domingo, 11 de setembro de 2011

Terras do Vale

O diferendo das terras do Vale de Baixo arrastava-se, pelo menos, ao que podiam saber os vivos, desde os tempos em que tudo aquilo era um souto de castanheiros, que começava às últimas casas da Aldeia e só acabava já nos confins do Chão de Burro, ainda no tempo de, pelo menos, três avôs do meu avô, que Deus haja. Nunca se resolveu e não sei se alguma vez se resolverá.

As castanhas daquela correnteza, de que veio a nascer, muitos anos mais tarde, a “Arrompida”, desde os baixos da ladeira do Pichelim até à Portela dos Carreiros, eram as melhores das redondezas e valiam mais uns vinténs cada alqueire. O gado perseguia-as e os amigos do alheio também.

Contam os mais velhos, dizia-me o meu avô, já na casa dos setenta, naqueles meados do século passado, que um tal “Rasga”, que era filhote da Aboboreira, ali veio, um dia – há dias bons e dias maus…- comprar umas terras, com o fim de nelas fazer um moinho de vento. 

A portela do Casalinho era, de facto, um local onde já noutros tempos tinha existido um moinho, como ainda se podia ver, pelos restos de parede, em redondo.

Era homem de poucos escrúpulos e, dando asas ao mau feitio, terá mandado, desta para melhor, um par de opositores no negócio, acabando por ficar com mais de metade daquelas terras. Umas compradas, outras roubadas – não se ensaiava nada em mudar um marco, umas chancas para dentro da do vizinho.

Numa dessas estremas começava o nosso Vale de Baixo. Ia desde o ribeirito que ainda por ali corre e estendia-se ao longo dele, desde a junta com o ribeiro que ia do Pichelim até ao ribeiro que vinha da Horta Velha e do Pardieiro. 

Ocupava toda aquela chapada, pelos lados do meio-dia e ainda passava para norte do ribeiro, na maior parte do seu percurso. Diga-se que no Inverno o ribeiro mete muita água, mas no Verão só uns pocecos aqui e além, principalmente onde fizemos as quatro represas que além de guardarem alguma água, serviam para fazer alagar as nossas terras mais baixas que gozavam com o chorume que aquelas águas arrastavam.

Nas primeiras fiadas, os castanheiros das terras mais baixas, eram bem mais frondosos, e mais altos, levando uns bons metros acima dos da encosta.

A pastagem dos nossos lameiros era bem mais abundante e saborosa para os gados que as pastagens dos lameiros do “Rasga”, onde não havia represa.

O “Rasga” queixava-se que as águas que escorriam dos nossos lameiros iam para as terras dele depois de terem deixado o proveito nas nossas. 

Nós nada tínhamos que dizer, ou fazer; estava por baixo e as águas não correriam para cima para voltarem ao ribeiro. O mais que poderia fazer era desviar as águas das suas terras para as mandar para o ribeiro lá no fundo das suas terras.

As nossas represas entestavam nos dois lados com o que era nosso e por isso ninguém tinha nada com o que fazíamos, ou deixávamos de fazer.

Vai daí, o “Rasga”, pela noite dentro, principalmente quando chovia mais e o escuro carregava mais, munia-se dum enxadão e cavava as represas, como se aquilo fosse dele. 

Segundo as palavras do meu avô, o seu pai era pacífico e teria chegado às falas com o vizinho, por duas ou três vezes. Desta vez não terá gostado da resposta do traste que se limitou a dizer que o ribeiro era público e ninguém tinha nada com o que lhe apetecesse fazer, dentro dele. 

Só que o meu pai e os seus quatro irmãos é que não gostaram do que o pai lhes disse e tomaram a seu cargo a guarda de terras e ribeiro, ficando de atalaia, três a três, munidos de bons cacetes, para o que desse e viesse.

