quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Noite e Dia


 
Quando releio as "histórias de gente simples" fico com a sensação que, por trás delas, ficaram outras histórias por escrever, que correm o risco de acabar por ficar inéditas.

E, num primeiro impulso, acho incompleto o meu trabalho.

Nessa frustração - a palavra é forte de mais - as histórias continuam a apelar à imaginação, a espicaçar a memória e a dar largas às ideias emergentes do turbilhão de negaças, que rodopia no imaginário e na vida das personagens.

Eu sou o primeiro, senhora professora; sou "Feliz" e até nem discordo do nome que me puseram; e não percebo porque se há-de começar com o "Varisto".

Ele deve ser dos últimos, antes dos Xicos e dos Zés, que, aparecem Franciscos e Josés!

Não és o primeiro, não senhor; antes de ti será o Evaristo. É este o nome do teu colega, ainda que muito poucas pessoas da aldeia o reconheçam pelo seu verdadeiro nome.

Assim como o teu; devia ser Félix, mas acabaste por ser registado como Feliz, por engano do senhor Mário, do posto de Registo Civil.

Esta troca de palavras recorda-me uma cena, na sala da escola da aldeia, na minha quarta classe.

A senhora professora chamou para o quadro preto o Evaristo.

Ergue-se, de rompante, o Feliz, que, altivo, se arrogava o direito de precedência dada a ordem alfabética dos nomes próprios.

Não sei porque me terei lembrado disto...

No fim são as recordações, meio apatetadas, que amainam a vertigem do carrossel das dendrites e dão folga aos neurónios, baixando o ritmo das "histórias de gente simples”, que contemplam e dão alma a essas personagens que, como os transístores, ou os chips, de um qualquer aparelho electrónico, desconhecem o seu real valor, mas acabam por ser fundamentais, em sofisticados mecanismos.

As cenas da vida calma e pacata, da gente simples, serão como as cores dum quadro; só criam depois de perderem a sua identidade e interagirem entre si.

É então que a imaginação faz o resto: sublima e dá corpo ao criativo e artístico.

Também nas histórias, cada um pode, depois, ver, sentir e fazer o que quiser. Os padrões, a sensibilidade e os desejos são os de cada um, tal como o direito de gostar ou detestar, aplaudir ou reprovar, conhecer ou ignorar.

Ah! Se os poetas tivessem o privilégio e a oportunidade para explicar todos os enganos, exageros e erros que alguém (críticos, declamadores e simples intérpretes) acabou conectando com as suas palavras!

Ou se os heróis assistissem ao filme dos seus próprios feitos, alcançassem a dimensão e percebessem as análises hiperbólicas dos actos realizados para satisfação das motivações básicas, visando, tão só, a preservação da espécie!

É que há a imaginação que acaba por condicionar todos os tipos de análise; há os entrechos, mesmo nos filmes, que é difícil refazer - não é de ânimo leve que se cenografa o peso da escuridão, a bruma do denso nevoeiro, o barulho da cacimba, o silvar do vento!

Ou, antes de tudo se recolher, o crepitar da lareira. O bruxulear da luz baça da candeia e o pio da coruja na torre da capela.

A força do silêncio é entrecortada pelos mais pequenos ruídos, e mais além, no virtual e intemporal, pelo ladrar dos cães e o miar dos gatos. 

É difícil e complicado recorrer aos efeitos especiais, baseados e construídos a partir das palavras.

As gentes das aldeias não tinham direito a luzes, nem sons, para além dos que a Natureza dispõe; mas também não tinham medo do silêncio; adoravam-no e respeitavam-no.

E esperavam, avidamente, o alvor de cada novo dia, de cada nova manifestação de vida renascida. 

Rejubilavam quando viam que a ordem do mundo não se alterara com a paragem da vida, que as fontes e os ribeiros continuavam a correr, os pássaros voltavam a voar, com os mesmos trinados, e as sementes voltavam a dar vida, às terras.

Numa palavra, depois de pequenas pausas, a vida continuava, porque a ordem e o comando de tudo o que existia, rejuvenescia a cada ano, como sempre acontecera.

Naqueles meados do séc. passado, a noite e o dia nas aldeias eram duas realidades acima de tudo e de todos.

Ainda não tinha chegado a energia eléctrica e por isso, não havia rádio nem televisão.

Não chegavam lá os jornais e além dos livros da escola - quando estava a funcionar algum posto escolar - mais não era preciso.

Nas tabernas, onde se faziam os avios de mercearias e se bebiam uns copos de vinho, jogava-se às cartas, ao burro - feito de um caixote de sabão (ver ilustração), para onde se atiravam os vinténs -, e à malha. 

As conversas restringiam-se a pequenos negócios, à contratação de homens e mulheres para os trabalhos e às tradicionais histórias, lendas e aventuras que povoavam o imaginário, até se gastarem pelo uso, ou serem substituídas por outras.

Os factos e ocorrências do quotidiano não abundavam.

Havia, pois, campo aberto para a proliferação do imaginário, do hiperbólico, do distante e do misterioso.

Em casa, depois de terminados os trabalhos, a família, em volta da mesa, ou à roda da lareira, comia, do barranhão de barro vidrado, as couves com batatas e feijões, o pão de milho, um bocado de sardinha ou um punhado de azeitonas curtidas.

Aos domingos, depois da missa, lá se chegava ao grão-de-bico, com toucinho da salgadeira e algum enchido, normalmente guardado para dias de festa.

O arroz e a massa completavam a dieta frugal desta gente que, embora a pobreza dessa alimentação, aplicava bastantes recursos físicos nos duros trabalhos agrícolas.

