irmão. Espero agradecer-te quando voltarmos a encontrar-nos.