Ora o meu avô, que se chamava Manuel Lourinho, tinha vindo das Hortas, lá para onde hoje é Alferrarede e, trabalhando lá por casa do dono daquelas terras, acabou por casar-se com a filha única do dono daquele souto – um verdadeiro casal ali mesmo à entrada da aldeia -. 

E aqui começou a questão que opunha o “Rasga” ao meu avô. É que a minha avó recusou o pedido de namoro do “Rasga”, dado o seu feitio, quezilento e desordeiro e acabou por trocá-lo por um forasteiro, quase desconhecido na terra.

A animosidade continuava: só que o traste, mediu mal as coisas, e em vez de afrontar o antigo rival, encontrou pela frente uns matulões, com menos trinta ou quarenta anos que ele e dispostos a vingar muitos vizinhos que dariam tudo para ver o “Rasga” pagar, pelo que tinha feito na terra.

Um tio meu, que se chamava Francisco, adiantou-se aos irmãos e disse: ele é que ainda não sabe com quantos paus se faz uma canoa! Mas quando as sentir no lombo, vai saber com quem se meteu. Eu e os meus irmãos, se quiserem acompanhar-me, vamos mostrar-lhe que não se mexe no que não nos pertence, e se quiser resolver as coisas como sempre tem feito, encontra, finalmente, quem lhe mostra como as coisas são tratadas. 

Assim o pai me dê carta-branca para meter o tratante na ordem. E, se nenhum dos meus irmãos quiser acompanhar-me, sozinho chego muito bem para ele. 

Porém, o seguro morreu de velho e, por isso, alguém, de fora da família, há-de estar em condições de testemunhar tudo o que possa acontecer.

E o meu tio Francisco, continuou: Então vem lá da Aboboreira, mostrando libras a torto e a direito, sem que ninguém saiba onde as arranjou, e pensa que isto aqui é tudo dele! 

Não! Bateu, pelo menos desta vez, à porta errada. Há-de receber, depois de dar, que eu não sou parvo. Mas, esteja descansado que não terá tempo para dar a segunda e há-de haver quem esteja nas redondezas, para ir, onde for preciso, dizer quem provocou e que bonita prenda esta terra tem.

Então, quem vem comigo? Tu, João, ficarás por perto, assim como o Tonho. Mantenham-se escondidos. Só se for preciso é que aparecem. Tenham a certeza que eu chego bem para ele e irei provocá-lo, para que, se for homem, as peça! 

Depois vou dar-lhe uma boa sova, de forma que mostre a todos que encontrou quem chega para ele e que, nesta terra, não se mexe no que não nos pertence. E hei-de fazê-lo jurar que não volta a pisar o que é nosso, nem a mexer nas nossas represas que não lhe devem nada.

O meu avô concordou, mas pediu que fossem os três e usassem o mínimo de violência possível, tomando cuidado com a rês: Ele tem fama de traiçoeiro; Usa uma navalha! 

O meu tio e os irmãos concordaram e apenas disseram: se pegar em faca, partimos-lhe esse braço; se a agarrar com a outra mão, partimos-lhe o outro, e tudo será feito à vista das testemunhas, que já apalavrámos.

Às primeiras chuvas lá saiu o “Rasga”, com a saca às costas, a caminho do Vale. Os meus tios, João e Tonho, já estavam nos postos, escondidos dentro do ribeiro. O Francisco seguiu-o de perto, também com uma saca ao ombro e dentro dela um bom cacete, com uma moca e uns oitenta centímetros. 

Chegaram ao ribeiro, junto da estrema, uns metros a jusante da primeira represa, quase ao mesmo tempo. O “Rasga”, com ar provocatório, disse: 

Vens arranjar as represas? Não te canses muito, rapaz. A chuva parece vir aí forte e não vai haver represa que lhe resista. Mas, se a chuva precisar de ajuda, cá estou eu para lhe dar um jeito! Ou és homem para me estorvar?

Não se esqueça que mais um passo que dê e está no que é meu, sem ser convidado. Se que saber se o estorvo ou não, terá que experimentar! 