Durante os longos serões de inverno, enquanto no caldeirão fervia a vianda dos porcos, ia-se atiçando a fogueira, fiando uma roca de linho, dando uns pontos nas roupas e contando histórias, ou rezando.

Rezava-se antes de começar a comer, depois de comer, pelo serão adiante... É que rezando acabava por se poupar a vista, passar o tempo e alcançar mais algumas indulgências.

Efectivamente a ligação à igreja, das gentes daquelas terras, naqueles tempos, era muito grande. Seria impensável que alguém faltasse à missa, aos domingos, sem uma razão muito forte.

Não vamos tecer muitas considerações sobre a forma como eram doseados os castigos, nos actos do culto, nem referir-nos ao peso e responsabilidade que os padres colocavam sobre as pessoas. 

Todos nos recordamos das "práticas" infindas em que se espalhava o terror, sobre os pecadores e os não cumpridores escrupulosos dos preceitos da igreja.

Os quadros pintados pelos pregadores que no meio do sermão já tinham uma grande parte da assembleia, em lágrimas. E continuavam a proclamar os princípios e as leis da igreja, usando uma linguagem que a maior parte nem compreendia, mas sentia e aceitava.

Pela dramatização do padre, adivinhava-se mais algum castigo de Deus e, como tal, havia que aceitar e obedecer.

Paralelamente, cultivava-se o sentimento dos prémios e dos castigos, como se fosse possível algo mais penalizador do que a vida daquelas gentes.

Mas, os condenados enchiam as crenças do povo: as almas penadas, que não alcançavam a luz e erravam nas longas noites, nestas aldeias onde não havia exposição do Senhor, nem sacrário nas igrejas.

Era o diabo, os espíritos malignos menores e almas do outro mundo que enchiam a mente daquela sociedade rural, condicionada, controlada e dominada pela igreja.

Porém, chegou, um dia a energia eléctrica, abriu-se a estrada, aumentou a emigração externa e sobretudo a interna. Vieram os rádios, abriu a escola, mandaram-se várias crianças para os colégios e seminários. Apareceram as primeiras televisões... 

Lembro-me do primeiro rádio, que funcionava com uma bateria de automóvel e só se ligava para ouvir as cerimónias da Senhora de Fátima, no 13 de Maio.

Era lá em casa do Ti'Soldador, que se juntavam, nesse dia, cantando e rezando, a maior parte das mulheres da terra e alguns homens.

Os tempos mudaram muito. Não só nas aldeias, mas em toda a parte, houve maiores mudanças nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, que nos últimos cinco séculos de História.

Ficaram alguns usos e costumes, hábitos e preceitos, que recordamos com respeito e consideramos de vital importância para que possamos hoje perceber que tempos foram aqueles. 

Comparadas com as adversidades daquela longa noite, as piores condições que hoje ainda pesam sobre os extractos mais desfavorecidos da nossa sociedade são, se não paraísos, pelo menos cenários humanos e luxos sociais.

As grandes directivas sociais que presidiam e condicionavam a vida das gentes daqueles tempos: fome, ignorância e medo, que se manifestavam pela subserviência, resignação, respeito e um ror de outros atributos, roçando o indigno e desumano, foram erradicados e deram lugar a um novo sentimento, até aí desconhecido, ou, completamente fora do alcance – LIBERDADE. 

Qualquer homem é, hoje, livre e responsável. Pelo menos à luz dos princípios básicos da Lei suprema do nosso País. Ainda que a realidade...

Porém a memória é curta: e muitos dos que podem certificar a análise que deixamos, quer porque viveram nesses tempos, quer porque isso lhes foi contado, já esqueceram o que lhes interessou e arvoram-se em arautos das conquistas que se fizeram, enquanto se refugiaram no primeiro buraco que encontraram para não se comprometerem. 

Recorrem a amigos, compadres e correligionários, para usarem e abusarem da coisa pública, para se furtarem aos deveres sociais, ou para se locupletarem com benesses e bens da colectividade.

A comunicação social, pouco rigorosa, dependente e asfixiada, navegando à vista e sempre com os olhos postos no mestre - que dá dinheiro, privilégios e audiências -, esqueceu já os tempos em que os editoriais dos Directores valiam o preço dos jornais. 

Hoje há, em cada publicação, dezenas, ou centenas de jornalistas; porém os cidadãos conhecem dois ou três dos mais mediáticos. E, havendo cada vez mais letrados, porque se lêem cada vez menos jornais?

Se os nossos pais e avós cá viessem, corariam de vergonha ao ouvir proclamar nas televisões, ou verem nos jornais, o nome de altos dignitários das públicas instituições, acusados de incompetência, desleixo e favorecimento, de que resultaram prejuízos de muitos recursos da sociedade, sem que nada aconteça a esses figurões.

Ficariam, sobretudo, muito admirados por não verem e ouvirem referir, louvar e homenagear, alguém que trabalhou honradamente e contribuiu para o bem de todos. 

Interrogar-se-iam se já não há respeito e consideração pelos velhos, pelos doentes, pelos que a Pátria usou, quando precisou, e logo esqueceu. 

Não entenderiam a pouca apetência pela política, nem compreenderiam, ainda, muitas outras coisas… 

Estranhariam que a trilogia aprendida na escola – Deus, Pátria, Família – seja, nos tempos que correm, enunciada com falta de respeito, embora, lamentavelmente, com alguma verdade – Adeus, Pátria e Família -. 
Mas isso será o objecto das nossas "histórias de gente simples”, aliás escritas por mero prazer e, despretensiosamente. 

Sempre, porém, dentro dos preceitos da trilogia aprendida na escola – entenda-se Posto Escolar - lá da aldeia onde fizemos a quarta classe, por sinal muito bem feita.