E o meu tio foi sentar-se no cômoro, junto da represa, ajeitando umas leivas que estavam descompostas e mirando, pelo canto do olho, os movimentos do vizinho.

Num salto, o “Rasga” com um pau erguido, precipita-se na direcção do meu tio, que, furtando-se e pondo-se em guarda, recebeu o golpe do agressor e deixou que ele se projectasse, de barriga para baixo, dentro da represa. 

Num ápice, levantou o pau e aplicou-lhe um golpe entre as espáduas, um pouco abaixo do pescoço, sobre a espádua esquerda, que provocou um grito de dor ao “Rasga”. 

Com um esforço e gemidos de dor, voltou-se, sobre o lado esquerdo, meteu a mão no bolso das calças e, tirou uma navalha espanhola, de ponta e mola. 

Foi a vez de o meu tio aplicar o pau, pela segunda vez, acertando no antebraço do inimigo, que, com gritos de dor e raiva, ainda tentou agarrar a navalha com a mão esquerda. 

Já o meu tio se preparava para lhe aplicar nova paulada, desta vez sobre o braço esquerdo, quando o Tonho, a correr, o agarrou, ficando o “Rasga” com a omoplata, do lado esquerdo, partida e o ombro do mesmo lado, desconjuntado. O braço direito, partido, entre o cotovelo e a mão, com fractura exposta, deixava a mão pendurada. E, se tinha ainda o braço esquerdo inteiro, embora inanimado, ao Tonho o devia. Mas, não iria agradecer-lhe.

Vieram buscá-lo e levaram-no para casa, onde o trataram. Durante mais de seis meses, quase não saiu de casa e nem parecia o mesmo fanfarrão de sempre. Porém, sempre ia dizendo: Se não me tivesse apanhado à traição, teria sabido como elas lhe mordiam!

Da parte dos Lourinhos, só chegou um recado: ou prometia, publicamente, que nunca mais mexeria nas terras dos Lourinhos, ou, quando estivesse em condições, havia de ir dizer ao juiz porque é que tinha partido a omoplata e o braço e porque foi, de má fé, armado de cacete e navalha de ponta e mola, para as terras do Vale. 

Podia escolher, entre reconhecer-se culpado, ou ir uns meses, ou anos, para a cadeia.

O “Rasga” sabia que havia muitas testemunhas a favor da razão. Que fora o primeiro a atacar o moço, que se não fosse o irmão teria os dois braços partidos e, sabia Deus que mais. 

Por isso, um dia, na presença do Cabo de Ordens da terra e de quem mais quis ouvir, reconhecia que os Lourinhos tinham razão e pedia desculpa a todas as pessoas que, por culpa do seu mau feitio, tinha ofendido.

O “Rasga” ainda durou vários anos, mas nunca mais foi o mesmo homem. O seu braço direito nunca mais teve força e as costas nunca deixaram de ter dores. Muitas vezes nem uma saca vazia aguentava sobre o ombro, dizia ele.

O meu avô dizia, meio a sério, meio a brincar: nunca fui homem de brigas, mas há por aí certos trastes que só com uma boa sova é que aprendem. E, uma boa sova é aquela que o tio Francisco Lourinho aplicou ao “Rasga”: não é preciso bater muito; Massacrar o inimigo para quê? 

Dar, quando se tem que dar! E só na medida do preciso: O meu tio aproveitou a fúria do inimigo para o deixar cair de bruços, dentro da represa. Aplicou a primeira paulada para tirar força aos braços do adversário; a segunda para evitar que a mão pegasse na navalha. Preparava a terceira para segurar a outra mão…

E aí está um fanfarrão que toda a vida fez gato-sapato de quem quis, a rastejar, como um porco, prometendo respeitar o que é de cada um e jurando não voltar a mexer nas nossas terras.

E, o velho Lourinho, apenas dizia: 

Assim vale a pena aprender a mexer um pau; E eu que nem sabia destas artes do meu Francisco!...